Palavras Domesticadas

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sábado, 7 de abril de 2012

Secos & Molhados - O Avesso da Máscara




O grupo Secos & Molhados representou um fenômeno na música brasileira. Em 73 lançaram um álbum que pode ser considerado um clássico, pelas músicas, arranjos, performances, etc, e além disso, foi campeão de vendagens absoluto naquele ano. Algo totalmente impensado nos dias de hoje: um disco da melhor qualidade com uma vendagem além do esperado, desbancando, inclusive, Roberto Carlos, que era na época imbatível em termos de vendagem. Após o segundo disco, no ano seguinte, o grupo se dissolveu no auge do sucesso, devido a problemas internos.
Em meados dos anos 80, o jornalista e crítico Júlio Hungria escreveu um texto sobre os Secos &  Molhados, intitulado "Vira Vira: O Avesso da Máscara", para uma série de fascículos denominados "Rock, A Música do Século XX". Só para esclarecer, o Tinhorão ao qual ele se refere no início da matéria é o crítico José Ramos Tinhorão, um purista radical, que abomina o rock.
"Tenho a impressão de que todo crítico de música é um frustrado e que existe um Tinhorão instalado em cada um de nós - público de música popular; quando negamos uma realidade para valorizar a outra, quando negamos um progressismo, como se uma coisa não fosse sequência da outra.
O Tinhorão do comportamento destruiu em pedaços a porcelana fina que compusera por um momento, na história da música popular, um trio significativo: os Secos & Molhados. Secos, de um lado, Molhados do outro, questionaram na porrada a reflexão da realidade da humanidade sobre o machismo e a desigualdade secularmente estabelecida entre os sexos que hoje referenda e avaliza a mal-chamada fatia humana dos gays.

A voz de contratenor de Ney Matogrosso e o gosto aritmeticamente radicalizado dos Molhados pelas fantasias de Alice Cooper transformaram-se em elementos incômodos para os Secos e acabaram por levar a importância do grupo a um funil do qual espirrou pros dias de hoje, um ídolo individual: Matogrosso.
Esse foi um dado; o outro terá sido a tentativa de centralização do poder do grupo na mãos de João Ricardo/Apolinário, filho e pai alargando a divergência que já surgira bem antes do rompimento, em entrevistas dadas entre o primeiro e o segundo LPs: 'Tudo pinta naturalmente, nada é dirigido' - sugeria Ney Matogrosso. 'Estou lançando o produto nas grandes capitais. Depois disso eu posso me alastrar, mas eu tenho que dirigir as pessoas' - explicava João Ricardo, no caso referindo-se ao público e a métodos de marketing.
Secos & Molhados é um nome que pode determinar 'tudo e nada ao mesmo tempo' - segundo um depoimento de João Ricardo em 1973. 'Tudo e nada' era um jogo muito fácil para quem pretendesse conquistar fatias no mercado da música popular nos primeiros anos 70: a Censura tinha fechado a boca de Chico Buarque, deportado Caetano & Gil, e, até por coincidência, ao pisar nas raízes com as botas ideológicas, só tinha deixado brotar a arte importada. Os baianos, mesmo na volta, em 72, limitados em sua capacidade de expressão, eram obrigados a formular de modo complicado as ideias que desejassem passar ao público. Os Secos & Molhados vieram com máscaras. Como as crianças que escondem o rosto com as mãos e acham que estão protegidas.

A explosão foi imediata: vendiam mais discos que Roberto Carlos e encantavam as plateias mais amplas. Surpreendentemente, seu sucesso não ficou restrito aos limites do público entendedor como seus antecessores Equipe Mercado, que tinham conseguido - com mais radicalismo, é verdade, em alguns anos antes - acabar na cadeia de Cataguazes, MG, onde foram protegidos pela polícia da cidade que queria linchá-los.
Mas, naquele momento, o mercado permitia: o público precisava ser satisfeito e engolia a novidade mais pelo circo que pelo pão. Como observou na época, Geraldo Mayrink, em Veja, as músicas eram ritmadas. 'Fáceis pelo menos de acompanhar batendo com os pés'. E a extensão da voz de Ney Matogrosso soava como um ruído fora da massificação.
A música dos Secos & Molhados no começo era simples: 'Ela vai se enriquecer à medida que o grupo trabalha, pesquisa e evolui', justificava João Ricardo, a inicial mola propulsora do grupo, autor e músico, filho de poeta e crítico de arte português João Apolinário. Só mais adiante do primeiro LP, foi possível reconhecer na obra do conjunto uma espécie de 'rock progressivo', talvez muito mais aparente e pelas graças dos músicos do conjunto, de Gerson Conrad e de Matogrosso, que por esforço de Ricardo, este sempre compulsivamente preocupado com a qualidade poética que, filho de peixe, buscava em Vinícius, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Cortázar e até em Fernando Pessoa e Oswald de Andrade.
O conjunto morreu em 1974, com mais ou menos um ano de idade, e deixou suspensas na música popular brasileira talvez as primeiras estacas de uma ponte que vai de Caetano e Gil ao futuro, e que ainda não foi liberada ao tráfego por falta de asfalto.
Saíram de cena como entraram: numa explosão em que o único foguete a subir a uma altura onde era possível ser visto foi justamente o que levou Matogrosso ao estrelato individual. 'Bicha! - diziam os mesmos que não ouviram a voz 'pequena' de João Gilberto em 1960; 'gay' - como o quer o hoje ruidosamente adepto Caetano Veloso, ou um humano vivendo intensamente aquele momento mais crítico do questionamento da desigualdade entre os sexos.
Matogrosso, hoje é o 'nariz' dos Secos & Molhados - como gostaria Woody Allen. Cheira o perfume das rosas que dez anos antes não tinham cor."

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