Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 26 de abril de 2013

Alceu Valença Em Busca do Trem Universal - 1975 (2ª Parte)

"Ele Ela: Diante do seu trabalho, da presença de Fagner, Belchior, Ednardo, o Quinteto Armorial e o Quinteto Violado e de outros músicos do Nordeste, você admite falar hoje num movimento da música nordestina?
Alceu: Acho que se deve acabar com esse chavão de música nordestina. Está superado. Acontece que existia, em termos culturais, um distanciamento muito grande entre o Sul e o Norte, apesar de forças como Luiz Gonzaga. Hoje ele está bem diminuído, já há a famosa 'aldeia global', formada por uma série de veículos nacionais. Quebradas as barreiras, a música do Nordeste passa a ser a música brasileira feita no Nordeste, sem isolamento. Ninguém vai dizer quer o samba é carioca só porque as grandes escolas estão no Rio. Para diminuir as distâncias, o trabalho  de Caetano e Gil foi importantíssimo, criando uma ponte, um elo e mostrando a música nordestina sem deturpações. Agora, é claro que cada  região tem o seu som característico e os músicos dessa região trabalham sob essas influências, que provocam às vezes semelhanças na criação. Mas partir daí para identificar um movimento é um negócio meio fascista.
Ele Ela: Entretanto, essa ideia de som nordestino existe e, de certa forma, é alimentada por grupos que deixam claro ser seu trabalho alimentasdo por exaustivas pesquisas folclóricas, o que lhe daria uma inatacável aura de autenticidade...
Alceu: Pessoalmente, nunca estudei ou racionalizei a música nordestina ou sentei para uma longa conversa com um violeiro, de gravador na mão. O zabumba, o aboio e o bumba-meu-boi, em São Bento do Una; a ciranda, o frevo e o coco, no litoral, sempre entraram em mim sem nenhuma triagem, da mesma forma que foi benvindo o rock e é esperada qualquer nova informação. Acho que enquanto eles assumem a posição de um grupo folclórico, de simples copilação da música do Nordeste, não tenho nada a dizer. Mas, quando a coisa ultrapassa esses limites, para se oficializar e assumir uma sofisticação que a torne acessível aos padrões de consumo médio, se torna perigosa. Vira uma espécie de padrão da música, uma linha, quando no fundo não é nada disso. Não passa de uma pincelada num quadro já feito e que talvez até mesmo suje esse quadro. Porque quando Baracho canta uma ciranda, ele é maior que qualquer outro. Mesmo os mais sofisticados porta-vozes dos desejos de consumo da classe média.
Ele Ela: Diante disso, como são suas relações, filho confessado da classe média, com as informações musicais do Nordeste?
Alceu: A minha música não é documental de um som nordestino. É muito mais a minha imagem, a minha inflexão, a minha loucura mesmo. Algumas vezes pego elementos do bumba-meu-boi, ciranda ou maracatu, inclusive até textos. Mas diante deles minha visão é bem diferente: eu não copio. Eu tento acrescentar alguma coisa. Por exemplo, pegar uma frase solta, da qual eu curti a sonoridade, e daí desenvolver uma linha de pensamento, não necessariamente a mesma linha de pensamento do autor. Assim, um verso de embolador, como 'sereia do mar/ouvi o cantar da sereia/peixe grande é a baleia/que faz um navio virar', serviu de ponto de partida para o texto de uma música que fala de transas de um homem e uma mulher.
Alceu e Geraldo Azevedo em 72
Ele Ela: Que loucura é essa, que você liga à sua música?
Alceu: A minha loucura é dentro da minha arte. Quando eu estou compondo ou cantando é como se eu fosse a pessoa mais importante do mundo. Pode crer: quando estou num palco tenho verdadeiras alucinações. E acho que todas as pessoas deviam ser assim, agindo e crendo com todas as forças no que se está fazendo. Eu olho nos olhos das pessoas e elas olham no meu. E mesmo que o que eu tenha a dizer não esteja interessando, todos prestam muita atenção no que eu estou dizendo. Eu sei que tenho uma força muito grande dentro de mim e sei expressá-la: se não pelo diálogo, pelos olhos, gestos, as mãos, a mímica.
