Palavras Domesticadas

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domingo, 7 de março de 2010

De Caetano, sobre Jorge Mautner


Texto de Caetano Veloso para a contracapa do primeiro disco de Jorge Mautner, "Pra Iluminar a Cidade", de 1972:

Já é com um atraso de anos que se registra o trabalho de Mautner. Em 63, Néci me falou de "Deus da Chuva e da Morte". Eu vivia lendo a revista Senhor: vi uma entrevista esquisita desse cara que olhava os homens do alto de um edifício de São Paulo e os via como formigas. Um dia vi o livro e, assustado com a grossura do volume, não li. Depois fiquei sabendo de "Kaos". Ele era um escritor estranho de quem se falava. Uma vez Rogério me disse que esse escritor Jorge Mautner cantava muito engraçado, bonito como um bandolim e que aprendera o alemão antes do português. Soube que ele cantara na televisão uma canção que falava em Hiroshima e bomba atômica: algumas pessoas da música popular brasileira estavam indignadas com a escolha dos temas. Diziam: que temos a ver nós com a bomba atomica? Um dia Nara tocou no assunto comigo, em tom de pergunta. Eu não tinha resposta porque não conhecia as tais canções. Nara falava mais cheia de curiosidade do que de preconceito. Ela parecia estar realmente querendo saber como encarar um fato tão diferente dentro da música brasileira, enquanto para outros (inclusive para mim mesmo, que nem sequer me esforcei para conhecer tais composições) a própria estranheza desse fato aconselhava a ignorá-lo. Depois veio-nos, veio-me, veio o Tropicalismo. De vez em quando eu me lembrava desse nome Jorge Mautner e ficava curioso querendo saber. Ele tinha ido embora para os Estados Unidos. Os Mutantes, que me mostravam tanta coisa, contaram-me que que Jorge era bacana, tinha cada coisa louca, cantaram alguns trechos de canções escritas pelo Jorge. Não me lembro como eram esses pedaços de canções, e creio que não me causaram nenhuma impressão definida. Um dia tive vontade de perguntar a Zé Agripino. Acabou-se o Tropicalismo. Em Londres, apareceu Jorge Mautner com um guarda-chuva. Gostei logo dele porque ele é uma figura incrível e também porque ele foi logo me fazendo umas profecias muito boas (e que felizmente deram certo). Ri muito. Ele cantou "O Vampiro" e essa canção me impressionou de um modo como só "Charles Anjo 45" havia antes me impressionado. Fiquei fã de Jorge Mautner. Suas canções têm cheiro de liberdade criadora que eu só encontrara em Jorge Ben. Na Espanha ele ficava falando em Nietsche e nos filósofos pré-socráticos, falando em Apolo e Dionísius, lendo Sartre nas praias da Catalunha. A gente chamava ele de mestre. Mas principalmente ele cantava suas cantigas de chuva com seu bandolim. Ele não tem nenhum medo do ridículo. Ele parece com tudo. Ele é completamente diferente de tudo o que há na música brasileira, no show-bizz brasileiro. Ele parece uma formiguinha com seu bandolim, um telefone. Ele sabe imitar porta, vaga-lume, liquidificador. Só escreve clichê, com a originalidade de um mrciano. Eu fiquei realmente assustado ao saber que "O Vampiro" era anterior a "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque".

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