Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sábado, 31 de agosto de 2013

Os 50 Anos de Hyldon (2001)

Em 2001 um dos maiores representantes da soul music brasileira, o cantor e compositor Hyldon, completava 50 anos, e na edição de de 3 de junho daquele ano, o Jornal do Brasil trazia uma matéria sobre o cantor. Considerado ao lado de Tim Maia e Cassiano, os três maiores representantes da soul music com uma linguagem brasileira, Hyldon apareceu para a grande mídia em 74, quando seu compacto "Na Rua, na Chuva, na Fazenda" fez um estrondoso sucesso, impulsionando as vendas de seu primeiro LP.
Andando um pouco na contramão da indústria do disco, Hyldon, apesar de seu reconhecido talento, não repetiu em seus trabalhos posteriores o sucesso alcançado em seu disco de estreia, que além de "Na Rua, na Chuva..." trazia outros clássicos como "As Dores do Mundo", "Na Sombra de Uma Árvore" e "Acontecimento", mas produziu excelentes álbuns como"Deus, a Natureza e a Música".
Na citada da matéria do JB, há um texto assinado pelo jornalista Silvio Essinger, intitulado "Um modo adolescente de viver":
"Hyldon Souza é alguém que se pode dizer que tem uma trajetória invulgar. Nasceu no interior da Bahia e foi ainda menino para Niterói. Na adolescência, interessou-se pela guitarra elétrica e o iê-iê-iê (seu primo, Pedrinho, tocava nos Fevers) e logo entrou para a banda Os Abelhas. Quando a mãe resolveu voltar para a Bahia, ele ficou sob os cuidados do primo. E aos 14 anos, lá estava Hyldon substituindo um dos guitarristas dos Fevers numa gravação. 'Era tudo ao vivo, não podia errar', conta. Logo ele estava compondo também. Wanderley Cardoso gravou a sua Chove, a Natureza Chove e Roberto Livi (cantor que anos mais tarde se tornaria produtor de Sidney Magal),  Eu me Enganei, que deu um bom dinheiro para o compositor. 'Comprei um carro, porque achava que todo mês iria receber o mesmo de direitos autorais', conta Hyldon. Na dureza, ele acaba aceitando um convite para tocar nos Diagonais para 'ficar rico' excursionando pela Bahia.
Cassiano ajudou a abrir a sua cabeça jovemguardista para a soul music. Assim ele acabaria virando guitarrista de Tony Tornado e de Wilson Simonal. Nessa época, Hyldon começou a alimentar o desejo de gravar o seu primeiro LP. 'A ideia apareceu em 69, comecei a gravar em 73 e ele saiu em 75. Por isso ficou tão bom', ironiza. Mas até conseguir fazer Na Rua, na Chuva, na Fazenda, ele teve que cumprir algumas etapas. O produtor Mazola o estimulou a passar para trás da mesa de som. Mais tarde, Hyldon arrumou o emprego de produtor na Polydor, o selo dos artistas populares da PolyGram, onde gravou de Erasmo Carlos e Wanderléa a Odair José e Adilson Ramos. 'Comecei a levar o Azimuth para gravar com os artistas. São eles tocando em Pare de Tomar a Pílula, de Odair', relembra.
Um dia, o artista que ia gravar com Hyldon, o cantor Frank Landi, perdeu o trem em Juiz de Fora. Com o violão que vivia encostado no estúdio, o produtor voltou para o outro lado da mesa, aproveitou que o Azimuth estava de bobeira e gravou Na Rua, na Chuva, na Fazenda. A música, conta, agradou bastante à diretoria da gravadora, que queria que ele gravasse uma versão de Angie, dos Rolling Stones. Hyldon se recusou e, por causa disso, o lançamento do compacto teria sido adiado durante oito meses - até que não teve mais jeito. A música foi um estouro daqueles, com execuções em rádios populares e sofisticadas. 'Disseram que era sorte de principiante', lembra o cantor.
George Israel, do Kid Abelha, banda que anos mais tarde fez Na Rua voltar às paradas em uma versão reggae, ressalta o fascínio que a composição exerce sobre ele: 'A música do Hyldon é um dos pontos altos do nosso show, uma canção que a gente pescou no repertório de violão à beira da fogueira. Ela estava no inconsciente coletivo e, toda vez em que a gente a toca, faz questão de dizer que é dele.'
Em seu segundo compacto, Hyldon gravou As Dores do Mundo, que estourou também.  Rogério Flausino, vocalista do Jota Quest, conta que achou curioso quando o empresário do Skank, Fernando Furtado, sugeriu que a banda gravasse essa música. 'Fui ouvindo e, pouco antes do refrão, eu já estava cantando junto', conta. 'A gente busca muito isso, essa simplicidade que emociona.' Até hoje, As Dores do Mundo é a música que faz o show do Jota Quest esquentar.
Assim, com duas músicas estouradas, o tão sonhado LP de Hyldon decolou, chegando às lojas em 1975. Segundo o artista, como a gravadora não se empenhou em divulgar o disco e ele não gostava muito de fazer shows, as vendas não foram lá essas coisas. Começou então ' a fase de revolta', na qual ele foi morar em Nova Iorque. 'Cheguei lá, peguei um táxi e fui direto para o Harlem. Fui para o Apollo Theater, onde viu shows de Al Green, Temptations, todos os meus ídolos', conta. Na volta, gravou Deus, a Natureza e a Música, que também não aconteceu. 'Estava precisando era de um psiquiatra', brinca/confessa. 'Fiz sucesso muito jovem. Minha adolescência foi dos 25 aos 31 anos'. Em 1977, gravou mais um LP, Nossa História de Amor (relançado ano passado em CD, por iniciativa do Titã Charles Gavin), que tampouco fez sucesso.
A 'adolescência' de Hyldon acabou quando ele se casou com Zoé Ruth, com  quem tem as filhas Halina, de 16 anos, e Yasmin, de 10. 'Se voltei ao normal, devo à minha esposa e às minhas filhas.' Tranquilo em Teresópolis, ele aproveita para curtir o modelo R&B dos cantores Maxwell e R Kelly e do produtor Rodney Jerkins. E passa horas no seu home studio, compondo. 'Tenho novas músicas, mas estou sereno, tem que ter step by step', diz, tentando reencontrar os próprios passos."

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A Cor do Som: Uma Grata Surpresa de 1977 (2ª Parte)

"Quando a chance pintou, ainda não existia um trabalho, mas isso era apenas uma questão de orientar e canalizar as coisas. No dia da gravação nasceu a primeira e até então única composição do grupo: Pique Esconde. A música saiu livre e espontânea, como a brincadeira infantil que lhe deu o nome. O pessoal da Phillips gostou da gravação, mas queria ouvir alguma coisa mais conhecida, antes de dar a palavra final. O clássico Brejeiro de Ernesto Nazareth foi a música escolhida. Sem o exagero do 'novo' eletrificado e contagiante, a interpretação do grupo conservou o espírito da música de Nazareth e Brejeiro passou a fazer parte da memória auditiva de milhões de telespectadores, através da trilha sonora da novela Nina.
Mas isso só aconteceu mais tarde, quando a gravadora Warner tomou a decisão que a Phillips vinha protelando. O compacto sai em seguida, e daí para a preparação do primeiro LP, foi apenas a continuidade do trabalho iniciado com Pique Esconde e Brejeiro.
- As músicas foram surgindo naturalmente. A gente não tinha nenhum plano de trabalho, nada preparado ou programado  pra acontecer. Foi tudo uma decorrência da vivência musical de cada um, harmonizada pelo hábito de tocar juntos. Em um mês reunimos o repertório, ensaiamos e gravamos.
A banda já como quinteto, com Ari (segundo acima) na percussão
Nos estúdios, a gravação, que foi produzida pelo Guti, ainda contou com a colaboração dos percussionistas Joãozinho ('um cara gênio que ainda não teve oportunidade de mostrar seu trabalho') e Ari(*) ('aquela cuíca que impressionou Mick Jagger). A Cor do Som passou a existir e vibrar um colorido de tonalidades fortes mas nunca berrantes. Um quadro musical agradável aos ouvidos do crítico José Ramos Tinhorão, que deu a melhor nota do júri para Espírito Infantil, o chorinho do grupo que chegou às finais do Festival da TV Bandeirantes. Para o grupo, entretanto, isso não chega a ser uma surpresa, pois se como afirma Dadi, o LP Cor do Som é um disco que mostra muitas 'possibilidades', ele também é o resultado pronto de um trabalho de assimilação consciente de toda uma trajetória musical:
- Nós jogamos espontaneamente no disco todas as influências adquiridas através de nosso aprendizado. Nada foi censurado ou reprimido, mas naturalmente se chegou a um resultado definido, que deixa as coisas bem claras. O chorinho, por exemplo, nos motivou pela riqueza musical que oferece, mas isso não significa que a gente ia repetir tudo outra vez. Nós apenas seguimos a ordem natural das coisas, acrescentando, inovando..."

