Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Charlie Parker - Jornal Canja (1980)

No início dos anos 80 circulava um excelente jornal musical chamado Canja, que tinha periodicidade quinzenal. Em sua edição nº 14 (2 a 15 de outubro de 1980), o jornal traz um texto, não assinado, chamado "A noite em que Charlie Parker foi". O título parece incompleto, mas é assim mesmo. Leia abaixo:
"Charlie está sentado na poltrona. No apartamento de Nica, a poltrona fica em frente à tv. É sábado à noite, faz frio mas o Tommy Dorsey Show está ótimo. Charlie se diverte, nem parece que anda sentindo dores terríveis, cuspindo sangue e caindo tonto pelos cantos.
Nica é uma baronesa. Baronesa Pannonica de Koegnigawarter e se não fosse ela o nosso Charlie agora não estaria ali dando gargalhadas. Vida de cão leva o Charlie. Os amigos dizem que tudo piorou quando a filhinha de 2 anos, Pree, morreu de pneumonia. Ele afundou de vez na bebida e nas drogas. Suicídio Charlie tentou: tomou todo um vidro de aspirinas, mas foi salvo a tempo.
Desde que saiu de casa e largou a mulher Chan, Charlie, ou Bird como é chamado, só aprontou. Parce um velho, anda arrastado, nem 35 qanos tem. Os donos dos night clubs não lhe dão mais emprego. Seus companheiros já não o suportam. No dia em que tentou se matar, Bud Powell discutiu com ele em pleno palco. Mingus encarou-o furioso. O gênio do sax, Charlie Parker Jr, está ferrado.
Charlie já esteve em melhores dias no apartamento de Nica. Quanda andava numa boa, várias vezes foi até lá em companhia de Thelonius Monk transar heroína e tocar até de madrugada. Nica sempre teve dinheiro e gostava de promover festas com músicos de jazz no seu apartamento da Quinta Avenida.
Quando ficou sozinho, Charlie vagou de quarto em quarto. Até que, um dia, foi visitar Nica sem avisar. Reclamou de tontura e vomitou sangue. Nica insistiu pra ele ser hospitalizado, Charlie não deu bola. O médico disse que seu estado era sério. Como Bird não quis sair, Nica tomou uma decisão: resolveu tomar conta dele.
Por isso Charlie está lá em frente à televisão. Já não sai mais por aí aprontando como antes, indo preso por transar droga ou se meter com prostitutas. Já não toca mais no Minton's com Monk, Kenny Clark, Lester Young, Gillespie. Não ouve mais seu compositores favoritos: Brahms, Shoenberg, Hindemith, Stravinsky e Duke Ellington. Ele está ali com o olhar fixo no Tommy Dorsey Show. Talvez lembrando daquele menino de 18 anos que convidou para tocar trumpete em seu grupo, Miles Davis. Ou do show ao vivo com Mingus, Powell e Max Roach, dois anos antes, e que disseram ser 'o maior concerto de jazz de todos os tempos'. Ou da cana de seis meses que tomou quando excursionava com Gillespie na Califórnia por tentar botar fogo no hotel. Ou da semana passada, quando deu uma passada lá pelo Birdland e tocou com o pessoal.
Nica ouve as risadas de Bird e ri também. Como é bom ver Charlie feliz outra vez. Mas de repente sai um ruído estranho da garganta de Charlie. Nica vai ver o que é. Ele está imóvel e em silêncio. Nica chama o médico. Não dá mais tempo. Charlie está morto: pneumonia, cirrose, úlcera perfurada ou um ataque cardíaco. Sábado, 12 de março de 55, o Tommy Dorsey Show estava ótimo."

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