Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 3 de março de 2010

Saí pra comprar cigarro



Tem dia que é noite. Naquela tarde nada havia de interessante ou útil a se fazer. Talvez de útil até houvesse. Sempre há. Quem se sentia inútil era eu. A poeira nos cantos dos móveis sugeria uma limpeza, uma faxina, mesmo que superficial. Mas nada me incentivava a qualquer ação que me fizesse naquele momento ousar praticar algo de útil, mesmo em meu benefício.
O cinzeiro entupido de pontas de cigarro também clamava por uma limpeza, mas a única reação que aquela imagem sobre a mesa de centro da sala me estimulava eram duas lembranças: Andréa, a responsável por pelo menos metade daquelas pontas (as sujas de batom), e que os meus cigarros haviam acabado. Precisava descer e comprar mais um maço. Afinal alguma coisa de útil a se fazer. Se é que se deixar envenenar aos poucos pela nicotina pode ser chamado de útil.
No elevador, que me levava ao térreo, eu dividia o espaço com um vizinho mal encarado, que sei que não gosta de mim, e já fez queixas ao síndico sobre o barulho de música e vozes que constantemente vêm de meu apartamento. Nada pior, principalmente em um dia como aquele, ter que cumprimentar aquele sujeito com um boa tarde convencional.
Além dos cigarros, minha necessidade (não sabia precisar em que ordem de preferência) era falar com Andréa. Ficaram coisas pra trás. Coisas a serem ditas. Sempre ficam coisas a serem ditas, pelo menos em relação a Andréa. O seu celular fora de área era tão inútil quanto o maço de cigarros vazio e amassado no cinzeiro.
Ao descer do prédio e me encaminhar para a calçada, percebo que a luz do dia me incomodava. A escuridão preservada pelas cortinas fechadas me era mais aconchegante. Sentia-me como um vampiro, um ser das noites que se incomoda com a luz do dia. Precisava falar com Andréa.
No botequim da esquina cumpro a minha missão, que àquela altura, e naquelas condições, ganhava status de dever cívico. Precisava voltar a meu recanto, como um vampiro de volta à sua tumba, e deixar que o dia se transmutasse em noite. Ou nem isso, pois como já disse, tem dia que é noite, e aquele era um daqueles dias.
Subi o elevador com o cigarro já aceso, ignorando o regulamento do condomínio. Seria apenas mais uma transgressão, entre tantas outras, e para mim não faria a menor diferença.
Volto a meu apartamento, e só então percebo um odor de mofo, de coisa velha. O ar urbano que por poucos minutos respirei me trouxe o contraponto, e me fez perceber que naquele dia (que era noite) eu era mais um Nosferatu.
Apago o cigarro no cinzeiro, tomo um copo d’água, e então me encaminho à secretária eletrônica, e ouço uma mensagem de Andréa dizendo que precisava falar comigo, e imaginava que eu havia saído para comprar cigarros, já que ela me havia roubado o último maço (e eu nem me lembrava desse maço). Falou-me que estava indo embora, e talvez demorasse. Deixou-me um tchau e algumas pontas de cigarro sujas de batom.
Tem dia que é noite. E naquela tarde eu apenas saí para comprar cigarros. Só me restava acender outro, e deixar ficar na boca aquele sabor de Continental sem filtro.

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