(*) Ari mais tarde seria incorporado como membro efetivo da banda

terça-feira, 27 de agosto de 2013

A Cor do Som: Uma Grata Surpresa de 1977 (1ª Parte)

Em 1977 surgia um novo grupo instrumental no Brasil: A Cor do Som. A primeira vez que esse nome apareceu não foi com relação à banda. Na ficha artística do clássico disco Acabou Chorare, dos Novos Baianos, a banda era dividida em subgrupos, dentre eles, um que se chamava A Cor do Som, formado por Pepeu (guitarra), Jorginho (bateria e percussão), Baixinho (bateria e percussão) e Dadi (baixo). Dadi, acabou ficando com o nome, para batizar sua nova banda.
Como eu falei acima, no princípio a Cor do Som era um grupo instrumental. Seu disco de estreia, lançado em 1977 só trazia uma música cantada, a última faixa, que se chamava justamente A Cor do Som. Nos discos seguintes a maioria das músicas seriam cantadas. Na edição de outubro daquele ano, o Jornal de Música trazia uma matéria com  a banda, assinada por Giba Rocha:
"A trajetória da Cor do Som começa nas ruas de Salvador, se amplia nos bailes do subúrbio carioca e emerge do inconsciente de toda uma geração marcada pelas inevitáveis influências de Beatles e Stones. A parafernália rockeira dos anos sessenta, o choro, o baião, o frevo e o samba eletrificados e recompostos pela sensibilidade ardente da moçada que amadurece o som deste final de década. A tonalidade só poderia ser forte, vibrante e sobretudo alegre: A alegria de Mu (teclados), Dadi (baixo), Gustavo (bateria) e Armandinho (cordas), um grupo de jovens músicos (média de 25 anos) que sobreviveu à confusão geral e agora vai à luta de peito aberto.
Muita gente associa o nome do grupo aos Novos Baianos, mas apesar da origem, influências e acasos a Cor tem vida própria: o nome escolhido já pertenceu ao grupo (instrumental) de apoio dos Baianos, mas foi 'cedido por Pepeu', conta Dadi, que durante 5 anos também fez parte da 'família'.
- 'A minha formação musical é de rádio e televisão. Tudo que tocava na época eu fui assimilando. Ficava vendo Edu Lobo, a Elis Regina na TV e me liguei em Bossa, vieram os Beatles e eu já tava na batalha pra comprar o instrumento. Primeiro eu queria tocar bateria, mas depois optei pelo baixo e como todo garoto, fui tocar em bailes com  aqueles grupos de bairros. Quando os Baianos vieram ao Rio entrei em contato com eles. Tava faltando um baixista, eu fui fazer um teste e fui aprovado.'
Mu, irmão de Dadi, cinco anos mais moço, só mais tarde iria ensaiar os primeiros acordes no piano da mãe, mas já olhava com admiração o novo músico da família. Gustavo saiu cedo para a estrada e quando um dos integrantes do Black Foot desistiu da música (era o dono da aparelhagem) para fazer medicina, ele começou a percorrer uma série de grupos cariocas e a alimentar um sonho: tocar com o The Bubble, mais tarde, 'A Bolha'.
- Pois é, saía um baterista e entrava outro, mas eu nunca encaixava. Enquanto isso era um baile depois do outro, tocando de tudo. Foi uma época de muito trabalho e pouco crescimento, mas ao mesmo tempo deu muita corrida, a gente tinha um repertório muito grande, tocava de tudo mesmo, e eu ia adquirindo experiência.
Finalmente veio a esperada chance com A Bolha e um trabalho mais próximo do que Gustavo queria. Em 70, a viagem à Europa para a compra de equipamentos e a passagem pelo festival de Wight, onde os músicos brasileiros se reuniram e tocaram juntos num acontecimento extrafestival. Enquanto isso, na Bahia, Armandinho do Bandolim assimilava as influências paternas e curtia um 'desafilho' (desafio de pai e filho) com Osmar, um dos geniais criadores do Trio Elétrico. Aos 9 anos já desfilava pelas ruas de Salvador incendiando o alucinado carnaval eletrônico do Trio. Aos 15, ganhou a fase baiana do programa 'A Grande Chance' e veio para o Rio, onde ficou com o segundo lugar na grande final nacional e chegou a gravar um disco.
Armandinho voltou para a Bahia, só retornando mais tarde, trazido por Moraes Moreira. Gustavo chegou da Europa, casou e sentiu que 'a barra começava a pesar'. A Bolha andava devagar, trabalhando legal, mas sem garantir o lado econômico da vida nova que começara com o casamento. Gustavo achou que aquele negócio de música era profissão mesmo e em 74 aceitou o convite para tocar com o Raul Seixas. Dadi deixava os Baianos enquanto Mu participava de festivais escolares e tomava aulas de técnica com Homero Magalhães.
Foi a carreira individual de Moraes que uniu os quatro. Gustavo foi chamado para fazer parte do grupo de apoio e quando Moraes gravou o primeiro disco, além de Armandinho, Mu já participava de uma faixa. No segundo LP, fez o disco inteiro. O entrosamento era perfeito e além das carreiras individuais como músicos de estúdio, Dadi e Gustavo passaram a tocar juntos com Jorge Ben. A ideia de fazer um trabalho próprio começou a nascer de conversas, mas ainda não existiam condições de concretizar o plano. Nem tempo, nem meios, lembra Gustavo:
- É a problemática do músico brasileiro. Ninguém acredita, pouca gente dá valor. O músico tem de se sujeitar a ganhar pouco e ainda fica impedido de mostrar o seu verdadeiro trabalho. Trabalhar com artistas consagrados pode ser gênio, acrescentar, fazer a gente criar, mas também existem figuras difíceis, que não estão interessadas no trabalho do músico. Tem caras que só se preocupam com a grana do show, ou quanto vai render o disco.
Além do mais quem iria apostar num disco instrumental, feito por músicos estreantes? Céticos, mas nunca desestimulados, Dadi, Gustavo Armandinho e Mu decidiram que a oportunidade viria naturalmente, sem forçar a barra:
- Era preciso que alguém acreditasse na gente. Não dava pra parar e ficar ensaiando um repertório. Todo mundo sobrevivia de shows e gravações, e a gente não tinha tempo de ficar estruturando um grupo próprio sem uma perspectiva imediata de levar o trabalho adiante. Tinha que ser na confiança.'
(continua)

domingo, 25 de agosto de 2013

Ney Matogrosso - Início da Carreira-Solo (1975)

Em 1975 Ney Matogrosso estava iniciando sua carreira-solo, após a dissolução dos Secos & Molhados um ano antes. A revista Pop de abril daquele ano trazia um matéria com Ney, falando de seus planos, do repertório de seu primeiro disco, que ainda não havia sido lançado, e do show que estava montando. Escrita pelo  jornalista Carlos Eduardo Caramez, a matéria é reproduzida abaixo:
"No palco e fora dele, Ney Matogrosso parece um bicho. Um felino. Insinuante, perspicaz, perigoso. Por destino - ou magia - nasceu regido pelo signo de Leão, neto de índios paraguaios, no interior de Mato Grosso. E tudo isso ajuda a montar o perfil desse cantor que, como todos os felinos, não desiste antes de conquistar o que quer. E também sabe ficar durante muito tempo à espreita - para dar o salto no momento exato, sem qualquer possibilidade de erro.
Assim, vestindo uma pele de onça, dançando com elegância e sensualidade, Ney voltou à arena do show-bizz, depois de cinco meses de espera.
Para esta volta truiufal, que só estará completa no mês que vem, com o lançamento de seu primeiro LP sem os Secos & Molhados, Ney aceitou a tutela do empresário George Ellis, montou uma banda de oito músicos extremamente profissionais e tomou muito cuidado com  a parte visual de tudo, o que fortalece a imagem do Ney felino, imponente e vigoroso como o verdadeiro Leão.
O primeiro passo desse trabalho individual foi mudar de São Paulo ('uma cidade muito pesada') para o Rio de Janeiro, logo após a dissolução dos Secos & Molhados. Aí, depois de alguns meses, assinou contrato com o novo empresário e passou a cuidar só da parte musical do trabalho. 'O empresário cuida de tudo, não preciso me preocupar com casa, comida - enfim, com tudo o que um músico necessita para sobreviver. A única coisa que faço é cuidar de minha música e de tudo o que esteja relacionado com o fato de eu cantar.'
Foi por isso que Ney experimentou vários músicos, antes de chegar, em meados de janeiro passado, à formação ideal e definitiva de sua banda: Márcio Montarroyos, pistão; Sérgio Rosadas, flauta; Cláudio Gabis, guitarra; Jorge, violão e viola; Bruce Henry, baixo; Guilherme Vaz, piano; Helbert, bateria; e Erasto, percussão. Definido o grupo, passou a intercalar aulas de dança e expressão corporal com exaustivos ensaios. 'Nos primeiros vinte dias, tocávamos sete horas a fio, das cinco da tarde até a meia-noite. Agora, ensaiamos numa base de cinco horas por dia.
Ao mesmo tempo, havia a preocupação com o repertório. As músicas tinham que ser fortes, cheias de garra e adaptáveis aos falsetes de sua voz. E não poderiam ser uma simples continuação do processo iniciado com os Secos & Molhados; mas uma queda brusca desse processo poderia prejudicar. Em cima de todas essas preocupações Ney colocou a firme disposição de assumir suas raízes sul-americanas, seu sangue de índio e latino.
A quantidade de músicas novas e inéditas que recebeu dos melhores compositores brasileiros foi estimulante. E acabou não sendo muito difícil selecionar as catorze que compõem o material básico para o show e o LP. Há de tudo: as duas músicas do argentino Astor Piazzolla, já gravadas em compacto na Itália, 1964 (com letra do escritor Jorge Luís Borges), e As Ilhas (com letra de Geraldo Carneiro); Bodas, de Milton Nascimento; Açúcar Candy, de Sueli Costa; Colo da Tarde, de Paulinho Mendonça; Pop Star, de Gérson Conrad; e um verdadeiro hino sul-americano, Essa América do Sul, de Paulinho Machado.
Para esse repertório, Ney preparou uma interpretação mais áspera e visceral, que pode até afastar alguns de seus fãs de antes. Este risco ele corre com serenidade - afinal, outro público pode ser conquistado. E além do mais, 'tudo muda, e isso é o grande barato da vida'.
E é assim, amparado por uma eficiente estrutura profissional, que o felino  Ney começa a sua lenta caminhada pela América do Sul, rumo aos grandes centros da música pop do mundo. Já tem alguns shows marcados, para o segundo semestre deste ano, em vários países da América do Sul e também em Portugal. Mas rejeitou um um convite do empresário de Piazzolla para uma temporada na Itália, no começo do ano. Porque, antes de entrar como um leão nas arenas mais perigosas, é necessário reunir forças para o salto: 'Quero ir devagar e com bastante confiança. Antes vou transar meu lugar, meu país, mostrar aqui o que realmente sou - uma coisa verdadeira que as pessoas gostem. Dessa troca de energias sairá a força para crescer e cantar mais. Muito mais'."