Ele Ela: Você sempre foi reconhecido pela qualidade de suas letras. E confirma agora o desejo de expressão, do diálogo. Você confirma a força do texto numa época em que se enaltece cada vez mais 'o som pelo som'?
Alceu: Eu nunca pretendo calar. Quero sempre falar alguma coisa, nem que seja numa conversa de esquina. E acho também que a música popular não vai poder nunca prescindir da palavra, do diálogo com o público. É fundamental para sua sobrevivência. Por outro lado, a música não suporta um texto ruim. E isso é  o que não falta hoje. Somos, nas grandes capitais, uma sociedade em formação capitalista, recebendo diariamente uma massa de informações de sociedades mais avançadas e tentando, desesperadamente, adaptá-las ao meio. O resultado, em termos musicais, é um som que simplesmente repete as criações de grupos estrangeiros.
Ele Ela: Você acha que a pressão da Censura nos últimos anos não teria contribuído para que se formasse uma geração silenciosa, com receio de se expor?
Alceu: Sobre isso não consegui chegar ainda a uma conclusão. Houve uma pressão, está na cara. Como solução, a mais viável saída foi o artista se expressar por símbolos. Mas, como o tempo de pressão se prolongou e a força da linguagem do símbolo continuou presente e influente, o simbolismo passou a ser a linguagem musical mais cotada - mesmo agora, quando se fala em abertura e são reavaliados os conceitos. A consequência é que há uma dificuldade de se dizer as coisas de uma maneira direta, coloquial, como na boca do homem da rua, problema acrescido de uma autocensura naturalmente formada nos períodos de maior pressão. Dessa forma, a Censura foi decisiva no silêncio. Mas agora preenchê-lo de verdades é o trabalho que aguarda o artista.
 Ele Ela: Com o seu trabalho, qual a função do artista no meio em que ele vive?
Alceu: Eu posso dizer que o artista é o bobo da corte, o cara que saca as coisas do reino e diz na sua cara todas as verdades. Ou posso dizer que o meu trabalho reflete o pensamento de várias pessoas que pensam como eu, um mero veículo. Ou que eu sou uma pessoa que interpreta a sociedade e pelos desencontros que expresso, as neuroses que sinto e o caos que denuncio assumo uma atitude. Para mim, é essa a função, que não é, de forma alguma, panfletária. Uma música como Planetário, a primeira que fiz no Rio, mostrando as neuroses da cidade grande, carrega dentro de si muitas críticas.
Ele Ela: Você se inicia agora, como um nome nacional. Quais são as suas chances de sobrevivência com essa mesma linha de trabalho?
Alceu: Grandes, porque há uma classe média que consome muito. E esse é o grande problema do artista: ela quer sempre se satisfazer com o artista e sempre se satisfaz com o que ele diz - mesmo que seja a pregação da sua extinção. Ela acha 'estar por dentro' conviver com o artista, o excêntrico. O que ela não entende é que quando pensa que está nos alcançando, nós já estamos em outra. Por exemplo: na minha música Vou Danado Pra Catende há uma transação muito doida com o poema de Ascenso Ferreira. No improviso com o texto de Ascenso eu estou louco, sou o próprio místico pregando contra a engrenagem, a cidade grande. Mas as pessoas ainda estão pensando que eu quero um trem, um trem de ferro da Central do Brasil...
Ele Ela: Mas você é classe média e o artista deve refletir...
Alceu: E isso é terrível. Veja bem: mal falo, começo logo a emitir opiniões sobre música nordestina, o quadro da música brasileira, empostando a voz arrojando sabedoria e opiniões, uma atitude tipicamente de classe média. Estou dando satisfações, dizendo o que sou e o que não sou. É o grande pudor da classe média, a grande culpa cristã. Mas eu pretendo escapar da roda-viva. É difícil, mas um dia as pancadas que você vai distribuindo por aí dão o resultado esperado."

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