Palavras Domesticadas

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domingo, 28 de outubro de 2012

Bethânia por Caetano - Revista Careta (1981)

Em agosto de 1981, a revista Careta publicou um ensaio fotográfico de Maria Bathânia, feito pela fotógrafa Mariza Alvares de Lima, que faria parte de um livro de fotos que levaria o nome da cantora. Na ocasião Caetano Veloso foi convidado a escrever um perfil de sua irmã, que resultou no belo texto abaixo:
"Quando a turma da Careta pediu pra escrever um perfil de Bethânia, eu desviei o olhar com vontade de dizer não, mas considerava a ideia redundante. Eu já havia dito tudo sobre ela. Contudo, uma dessas minhocas que escrevem na revista Veja deu (à guisa de crítica, como sempre) um show de ressentimento contra tudo o que em Bethânia é exuberância e desprendimento, e isso me deu tesão de escrever de novo sobre sua grndeza.
O perfil de Bethânia é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da tragédia, desenha-se o nariz espantoso; é o nariz do chefe indígena norte-americano, é o nariz da bruxa, o nariz de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz assim - os outros são apenas uma referência a ele. Se esse nariz, na vanguarda de uma batalha que o homem superior adivinhou tramar-se no cérebro por trás daquela testa, aponta orgulhosamente para o futuro da beleza, a boca parece desmentir a armada: emergindo a um tempo brusca e suavemente à flor do visível, ela anuncia o mel que destilará e consumirá em palavras, em beijos, em mel. Sim, porque se os olhos traem o corpo por serem uma revelação do espírito inscrita na carne, a boca trai o corpo por ser uma revelação do próprio corpo. Insondáveis são os mistérios do espírito e olhos que veem, inquietam-se diante dos olhos que veem. Mas, os mistérios do corpo não são menos insondáveis e a boca, esse transbordamento do lado de dentro de um corpo vivo para seu exterior, é um pequeno escândalo permanente. Assim, a boca de Maria Bethânia, vista aqui de perfil, primeiro parece negar e depois explica e aprofunda a informação plástica estampada na parte superior da sua cabeça: traduz doçura e amargor o que fora enunciado em dureza e alegria. O que seu queixo arremata numa curva fresca de felicidade infantil. Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar com alguém do outro lado e depois se volta pra nós, indecifrável.
Eu sempre achei que Bethânia é a filha favorita de minha mãe. Dizem que Freud escreveu que um mother's baby  terá sempre sucesso. Tenho tido muita inveja de Bethânia porque na minha fantasia os acontecimentos da vida dela possuem uma espécie de inteireza diante da qual a minha própria vida parece consistir numa série de imprecisões e transparências. Roberto, nosso irmão, imediatamente mais velho que eu, me disse que inveja em Bethânia o modo intenso como ela vive suas emoções. Não me lembro de ter tido ciúmes quando, aos 4 anos, 'vi' Bethânia nascer. Como se sabe, escolhi o nome para ela, contra toda a família, e considero isso uma profecia: é mais óbvio que ela só se podia chamar assim. Ela foi a única adolescente rebelde da família e, nessa altura, eu interferi a seu favor, o que me pôs na posição de meio-tutor e meio-cúmplice. Aprendo então, com ela, a vivência da rebeldia. Eu tinha a inteligência: conferia legibilidade e legitimidade a seus atos e acessos aparentemente desarrazoados. Data dessa época o companheirismo que há entre nós e que só morreu uma vez para renascer em outro nível, mais forte. Hoje somos macabos, gêmeos, dois leões, a mesma pessoa (como disse Cortazar e gente muito mais importante do que ele). E representamos bastante bem, para um número enorme de pesoas, o amargor e a doçura de Santo Amaro, a beleza de meu pai e minha mãe, o talento de Nicinha, Rodrigo e Mabel, a integridade de Clara Maria, o brilho de Roberto, a franqueza de Irene, o mal e o mel da Purificação."

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