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Muddy Waters - Uma Lenda do Blues

O blues foi sem dúvida uma grande fonte de inspiração, e uma música que  influenciou toda uma geração de jovens músicos que surgiram, principalmente na década de 60, e modificaram o panorama do rock. E o bluesman que mais influenciou esses jovens músicos, foi com certeza Muddy Waters. Waters foi o grande responsável pela eletrificação do blues, fazendo a união com o rock - um casamento perfeito.
Na sessão dominical Rio Fanzine do jornal O Globo, de 18/02/90 o jornalista José Emílio Rondeau fala sobre o lançamento nos EUA,  de uma caixa com cinco LPs, cobrindo a carreira de Muddy. A matéria tem por título "Memórias de um bluesman", e segue abaixo:
"O 'caixotão' retrospectivo já deixou de ser novidade há muito tempo e foi até mesmo questionado recentemente quando descobriu-se uma série de desleixos técnicos imperdoáveis em um produto tão caro e pretensamente tão exato na cobertura histórica de uma obra artística - soube-se assim, que boa parte do caixote 'Storyteller', de Rod Stewart, havia sido masterizada a partir de discos em vinil que iam sendo transferidos para a linguagem digital dos compact discs.
Ou seja, um processo perigoso e curto atalho para a desmoralização de um produto nobre e 'sério'.
Entretanto, ainda que tenha passado a novidade e que o caixote tenha entrado na rotina fonográfica, regularmente surgem as gemas raras que fortalecem o prestígio e a função do formato.
É o caso dos caixotes da Chess Records, em geral - compilações individuais de mestres do blues que nasceram para o disco e praticamente passaram toda sua carreira no velho selo de Chicago - e do recém-lançado caixote de Muddy Waters, em particular.
Existiu apenas um bluesman que tenha construído uma obra tão importante por suas qualidades musicais bem como antropológicas, que tenha influenciado sucessivamente gerações de músicos tanto quanto Muddy: Robert Johnson, uma das primeiras influências de Waters.
No entanto, Muddy transcendeu seu mentor no instante em que transplantou-se do delta do rio Mississipi para as ruas de Chicago e eletrificou o blues.
Reunida aqui de forma ampla e compreensiva pela primeira vez (descontada uma coleção anteriormente editada no Japão com 11 LPs), a obra de Muddy é a história da travessia do blues dos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos para o asfalto da cidade grande.
Como Robert Johnson, Waters influenciou definitivamente o nascimento de bandas e artistas como os Rolling Stones (cujo nome, como o da revista americana, foi inspirada na canção 'Rolling Stone', de Muddy), Led Zeppelin, Johnny Winter, Eric Clapton, Jimi Hendrix, Michael Bloomfield, Ry Cooder e tantos outros. E ter acesso a essa coleção é quase o mesmo que aprender a história da transformação do blues do campo em rock and roll.
A seleção das 72 faixas incluídas neste caixote engloba das primeiras gravações de Muddy para o selo Chess, no final dos anos 40, até as últimas, em 1972(*), 11 anos antes da morte de Waters.
Os registros da caixa também incluem os anos da decadência (meados dos anos 60) e as homenagens do final da década seguinte ('Who's Gonna Be Your Sweet Man When I'm Gonne', gravada em Londres com os então 'garotos' Rory Gallagher, Mitch Mitchell e Rick Grech).
Não são apenas as dez faixas inéditas ou as raridades que tornam este caixote o mais apetitoso da leva da Chess (que já havia lançado um dedicado a Willie Dixon e outro a Chuck Berry), nem as anotações de fascinante leitura feitas por Mary Katherine Aldin (jornalista e radialista, a quem coube detalhar a vida pessoal de Muddy) e Robert Palmer (jornalista e crítico, autor do ensaio sobre a música de Waters) num livreto de 32 páginas que é obrigatório para quem se interessa, ainda que de passagem pelo blues.
'Muddy Waters - The Chess Box' é o compêndio definitivo da trajetória do blues em todo seu esplendor, com  toda a selvageria, com  toda a bravata, com toda a luxúria, com toda a urgência que fez a nata do rock dos anos 60 querer ter nascido preta. E, de preferência, com o nome de Muddy Waters."

(*) Pelo que me consta Muddy Waters gravou discos após 1972. Conheço pelo menos um - "Hard Again", de 1976, com produção e participação de Johnny Winter 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Nico - Uma Deusa do Rock

O rock revelou várias cantoras que se tornaram verdadeiras musas, por sua beleza, charme e encantamento. Cada uma com seu estilo e seu jeito de se portar no palco e fora dele, com sua personalidade e imagem pública. Nos anos 60 e 70, por exemplo, podemos citar Grace Slick (Jefferson Airplane), Marianne Faithfull, Suzy Quatro, ou mais no fim dos anos 70, e chegando aos 80, Debbie Harry (Blondie), além de tantas outras. Mas uma figura especial foi Nico (1938-1988) vocalista da banda cult Velvet Underground. Nico começou como modelo, e ao entrar para o Velvet se tornou musa da vanguarda de Nova York nos final dos anos 60.
Em 1996 Nico ganhou um documentário, que foi comentado pelo jornalista André Barcinski no Jornal do Brasil em 07/01/96 com o título de "Enigmas da musa pop":
"O ótimo documentário Nico Icon, que acaba de estrear nos Estados Unidos, está jogando luz sobre uma das personagens mais interessantes e enigmáticas da cultura pop: Nico (1938-1988), a modelo e cantora que se tornou musa de Andy Warhol, de Lou Reed e de toda a vanguarda nova-iorquina do fim dos anos 60.
Nascida na Alemanha, Christa Päffgen (o nome artístico Nico foi inspirado pelo sobrenome de um namorado) se mudou para Nova York no início dos anos 60, depois de fazer fama nas passarelas de Paris - tanta fama, aliás, que foi escalada por Federico Fellini para interpretar a si própria em La Dolce Vita. Em Nova York ela começou a experimentar variadas formas artísticas, como cinema e música.
Sua beleza gélida atraiu muitos homens, entre eles o ator Alain Dellon (com quem Nico teve um filho, Ari, nunca reconhecido pelo pai) e músicos como Jim Morrison, do The Doors, Jackson Browne, Iggy Pop e Lou Reed. 'Nico era diferente de todas as mulheres que andavam pela Factory (o grande ateliê de Warhol)', diz no filme o escritor James Young, que tocou teclado na banda de Nico nos anos 80. 'Enquanto as mulheres costumavam ser expansivas, Nico era calada, introspectiva. Ela tinha um ar de mistério que atraía os homens'.
Nico e a Velvet Underground
Warhol percebeu a chance de ouro de juntar uma nova banda que tinha urgência em arranjar um vocalista - a Velvet Underground - com uma cantora em busca de uma banda. Em 1967, a Velvet, com Nico e Lou Reed dividindo os vocais, lançou The Velvet Underground & Nico, um dos discos mais influentes do rock.  Com a Velvet, o rock amadureceu e foi elevado à categoria de arte. E Nico teve uma influência decisiva. Sua voz assombrosa em faixas como Femme Fatale, I'll Be Your Mirror e, especialmente, na fantasmagórica All Tomorrow's Parties ajudou a transformar aquele primeiro LP da Velvet Underground em um clássico.
A importância histórica da colaboração de Nico com a Velvet Underground é tamanha que muitos nem se lembram da extensa e bem-sucedida carreira solo que a cantora teve depois de gravar o disco de 1967: foram 14 álbuns solo, entre eles a obra-prima gótica The Marble Index, produzida pelo velvet John Cale. A marca registrada da música de Nico era sua melancolia. 'Sua vida não foi feliz', disse a alemã Susane Ofteringer, diretora do documentário. 'Era natural que essa tristeza se refletisse em sua música'.
O filme de Ofteringer (em exibição até 16 de janeiro no Film Forum, em Nova York) tenta analisar a eterna insatisfação de Nico, uma artista que nunca parecia se sentir à vontade, onde quer que estivesse. Segundo seus amigos, Nico odiava trabalhar como modelo e ser alvo do desejo. 'Ela tinha medo de ser vista como um objeto', diz um deles. A reação contra essa imagem foi a proposital destruição de sua beleza física: Nico começou a usar heroína em quantidades absurdas, tingiu seu cabelo de negro e abandonou de vez a imagem de mulher fatal. 'Ela estava orgulhosa do fato de que seus dentes estavam podres, seu cabelo branco, sua pele ruim, e de que tinha marcas de seringa por todo o corpo. Essa era sua estética', diz James Young.
O documentário traz depoimentos interessantes de amigos e colaboradores de Nico, como os cineastas Paul Morrisey e Jonas Mekas, os músicos John Cale e Sterling Morrison, do Velvet Underground (este, recentemente falecido, vítima de câncer), Jackson Browne, e de antigos membros do grupo de artistas da Factory, como Billy Name e Viva, além de entrevistas emocionantes com o filho de Nico, Ari, e com parentes da cantora. 'Ela era uma pessoa incomum', afirma Ari. Em 1988, Nico morreu em um acidente de bicicleta em Ibiza. Um desfecho bizarro para uma vida incomum."

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Tributo a Stevie Ray Vaughan

Para quem é fã de blues, ou acompanha o mundo do rock, sabe que Stevie Ray Vaughan foi um dos melhores guitarristas que passaram por nós, deixando sua marca como músico. Morto prematuramente em um acidente aéreo em agosto de 1990, Stevie é lembrado e cultuado até hoje. Em um recorte de uma matéria publicada no Jornal do Brasil, sem data, mas talvez dos anos 90, o jornalista e crítico Jamari França fala sobre um show-tributo ao grande guitarrista, que contou com a participação de nomes de peso do blues, em um especial de TV. Com o título de "Tributo a quem somou para o blues", segue abaixo a matéria:
"Stevie Ray Vaughan, um texano branco morto em agosto de 1990 num acidente de helicóptero, foi um dos caras que somaram na cartilha do blues. Uma história que começou a ser tocada na primeira metade do século nos algodoais do Mississipi pelos ex-escravos negros, trabalhando com um instrumento do homem branco, o violão, e botando para fora a tristeza de uma raça arrancada à força de suas raízes e abandonada à própria sorte num mundo hostil.
Os negros criaram o blues, eletrificando-o e o viram ganhar o planeta após os anos 60, quando uma geração de músicos ingleses criou uma nova cultura a partir dele e de seu filho, o rock'n roll (como diz Muddy Waters, 'the blues had a child and it was rock'n roll'). Para celebrar Stevie, seu irmão, Jimmie, guitarrista dos Fabulous Thunderbirds, reuniu um pessoal da pesada para um especial de TV. Stevie Ray Vaughan, a Tribute, que virou CD e vídeo, ambos lançados no Brasil pela Sony, a gravadora da japonesinha insinuante.
Dr. John, Eric Clapton, Robert Cray e Bonnie Raitt
Eric Clapton, Buddy Guy, Robert Cray (que junto com Jimmie, tocaram num festival em Alpine Valley, Wincosin, de onde Stevie sairia no helicóptero que o matou), Bonnie Raitt, B.B. King, Dr. John, Art Neville, o grupo Til-a- Wirl e o Double Trouble, o trio que acompanhava Stevie, viram a alma do avesso em oito músicas para celebrar SRV. No vídeo, derramam adjetivos sobre o homenageado e a inclusão de vários trechos de Stevie tocando mostra que eles têm razão. Palavras como 'intensidade, força e paixão' se repetem nos depoimentos, um locutor menciona a luta dele contra a dependência de drogas (pó e álcool), como influenciou o curso do blues com o domínio absurdo de sua velha Fender Stratocaster, a guitarra que foi a dona absoluta do tributo, com excessão apenas para Lucille, a Gibson 335 de B.B. King.
King e Clapton chamaram atenção para a fluência de Stevie na guitarra: 'Eu toco como numa conversa. Faço frases, às vezes paro para pensar no que vou dizer em seguida. Stevie fluía e fluía, as ideias saindo sem parar. Eu não tenho isso.' diz o mestre Blues Boy. Clapton conta que a primeira vez que ouviu Stevie foi no rádio do carro, e parou no acostamento para escutar, de tão impressionado. 'O que me fascinava nele é que nunca parecia se perder, não fazia uma pausa para pensar no que faria a seguir. Era como um canal aberto.'
Buddy Guy, Jimmie Vaughan, B.B. King e Art Neville
A ruiva Bonnie Raitt abriu a noite com Pride and Joy, arrasando na guitarra escorrida (slide) num número bem agitado com o Double Trouble. Jimmie Vaughan emenda com Texas Flood, intercalando versos com frases de guitarra num estilo rústico, golpeando as cordas com os dedos. B.B. King canta Telephone Song, com  a elegância habitual tanto na roupa, um terno impecável, quanto no estilo de tirar frases curtas e dar puxadas nas cordas de Lucille. Long Way From Home, com Buddy Guy, é cheia de climas na voz e na guitarra; Guy, uma das grandes influências de Stevie, tira efeitos no braço da guitarra e faz escalas curtas. Clapton faz um solo antológico em Ain't Gone'n Give Up On Your Love, enquanto Robert Cray é mais econômico em Love Struck Baby. Aí as guitarras dão vez ao piano boogie de Dr. John, sacolejante em Cold Shot.
A seguir reúnem-se todos para Six Strings Down, com acréscimo de Art Neville no órgão Hammond, uma canção de Neville em homenagem aos grandes músicos mortos, que fazem uma banda no céu. Os três vocalistas negros do Til-a-Whirl arrasam a seguir em Tic Tac, uma canção pacifista de SRV e o final é o SRV Shuffle, um improviso em que todos solam e se divertem. Stevie certamente aplaudiu de pé."

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Caetano Veloso - Entrevista Rara - 1983 (5ª Parte)

"JNM - O que seria a abertura então?
Caetano - A abertura é uma coisa muito nítida, muito fácil de detectar. A abertura é o seguinte: no governo Médici, quando eu voltei de Londres, havia áreas oficiais, que por exemplo, podiam chamar um artista e exigir: 'Você tem que fazer uma música sobre a Transamazônica, senão...' Ameaçavam, entendeu? Tava mal mesmo. E também a censura podia fazer tudo que quisesse. Você se defender legalmente era impossível. Todos aqueles que tivessem uma posição política diferente daquela que tinha tomado o poder no golpe de 64, e reiterado o poder no segundo golpe de 68 não podiam entrar no país, hoje são governadores de estado. Eu acho tão nítido, eu não entendo porque você faz essa pergunta. É nítido, é límpido. Semana passada o Brizola almoçou com Figueiredo, ou tô louco?
JNM - Em 19 anos o Brasil continua cada vez pior...
Caetano - Isso é outra coisa. O Brasil não era bom antes de 64. O mais importante de tudo é isso.  O Brasil nunca prestou. 64 não foi umm cataclisma, 64 foi um modo do Brasil se expressar.
JNM - Eu não vivi 64.
Caetano - Eu me lembro, porque eu sou muito mais velho do que você. Mas não é porque eu me lembro, eu me lembro de antes de 64, sobretudo porque eu sei, eu vejo e leio, e sei o que é o Brasil antes. Houve momentos melhores talvez em alguns períodos, talvez uma maior harmonia, enfim, talvez com D. Pedro II. Eu não sei História direito pra lhe dizer de que foi melhor em algum período. Mas de qualquer forma nunca foi realmente bom. Nunca foi um país democrático, sempre foi exageradamente burocrático, sempre se mexe com papel demais, e tempo demais, nunca houve uma potência construtiva como houve nos Estados Unidos por exemplo. Não houve.  Não é agora querer dizer: ' Nós éramos uma beleza, em 64 vieram esses merdas não se sabe de onde...' Mentira (os militares são brasileiros, expressam a nacionalidade), aliás, do exército saíram coisas das mais importantes, inclusive o partido comunista, uma coisa que nasceu no exército brasileiro. Sabe o que é? Tinham uns quatro gatos pingados que faziam universidade, e faziam um pouco de sociologia e teatro em 63, e que apoiavam vagamente os projetos de reforma de João Goulart... Houve uma bossa sofisticada de uma pequena minoria, universitoide de 63, de dizer que a gente ia fazer um país de esquerda. Isso foi uma coisa que cresceu, que tentou se expressar no Brasil. Os militares da direita tomaram o poder e expressaram o que o Brasil realmente desejava como um todo, e mais do que isso, o que o Brasil realmente podia fazer. É isso. Agora querer enganar a juventude, dizer assim: ' não, nós éramos uma maravilha, aí vieram esses militares não se sabe de onde'. Não se sabe de onde não, eles são daqui, eles representam a gente, eles estão lá em nosso nome.
Caetano e Gal, nos anos 70
JNM - Eles estão em nosso nome?
Caetano - Sem dúvida!
JNM - Como?
Caetano - Eles estão representando o que nós somos como etnia, como sociedade e como civilização
JNM - Em nosso nome? Eles estão lá porque eles se mantém lá. Não é porque nós queremos que eles estejam lá.
Caetano - Não estou dizendo você e eu. Eu estou dizendo em nome da história do Brasil. Em nome de tudo aquilo que faz que o Brasil seja Brasil, e portanto, faz com que você seja você, e eu seja eu. É isso. Não estou dizendo que é fatal que devesse ser necessariamente assim, poderia ser diferente.
JNM - Você falou que as pessoas gostam de ouvir a sua opinião. No show você fala constantemente que se acha bom. Você gosta muito de você? Se acha o máximo?
Caetano - Eu gosto. Eu falei bem de mim ontem porque eu estava sacaneando o pessoal do jornal que falou mal. Mas às vezes eu falo mal de mim. Às vezes eu me sinto muito... não gosto do jeito que eu sou Eu me acho inferior ao Jorge Ben, Tim Maia... Eu não me acho o máximo. Eu falei que eu sou do caralho, que eu sou foda. Eu não falei que eu sou o máximo não.
JNM - Você sempre está falando: 'eu sei que eu sou bom, tá bonito mesmo...'
Caetano - Mas é preciso tomar as palavras pelo que elas são realmente. Se eu dissesse que eu sou o máximo eu ia ter que responder por elas.
JNM - Eu perguntei se você se acha o máximo.
Caetano - É preciso que tenha gente que seja pretenciosa, e eu sou pretencioso.
JNM - Eu havia lhe perguntado se você se sente um olheiro da música...
Caetano - Um pouco assim, um pouco professor, um pouco explicador, e um pouco também eu faço a coisa. No 'press release' do meu disco está escrito assim: ' Eu sei que não sei fazer nada realmente bonito como Tom ou Tim', mas sei que sei dar como falar. É isso. Essa é a minha opinião sobre mim.
JNM - Teve uma época que você disse que não admitia ser caixa de sabão em pó. E nesse disco você disse admtir ser...
Caetano - Sabonete sim, sabão em pó não, jamé.
JNM - Depois dessa conversa toda eu fiquei sabendo que você vai fazer uma música pra Simone, é verdade?
Caetano - Ela sempre me pede, se eu tiver tempo eu faço. Eu já fiz uma vez e ela não gravou.
JNM - Quer dizer que dessa falação toda não ficou...
Caetano - Não, não tenho inimizade nenhuma com a Simone, eu me dou muito bem com ela, nos beijamos muito. Eu falei no assunto, perguntei a ela se ela tinha ficado zangada, e se eu podia continuar sendo amigo dela, ela aí me deu um abraço e um beijo....
JNM - E a música vai sair pra ela?
Caetano -  Se eu tiver tempo eu faço. Quem sabe eu faço uma música chamada 'Sabão em Pó'? "

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Caetano Veloso - Entrevista Rara - 1983 (4ª Parte)

"JNM - Você ainda se sente combatido?
Caetano - Eu me vejo combatido, mas não me sinto combatido.
JNM - Porque e por quem você se vê combatido?
Caetano - Pelas mesmas áreas que eu me referi. Áreas da imprensa, meios universitários mais...
JNM - Exigentes?
Caetano - Não, até um pouquinho menos exigentes. Mas, mais caretas pra essa coisa do que a gente faz. Mas é uma coisa que não tem peso hoje em dia. Hoje em dia, como eu falei na estreia do meu show (Uns), todo mundo fala bem de mim, eu faço sucesso no mercado. Tá ótimo. Eu fiz duas semanas de show aqui no Rio, e o show, você viu ontem, pra mim o show é lindo,mas a imprensa do Rio arrasou, falou mal, eles gostam. Aquilo não me ameaça, não tem peso pra mim...
JNM - Não tem peso, mas o tempo todo no show você fica falando...
Caetano - Mas eu falo assim, porque eu tenho um dever pedagógico de esclarecer e também de combater a mentira.
JNM - Você foi muito combatido pela imprensa aqui do Rio. E no show você falou na imprensa de São Paulo...
Caetano - Em São Paulo eles falaram bem do show e do disco e aqui eles falaram mal, então eu fiz uma brincadeira, eu agradeci a imprensa de São Paulo pelo realismo.
JNM - E como você vê a atuação da imprensa no Brasil?
Caetano - Eu na verdade, eu falo porque eu sou ousado. Eu não leio jornal quase, eu acho chato à beça. Não leio muito jornal, prefiro ler revista do que jornal, mas não leio sempre, tenho preguiça. Eu gosto de ler livro, eu só leio na hora que eu deito. Parar pra ler não, ou eu vou pra praia ou fico conversando com amigos. Eu só leio na hora que eu volto pra casa pra dormir. Aí depois que Dedé dorme eu pego um livro e leio um pouquinho. Então em vez de pegar um livro eu vou pegar a Veja? O Jornal do Brasil então, nem pensar! Às vezes de manhã quando eu acordo, se tiver uns desses jornais aqui em uma mesa... porque eu passei anos sem nem comprar. Porque um jornal é do tamanho de um livro, eu acho, e pra ler um livro eu levo três meses, então como é que eu vou ler um jornal?
JNM - Em que você se baseia para escolher o ano sim  e o ano não. Dizem que no ano 'não' você acaba trabalhando mais...
Caetano - É, por acaso acaba ficando assim. Esse ano é o ano não, e eu tô trabalhando à bessa. É porque no ano sim eu tenho trabalho marcado o ano inteiro, e você sabe que tá trabalhando e tá tudo organizado. No ano não você fica meio disponível, então mil coisas aparecem e você fica mais atrapalhado. Mas o que distingue o ano sim do ano não, é que no ano sim  eu faço excursão pelo Brasil inteiro, quer dizer, todas as capitais e cidades do interior de São Paulo. E no ano não eu só faço Rio, São Paulo e Salvador. Mas aí no ano 'não' aparece: Israel, Paris, Montreux, Nova York, Roma. Aí aparece milhões de coisinhas, e eu acabo trabalhando pra caralho.
JNM - Como a sua música é recebida na Europa?
Caetano - A música brasileira em geral tem um prestígio muito grande nas áreas sofisticadas de todos os países civilizados no mundo, seja no Japão, Itália... Eu tô meio no bolo, graças à eficiência dos meus colegas: Jorge Ben, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Egberto Gismonti, Gal Costa... eu no meio do bolo também posso me apresentar, eles também querem me ouvir. E antes deles Tom Jobim e João Gilberto sobretudo.
JNM - Da América Latina a brasileira seria a mais bem aceita?
Caetano - Na minha opinião é a melhor. Tem a cubana, mas a cubana era assim boa, quando Cuba era um prostíbulo, hoje é mais pra quartel do que pra prostíbulo. De todo modo os americanos e a política dos países de direita da América bloqueiam o intercâmbio cultural em Cuba e a gente nem sabe em que pé está a música cubana. Mas o Djavan me disse que está muito bem, pelo que ele ouviu lá. Então fora a música americana a brasileira é a melhor.
JNM - Você acha que as pessoas ainda se interessam por uma música politizada?
Caetano - Como politizada?
JNM - Uma música mais voltada...
Caetano - Que a letra fale de assuntos sociais? Eu acho que as pessoas se interessam por isso também, e é bom, é natural que as pessoas se interessem.
JNM - O país está uma bagunça sob o slogan de 'Abertura' e ninguém, hoje, está fazendo música preocupado com isso. As pessoas estão mais preocupadas em ficar alienadas...
Caetano - Você acha? Preocupado em ficar alienado é muito, hein? Eu não acho. Eu acho que a abertura é mesmo abertura. Acho que é uma conversa fiada querer dizer que não. Eu me lembro do tempo do Médici muito bem. Eu sei o que o Geisel fez foi fundamental, foi profundamente importante. E espero que possa caminhar para uma coisa dignificante para o Brasil, não sei se vai, não sei se o Brasil tem o pique pra fazer uma coisa melhor. Espero que tenha, pelo menos a música popular se esforça há séculos pra fazer desses lugar um lugar digno e bonito. Vamos ver se o país corresponde à música que tem. Não sei o que virá agora, talvez fosse mais legal manter uma coisa militar, caminhando pra uma coisa mais bacana. Mas talvez agora passemos pra uma coisa civil e continuaremos assim muito atrasadamente brasileiros. Eu não sei.
JNM -  O que é 'muito atrasadamente brasileiros'?
Caetano - Ah, o Brasil é um país atrasado, onde as pessoas morrem de fome. Pô, isso é uma coisa horrorosa, horrorosa. A distribuição de renda é a mais injusta do mundo, nunca resolvem o problema da economia, que é uma coisa que eu não consigo entender, a inflação nunca para..."
(continua)

domingo, 18 de agosto de 2013

Caetano Veloso - Entrevista Rara - 1983 (3ª Parte)

"JNM - Você tem uma preocupação de se mostrar atualizado?
Caetano - Vai ver que eu tenho. Mas eu não noto. Eu tenho é uma vontade de expor o meu gosto, né? Pra todo mundo saber do que é que eu gosto. Porque as pessoas aí pensam naquilo que eu falei. Na verdade as pessoas pensam muito naquilo que eu falo, eu tenho consciência disso, então, eu escolho o que falar.
JNM - Por que você acha que as pessoas pensam muito no que você fala?
Caetano - Porque eu vejo, eu noto. Me perguntam coisas, ficam curiosas sobre minha opinião, então eu vou logo dizendo.
JNM - Você se sente, assim como se fosse um olheiro de música brasileira?
Caetano - Me sinto um pouquinho. Olheiro? Me sinto um pouco responsável. Mas eu  acho que cada um de nós é de fato responsável. Cada um de nós que faz música é de fato responsável. E eu tomo o encargo de demonstrar que sei que nós somos responsáveis. Mas de uma maneira bastante irresponsável.
JNM - Você acha que a crença é necessária?
Caetano - Não. Eu perdi a religiosidade e fiquei ateu. Mas acontece que eu nunca deixei de ser superticioso, e isso é chato. Sinceramente eu não gosto muito do além, da ideia de outro mundo, não tenho simpatia por essa coisa de sobrenatural. Eu gosto da vida, esta aqui. Agora eu tenho uma coisa que é impossível eu deixar de ter, que é o respeito pelo mistério, porque só há mistério, a gente não sabe nada. Então eu tenho respeito pelo mistério, e tenho vícios mentais de supertição, dos quais não gosto. Então, eu tenho uma relação enviesada com religião. Eu voltei a ter uma relaçaõ propriamente religiosa depois de 68, junto ao Tropicalismo. Eu me lembro que no dia que eu cantei 'É Proibido Proibir', eu gritei uma frase linda, que eu acho linda até hoje, mas me assustou e me angustiou durante muito tempo, gritei no 'TUCA', o pessoal me vaiando e entre outras coisas eu gritei assim: 'Deus está solto!' Aí eu fiquei impressionado com aquilo, achei que era uma coisa estranha e bonita ao mesmo tempo. Mas também eu acho que como eu queria impressionar as pessoas, impor uma força, então eu reconheci o valor, pelo menos psicológico e social, da religião, quer dizer, de uma certa forma organizar ou inorganizar o mistério pra exercer poder sobre as outras pessoas. Isso é uma coisa, que sem dúvida nenhuma, a religião faz e eu vi isso. Mas por outro lado eu passei momentos angustiosos na minha vida por causa disso. Eu tomei uma droga chamada auasca e tive uma verdadeira viagem mística. E era ateu nesse período, então era muito difícil incorporar aquilo à minha mente, direito. Mas hoje, pouco a pouco, foi ficando possível. Mas no período foi horroroso, porque pensei quer estava louco. Aí conversdando com Rogério (Duarte, um amigo meu, artista gráfico, escritor e poeta) eu disse assim pra ele: Rogério, é uma coisa brutal porque eu não acredito em Deus... - E ele falou assim: - 'É, não acredita em Deus, mas eu vi'. Foi isso que aconteceu comigo. Aí eu fiquei com uma sensação da religiosidade complicada, e também fiquei com muita impaciência pra um tipo de materialismo grosseiro que o ambiente universitário de esquerda, no qual a gente vivia, alimentava. Eu acho aquilo primário.: 'Ah, a gente sabe tudo, tudo é isso mesmo, é assim, vamos fazer revolução...' Eu achava tudo isso uma bobagem, então a religiosidade também parecia voltar. E ela voltou também com a liberação sexual. Porque a sexualidade, de uma certa forma, é reprimida de uma maneira muito semelhante à maneira pela qual a religiosidade é reprimida.
JNM - Você acha que uma influencia a outra?
Caetano - Eu acho que as duas têm a ver uma com a outra, sem dúvida, mas a repressão que se exerce sobre uma e a repressão que se exerce sobre outra, são de natureza semelhante: reprime-se a sensualidade e a sexualidade assim como se reprime a religiosidade. Eu notei isso também na época do Tropicalismo, e também sobre isso eu quis me manifestar.
JNM - Quando você estava entrevistando o Mick Jagger você falou 'quando eu voltei', depois você corrigiu: 'quando me deixaram voltar'...
Caetano - Aquilo é porque eu estava fingindo que tava perguntando, porque eu já tinha perguntado em inglês. E quando eu perguntei em inglês eu disse isso a ele, porque antes da entrevista, nós ficamos conversando, batendo papo e ele me perguntou sobre o meu período em Londres, então eu contei a ele que eu tava exilado, que eu tinha sido preso e exilado, ele perguntou porque e eu contei rapidamente. Ele não entendeu direito, porque é preciso conhecer o Brasil pra saber porque eu fui preso e exilado. Ele já foi preso algumas vezes por causa de drogas, ele pode ter imaginado que podia ter sido por drogas... Na hora eu tava falando com ele, eu falei: quando me deixaram voltar ao Brasil.
JNM -  Você tem alguma amargura dessa época de sua vida?
Caetano - Eu tive muito mais amargura na época, né? Agora não. Agora sou mais feliz. Acho que aquilo não representa muito no Brasil, eu vejo muito daquilo agora. Agora sou mordido de cobra.
JNM - Você acha que aquilo foi necessário pro seu trabalho ser reconhecido? Porque antes ele era combatido...
Caetano - É. Eu já critiquei muito certa área da curtição brasileira que elegeu o meu trabalho depois que eu fui exilado, e somente por isso, quiseram me confundir com a esquerda. E como eu reagi contra isso, na volta ao Brasil, todos cairam de pau em cima de mim de novo. Mas hoje eu sou muito feliz, porque essa garotada que tem 16 anos agora, e que me adora direto, de uma maneira que a garotada que tinha 16 anos naquela época me adorava. Eles tinham o mesmo preconceito que eu teria tido contra o Raul Seixas. Como eu fui preso e exilado eles resolveram me anistiar, essa gente de esquerda. Mas aí quiseram me confundir com alguma coisa que eles já eram e que eles acharam que eu também era. E eu disse: Não! Não é nada disso. E eles ficaram putos, quiseram me esculhambar, e até hoje tem esse problema. Mas a garotada gosta de mim hoje, que não sabe de nada disso que estou lhe contando, gosta de mim porque gosta. Não tá perguntando se eu fui preso, nem sabe muito. Eu converso muito com 'tietes' meus, garotos e garotas maravilhosos do Brasil inteiro, que falam assim: 'Cara, li em algum lugar que você foi preso uma vez! É verdade?' - Aí eu conto. As pessoas gostam de mim, e não tão perguntando seu eu sou de direita, de esquerda... gosta, gosta de um jeito que naquela época as pessoas não podiam gostar: espontaneamente, diretamente. Agora é  que o que eu faço está chegando naturalmente no Brasil de uma maneira legal. É por isso que eu digo que sou mais feliz."
(continua)

sábado, 17 de agosto de 2013

Caetano Veloso - Entrevista Rara - 1983 (2ª Parte)

" JNM - No seu caso, você teve uma fase de imitar alguma coisa ou alguém?
Caetano - Ah, tive. Tenho. Pelo menos num determinado momento, eu tive a coragem de dizer que eu não temia imitar, que macaquiar alguma coisa não era perigoso pra mim. Às vezes eu imito o Mick Jagger no palco, por momentos, tem momentos que eu faço de propósito. Mas não é isso que eu tô dizendo. É imitar no sentido de você estar fascinado por uma cultura americana, e fingir que não. Fingir que não é, que é muito ruim.
JNM - Não ter medo de se sentir influenciado?
Caetano - É! E saber que aquilo ali é forte mesmo, se apropriar daquilo. Não é questão de imitar. Você está vivendo num tempo que se expressa daquela maneira, se apropriar do modo de expressão do tempo pra você se expressar também. É isso. É uma potência. Você se sentir ali, não se sentir à margem de alguma coisa que está passando, e que é grandiosa. 
JNM - Você esteve  com Mick Jagger e com Peter Gabriel (ex-Genesis). Como começou isso de querer fazer esses contatos? Foi mais como fã, admirador, como foi?
Caetano - Não começou nada. Apenas me convidaram pra fazer essa entrevista pra TV Manchete, eles iam entrevistar o Mick Jagger e me pediram pra ajudar a entrevistar. E eu fiz isso de fato. De volta da Inglaterra eu estava mixando meu disco no estúdio da Polygram, quando chegou um rapaz da parte internacional dizendo que Peter Gabriel estava lá em cima, e que fazia questão de me conhecer, se eu permitia que ele entrasse na minha sala de mixagem. E eu disse:  Tá legal! Aí ele veio, ficou conversando comigo, ouviu umas faixas... Mas eu não sou fã do Genesis, como sou fã do Mick. Foi ele quem quis falar comigo, quis me conhecer.
JNM -  Dessa conversa com o Mick Jagger o que você tirou de importante pra você?
Caetano - Ele tem uma visão para além do rock'n roll, uma visão sofisticada. Você viu ele falando na televisão, ele fala do rock'n roll como se o rock'n roll fosse uma coisa de gente ingênua, mas como se ele não fosse ingênuo. Fiquei curioso, porque ele é aquilo. Uma outra coisa muito importante pra mim foi ver o modo de se realizar esse 'star sistem', esse sistema de estrelato no alto nível do show business internacional, com essa gente moderna da minha geração. Então eu vi o jeito como o Mick transa isso, o jeito dele atuar, como é com a assessora dele. Senti essa coisa, e também o modo dele se comportar, porque ele fala com aquele inglês de classe baixa da Inglaterra, ao mesmo tempo ele usa as roupas mais sofisticadas e de uma maneira mais livre, e tem o comportamento mais aristocrático do final do século XX. E toda aquela coisa ambígua do masculino-feminino que ele tem, também, na proximidade, o modo dele falar varia de garoto pra mulher, ele dá umas pinceladas femininas no meio de uma coisa que não é. Isso é bonito também de ver. Gostei do modo dele ficar com as pessoas, ele tem um sorriso lindo, um olhar... é uma pessoa generosa, boa, uma coisa linda, faz muito charme, quer dizer, ele gosta muito de encantar as outras pessoas. Eu vi isso de perto, gostei muito dele. Achei ele um anjo.
JNM - Você acha que se faz no Brasil rock brasileiro? Na década de 70 o rock esteve um pouco mais calmo, agora parece que está voltando...
Caetano - O que está acontecendo foi que o rock nos anos 70 ficou meio repetitivo, meio sem graça. Mas não foi só o rock, tudo nos anos 70 ficou meio morno. E agora voltou. Tudo isso aconteceu, posso dizer, são ramos do 'rhytm'blues'. E durante os anos 70 o que dominou mais foi a disco music. E um grande ramo do rock'n roll genial, o mais criativo de todos foi o reggae. E no Brasil só teve um esboço genial disso, que foi feito pelo Jorge Ben, antes, muitos anos antes. Quando pintou a coisa do reggae jamaicano, tanto eu quanto Gil percebemos, todo mundo sabe, que aquilo  era o que a gente sonhava. Tanto que Péricles Cavalcanti e eu quando estávamos em Londres sacamos logo. Em Londres eu já fiz uma homenagem ao reggae em 70.
JNM -  Você dise que parece que está voltando...
Caetano - Agora tá na moda rock'n roll de novo. No Brasil tá pintando muitos conjuntos, mais do que jamais houve, nunca houve tantos grupos. É gozado, com um atraso de 10 anos tão fazendo grupos no Brasil.
JNM - Você acha que ainda está se tentando imitar?
Caetano - Ah, sem dúvida! As pessoas andam vestidas como se estivessem em Nova York. Mas eu gosto Você vê que eu dou a maior força.
JNM - O movimento punk, por exemplo?
Caetano - Tudo. O movimento punk, essas coisas new wave daqui do Rio...
JNM - Por que o Brasil estaria aberto para esse tipo de coisa?
Caetano - O que eu gosto no Brasil, é que o Brasil consegue se abrir de uma maneira descarada e potente para essas coisas. Isso é que me interessa, porque aberto pra isso o mundo inteiro está, só que os lugares ficam tristes, e o Brasil não fica tão triste.
JNM - As pessoas estão sempre perguntando porque você está sempre junto das coisas que ainda vão acontecer, ou seja, quando as coisas acontecem você já está bem antes delas... como no caso do Djavan, por exemplo.
Caetano - É. O Djavan foi! Foi mesmo, no primeiro dia que ele foi cantar naquele festival que se chamava Abertura, em 76, 75, terá sido?(*) Quando muito.  Aí eu vi o ensaio, subi no palco e falei pra ele: -Olha aqui, você é meu namorado, adorei sua música, adorei você. Fiquei sacaneando. Aí chamei ele pra ir no apartamento do meu quarto no hotel, e ele ficou cantando uma porção de músicas. Logo no primeiro dia que o vi... É verdade esse caso. A coisa melhor que tinha naquele festival era o Melodia, mas o Melodia eu já conhecia, o Djavan foi uma descoberta. Mas às vezes não, eu perco o bonde. Às vezes passa uma coisa superimportante que não sou eu quem nota.
JNM - Em 'Uns' você menciona Djavan outra vez, passa um pouco pela Blitz ('Eu não soube te amar'), ainda faz questão de falar no Tim Maia. Porque faz tantas referências assim?
Caetano - Eu sempre falo muita coisa, né? Nome de gente... No outro disco botei o nome de 'Cores, Nomes' por causa disso. É um modo de me referir ao meu trabalho, porque eu sempre fiz uma coisa colorida e uso muitos nomes. O Arrigo Barnabé é contra isso, ele já me disse mil vezes: 'Eu não gosto desse negócio de dizer o nome das pessoas nas letras das músicas'. Mas eu gosto, eu gosto de dizer o nome das pessoas. Sempre eu estou fazendo uma música que é um pouco A Festa de Arromba, entendeu? Eu adoro aquela música 'Festa de Arromba', que diz assim: 'Vejam quem chegou de repente, Roberto Carlos com seu novo carrão...' Ia dizendo, aí chegou o Simonal, chegou a Wanderléa... É porque eu tenho muito essa sensação de tá numa festa de arromba, que é a música popular no Brasil. Eu dou a maior força a quem reclama, a quem exige, a quem chia. Mas o meu sentimento é e sempre foi de festa por participar dessa coisa que é a música no Brasil. Verdadeiramente é por isso que eu falo muitos nomes.
JNM - Com isso você demonstra um gosto seu...
Caetano -  Claro que todo mundo vê que eu dou importância à Blitz... Tim Maia eu homenageio.

(*) O Festival Abertura aconteceu em janeiro de 75
(continua)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Caetano Veloso - Entrevista Rara - 1983 (1ª Parte)

Não é muito comum artistas como Caetano Veloso concederem entrevistas a pequenos órgãos de imprensa. Normalmente os artistas consagrados, muitas vezes através de seus assessores, selecionam com muito critério para quais jornais ou revistas eles devam falar. No caso de Caetano, que já tem um histórico pessoal de problemas com a imprensa brasileira, acredito que esse critério deva ser bem rigoroso. Por isso considero como rara essa entrevista concedida por ele em 1983 para um pequeno jornal musical de Belo Horizonte, com uma distribuição restrita, chamado Jornal Nossa Música. Acredito que o acesso ao compositor deve ter sido facilitado com a interferência de seu irmão, Rodrigo Veloso, já que ele é citado nos agradecimentos ao final da entrevista, que foi feita na casa de Caetano por Sara Amorim. Segue abaixo a primeira parte da entrevista:
"Uns acham que ele tem muito a dizer. Outros, nem tanto.
Da Bossa nova a atual onda irrelevante do rock, muita vivência se adquiriu. E nesse ínterim, o tropicalismo foi consequência, sendo o último movimento musical digno de menção.
O tempo passou e começa a se descobrir o parentesco da música que se faz hoje com a que se ouviu ontem. E chancelas começam a surgir, como 'filhos de Rita Lee' ou afilhados do Tropicalismo'. A essência certamente ficou e pode ser vista na continuidade e na irreverência dos vanguardistas - Caetano certamente mencionaria Arrigo Barnabé.
Mas na época nem tudo foi entendido, e nem tantas glórias foram distribuídas. A MPB se dividia entre conservadores - 'a ditadura da MPB', diria Rita Lee - a Jovem Guarda e os tropicalistas, num misto de reminiscência da Bossa Nova e a descoberta brasileira pelo rock.
Caetano teve que sentir o amargo gosto do exílio político, quando a política não estava presente em sua música de uma maneira 'ameaçadora', um tanto pelo contrário. E na volta quase vira bandeira de movimentos universitários. Em defesa de sua neutralidade se debateu.
Não era nem uma coisa nem outra.
Era revolucionar a música e não o país.
Era o que interessava: novos comportamentos, novas vestes e pensamentos, através do movimento tropicalista foram traduzidos.
E hoje se sentindo, particularmente, responsável pelo saldo que a atual MPB apresenta, Caetano se coloca a observar, da cadeira de seus 40 anos, todos os movimentos, pelo menos os seguramente interessantes, que os novos nomes da música brasileira podem trazer. E de observador passa a introduzi-los nas suas composições e no seu comportamento de palco, como se estivesse rejuvelhecendo e assinando em baixo dos trabalhos que admira, na certeza de que será seguido. Um genuíno olheiro da música popular brasileira.
JNN - Na entrevista que você fez ao Mick Jagger você perguntou como ele se definiu pelo rock. Então, eu pergunto a você: se naquela época já existia o rock no Brasil, porque você foi pelo caminho da Bossa Nova?
Caetano - Todo o pessoal da minha geração, quer dizer, gente que estudou e entrou na Universidade, uma gente mais politizada e que se interessou por música., não enveredou pelo rock. O pessoal que se interessou pelo rock era uma gente mais ignorante. Por isso eu fiz essa pergunta ao Mick Jagger, porque eu suponho que aquilo ali é uma questão de viver num mundo como o dele. Na resposta dele ele disse que não só o Brasil, mas na Europa Continental, na França, na Itália... aconteceu a mesma coisa, as pessoas se interessaram mais por jazz do que por rock'n roll. Mas que na Inglaterra, ninguém sabe porque, as pessoas se interessaram por rock. Eu, na verdade, era esse tipo de garoto do Brasil, universitário. Ao mesmo tempo em que eu gostava de cinema, jazz, eu não ligava pra rock'n roll, porque achava muito vulgar. Depois é que eu saquei, após conhecer o rock'n rol, mas pra isso foi preciso os Beatles e os Rolling Stones.
JNN - Na época tinha o Raul Seixas, que era rock numa posição meio marginal...
Caetano - O Raul Seixas e o pessoal do rock... era porque a gente era uma gente mais sofisticada intelectualmente. Eu não conhecia, mas ouvia falar 'Raulzito e Seus Panteras', que era um grupo de rock que tinha em Salvador, e nós éramos um grupo de Bossa Nova. Eu adoro o Raul, o primeiro disco dele eu acho absolutamente genial. Mas tem coisas que eu já não gosto mesmo, por exemplo, o folclore dos anos 50, o folclore estudantil-urbano e americano dos anos 50 em que as pessoas dizem que têm nostalgia e querem imitar e tal... eu tenho horror àquilo. Eu não gosto dos anos 50, não gosto daqueles americanos, daquela época, acho chato. Aqueles meninos machistas, com roupas de couro, moto, cabelos curtos com vaselina, eu não gosto de nada daquilo. E o  Raul gostava daquilo, e gosta, ele imitava aquilo. A gente achava aquilo, não o Raulzito, que eu não conhecia, mas ideia, eu achava horrorosa. Por exemplo, eu adoro James Dean, mas o James Dean parecia ser uma imitação grotesca da coisa americana, ele era o inadaptado daquele mundo. Aquele pessoal da Bahia, como aqui no Rio, São Paulo queria imitar a coisa direta, e fica meio grotesco porque os brasileiros são meio fraquinhos, subdesenvolvidos, mal alimentados, então, ficava aqueles... os americanos eram aqueles gatos, fortes com aquelas roupas... E os brasileiros ficavam meio ridículos. Mas não faz mal, porque no fundo eles contribuíram para uma coisa que eu acho muito bacana, que eu acho legal imitar os americanos em muitas coisas.
JNM - Como assim? Em música, comportamento?
Caetano - Em tudo, em comportamento, em música, em tudo, eu acho legal. Nessa época eu não tinha coragem, não tinha disponibilidade. E o Raulzito tinha, entendeu? Por isso ele tava na minha frente.
JNM - Por que seria legal imitar?
Caetano - Eu acho legal em primeiro lugar porque a gente tem vontade, se tem vontade é melhor imitar do que se reprimir. Em segundo lugar porque os Estados Unidos têm coisas que a gente devia aprender a ter. Então é por isso. Simples assim.
JNM - Por que você acha que o Brasil está mais aberto à invasão da música estrangeira?
Caetano - Você veja que os Beatles e os  Rolling Stones existiram e são a coisa mais importante, cultural, da última metade do século XX, exatamente por eles terem sido garotos ingleses que quiseram imitar os americanos e imitaram. O que o Raul Seixas queria fazer o Mick Jagger fez, foi tudo naquilo. Agora, ele tinha uma grande vantagem, porque ele é de  um país mãe dos Estados Unidos, e falam a mesma língua. Então ele, John Lennon, Paul McCartney... essa gente imitou os americanos tão ridiculamente quanto o Raul Seixas, ou seja, tão genialmente quanto o Raul. Só que lá, além da grana, eles têm a língua Mas eles abriram as pernas para a cultura de massa americana, por isso que eles criaram uma coisa genial, eles não reprimiram a vontade de imitar. Uma das coisas mais importantes que aconteceu nessa entrevista com o Mick Jagger, e que certamente não deu pra notar pelos espectadores brasileiros, mas que eu vi  depois aqui em casa, sem a tradução, a gente nota, que é uma coisa genial que ele fala assim: - apareceu na televisão, mas a gente falando português em cima esconde, - mas ele diz assim: que quando eles eram meninos, que eles queriam imitar a coisa americana, e que os próprios americanos, assim, do nível social deles, não tinham interesse pelo rock'n roll que eles na Inglaterra tinham. Ele quis dizer o seguinte: 'quando a gente veio pros Estados Unidos, os Beatles e nós, a gente é que despertou o interesse da maioria dos americanos para esse tipo de música, que era feita aqui, que era o rock'n roll, que tinha, que fazia sucesso mas que ninguém respeitava.' Mas na hora dele falar isso, ele não diz 'quando nós viemos para os Estados Unidos', ele diz 'quando nós voltamos para os Estados Unidos'. ele era tão alienado, como se diria aqui no Brasil, ele era tão deslumbrado por querer ser americano que ainda hoje, com 40 anos, ele cometeu esse ato falho. Ele errou, é lindo isso, né? De modo que é uma lição. Por isso que eu digo que eu acho mais bonito imitar quando se tem desejo. E os Beatles e os Rolling Stones foram a prova de que isso pode ter o melhor resultado artístico, cultural e humano, político e social possível. Enquanto que no Brasil, isso foi o que nós quisemos dizer durante o Tropicalismo, e ninguém entendeu, quer dizer, o medo de imitar, de soltar esses desejos tem levado a uma coisa preconceituosa, a atitudes imponentes, a uma coisa chata que atrasa tudo."
(continua)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eric Burdon & War - Funk Velho de Guerra

Eric Burdon, líder da banda inglesa The Animals um dia resolveu mudar radicalmente de estilo musical. Ligado em black music, Eric teve a ousadia de se juntar a um grupo de negões da mais alta estirpe black, que formavam a banda War, e fazer um som  com eles. O resultado foi o melhor possível, em dois ótimos discos. Após a saída de Burdon a banda continuou fazendo seu som com muito suíngue e balanço, e com certeza também absorveu influências do velho rocker, pois seu som também traz altas doses de rock. Basta ouvir seus discos. Abaixo transcrevo uma entrevista para a revista Vírus com Loonie Jordan, único membro original ainda na banda no final dos anos 90, quando saiu a publicação. A matéria é assinada por Rodrigo Brandão:
"Em algum ponto da virada dos 60 para os 70, Eric Burdon se encheu dos Animals e foi tirar um som com uma turma de negros latinos, meio malandros, meio freaks de nome War. Juntos gravaram dois álbuns muito bons.  Durante a turnê europeia do segundo disco, Eric caiu fora e o grupo continuou por conta. De lá para cá, muitos integrantes foram trocados, alguns morreram, mas o War continua na ativa, inclusive gravando disco novo. A Vírus trocou uma ideia com o único remanescente original dos guerreiros do funk, o tecladista e vocalista Loonie Jordan.
Muita gente já sampleou músicas de vocês. Beastye Boys, Portishead e Guru são apenas alguns exemplos. O que você acha disso?
Fico muito honrado que todos eles reconheçam o valor da nossa música. Estou lisonjeado. É ótimo.
O que vocês andam fazendo atualmente?
No momento estamos no meio da gravação de um novo álbum, mas eu sou o único membro da formação original.
Fale um pouco sobre o vídeo de 'Peace Sign'. Ele tem participação de Ace Cube, não é mesmo?
Sim, Ace Cube está no vídeo. Assim como um monte de gente de várias gangues, mesmo rivais. A nossa mensagem para a molecada é a de que dois dedos para cima quer dizer 'paz' e não é nenhum sinal de gangue alguma, mas um sinal que todo mundo pode fazer. O negócio é paz, não violência.
Então o nome da banda é meio contraditório, concorda?
É que a gente escolheu o nome durante a guerra do Vietnã. Decidimos nos chamar War porque a mensagem era guerra contra todas as guerras no mundo e nas ruas. Queremos paz! E dizíamos: 'Que tal parar de pegar em armas e sair atirando por aí, e passar a pegar em instrumentos musicais e tirar belas notas?
Como você vê essa volta do funk nos anos 90?
Na real, isso tudo sempre esteve por aí e foi ficando cada vez mais forte, principalmente nós. O War é a música funk se fortalecendo a cada ano. Nos anos 90, o que estamos vendo é apenas uma outra versão do estilo.
É verdade que vocês chegaram a fazer uma jam session com Jimi Hendrix?
Três dias antes de ele morrer, a gente fez um som numa casa noturna na Inglaterra. Ele tinha vindo alguns dias antes ao teatro onde estávamos nos apresentando, mas não chegamos a fazer uma jam. Ele veio dar uma sacada na banda e encontrar Eric Burdon, com  quem a gente tocava na época. Depois de algumas noites ele voltou e foi aí que aconteceu.
Conte um pouco sobre o período em que vocês tocavam.
Quando era pequeno, relacionava o blues com gente bebendo e brigando. Costumava ver meus pais e seus amigos jogando baralho e tudo que eu ouvia era Jimmy Reed: 'You got me runnin', you got me runnin' ' (cantarola). Eles brigavam e eu ficava assustado. Eram galões e mais galões do velho whisky de milho (risos). Talvez por isso eu não seja muito fã de blues. Mas eu adoro black music, inclusive, adoro música brasileira! Gente como Astrud Gilberto, Gil Gilberto (sic) e Djavan. Mas o meu favorito é Antonio Carlos Jobim.
Aproveitando a deixa, qual são suas principais influências?
Jazz, funk, música latina e brasileira.
E o resto da banda?
Bem, a rapaziada nova é muito influenciada pelo próprio War."