Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Pasquim Fala dos 20 Anos da Tropicália (1988)

Em 1988 o movimento tropicalista fazia 20 anos, e na ocasião o jornal O Pasquim fez uma ampla matéria, de quatro páginas, sobre o assunto. Um dos textos que fazem parte da matéria fala sobre a reação dos poetas concretistas ao movimento e seu apoio à estética da tropicália, que como o concretismo, buscava quebrar barreiras. Abaixo, transcrevo o texto, que não vem assinado, intitulado "Os aplausos antropófagos", embora, apesar do título, pouco se fala sobre os concretistas:
"Pelo menos dois caminhos levaram ao tropicalismo. Um passa pelo grupo de concretistas de São Paulo (Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari) que, desde o início dos anos 60, defendiam uma arte útil, que se infiltrasse nos meios de comunicação de massa, com 'ênfase visual, ligado às técnicas da publicidade, das manchetes de jornal às histórias em quadrinhos.'
Esses intelectuais, hoje confinados às pesquisas sobre literatura e comunicação na PUC de São Paulo, tiveram grande influência na época - por exemplo, sobre Hélio Oiticica, nas artes plásticas. Eles se inspiraram na antropofagia de Oswald de Andrade, 'o culto da estética instintiva da terra nova', expresso no Manifesto Pau Brasil, de algumas décadas de Augusto de Campos. Na interpretação de Augusto de Campos, tratava-se de canibalizar, mesmo, 'devorar as técnicas e informações dos países desenvolvidos, para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em produto de exportação'. Agir como o antropófago, que devora o inimigo para adquirir suas qualidades.
O segundo caminho tem início menos erudito. Começa na Bahia, de onde vieram para o Rio alguns jovens artistas: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Gil chega a ser militante do grupo nacionalista, que se opunha às guitarras na música brasileira. Ele e Caetano, que jamais gostou de política, terminaram numa prisão da ditadura militar. Tiveram a cabeça raspada, foram levados para a Bahia, impedidos de aparecer ou dar entrevistas e, afinal, por acordo com seus carcereiros, asilaram-se voluntariamente em Londres. Como isso aconteceu?
A explicação só tem sentido no clima de radicalismo ideológico de 1968. Paralelamente ao Festival da Canção da Globo, houve um happening tropicalista na boate Sucata, de Ricardo Amaral. Era uma espécie de resposta ou desagravo às vaias do Tuca, de São Paulo. No cenário, dominava a bandeira de Hélio Oiticica, com sua legenda: 'Seja marginal, seja heroi'. a certa altura, Os Mutantes dedilhavam no violão alguns acordes que os censores acharam parecidos com os do Hino Nacional.
A delação corria solta no meio artístico. O ódio dos militares se concentrava em Geraldo Vandré, autor de Caminhando. Por contágio, atingia tudo que era diferente, inusitado. Zuenir Ventura cita um radialista, Randal Juliano, como responsável pela decisão de prender Caetano e Gil, tão logo um juiz proibiu o show da boate Sucata. Daí a cabeça raspada (os cabelos grandes na época incomodavam muito) e, não se tendo constatado qualquer culpa, o exílio na Bahia, onde os dois tinham que se apresentar diariamente a um oficial do Exército.
Caetano comentou, em 1972, de volta de Londres, que havia se tornado, em 68, um ídolo 'para consumo de intelectuais, jornalistas, universitários em transe'. E completou: 'Na sua miséria, a intelectualidade brasileira via em mim um porta-estandarte, um salvador, um bode expiatório'.
Caetano, com Macalé ao fundo
Todos esses fatos eram surpreendentes para o jovem baiano que, anos antes, alertado pela irmã Maria Bethânia para o sucesso que fazia a jovem guarda, teve a ideia de se fazer acompanhar pelos Blue Boys (*) em Alegria, Alegria - sem saber o quanto era feroz a briga entre nacionalistas e internacionalistas. Isto o incompatibilizou com a plateia do Tuca: as roupas, os gestos, o rapagão louro foram acessórios na grande vaia. Mas essas roupas e gestos irritaram, mais que tudo, os militares radicais, convencidos, na época, de que o movimento hippie era uma armação para minar a estrutura da família brasileira."

(*) Na verdade o grupo que acompanhou Caetano em Alegria Alegria se chamava Beat Boys

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A Guitarra Fenomenal de Roy Buchanan

Roy Buchanan (1940-1988) foi um grande guitarrista de rock e blues. Possuía uma técnica e um fraseado que o credenciava a ser classificado entre os grandes mestres de seu instrumento, embora sua popularidade não o colocasse ao lado de outros grandes mestres guitarristas mais conhecidos e cultuados. Mas aqueles que conheceram o seu trabalho e os discos que gravou podem dizer que Buchanan foi um dos maiores guitarristas de seu tempo. Infelizmente, ele teve uma morte prematura e trágica, além de cercada de mistério, que é relatada abaixo, num texto do jornalista José Emílio Rondeau, publicada em O Globo, em 23/10/88:
"Venerado pelos colegas, virtual desconhecido para o público, o guitarrista norte-americano de country-blues Roy Buchanan teve um fim enigmático, após uma carreira errática de mais de três décadas. No dia 14 de agosto, ele foi encontrado morto numa das celas da Fairfax Country Adult Detention Center, no Estado de Virgínia. Roy estava enforcado, pendendo das grades da janela de sua cela, para onde fora levado, a pedido da própria esposa, para 'gastar' uma bebedeira. Aqui começa o mistério: os legistas encarregados da autópsia deram como 'causa mortis' uma parada cardíaca. Mais tarde mudaram o veredito para suicídio. Roy Buchanan tinha 48 anos.
A conclusão dos legistas conflita com declarações de amigos de Roy, segundo os quais Buchanan passava por uma fase artística e pessoal ótima e feliz. Ele acabara de lançar o álbum 'Hot Wires' (pelo selo independente Alligator Records) - considerado o melhor de uma discografia que inclui uma dúzia de títulos - e planejava um disco exclusivamente instrumental.
Dias antes de morrer, Buchanan também assinara um contrato com um fabricante de guitarras pela qual seria lançada uma série de instrumentos levando o nome e a chancela do artista. Até meados de outubro não havia sido feita nenhuma outra declaração oficial a respeito da morte de Roy.
Havia quem chamasse Roy Buchanan de 'o guitarrista mais egoísta do mundo' - daqueles que não ensinam dicas e truques de seu ofício. Mesmo assim, gerações sucessivas de músicos - entre eles Jeff Beck, Eric Clapton, e Robbie Robertson - sofreram influências variadas do instrumentista que, segundo conta a lenda, por pouco nãp substituiu Brian Jones nos Rolling Stones.
Roy Buchanan nasceu nas montanhas de Ozark, no Estado de Arkansas, mas foi criado na Califórnia, sob constante presença de hinos religiosos cantados na igreja do pai, um pastor pentecostal. O próprio pai encorajou o pequeno Roy a aprender guitarra e aos sete anos o garoto já ensaiava os primeiros acordes. Oito anos mais tarde, Roy fugiu de casa para juntar-se à banda de R&B  de Johnny Ottis, em Los Angeles. Depois disso, trabalhou com Dale Hawkins ('Suzie Q'), Ronnie Hawkins (sem parentesco) e The Hawks (a banda que acompanhava Ronnie e que, no futuro, viraria a The Band), Merle Kilgore (country) e Bobby Gregg (baterista).
O semi-anonimato de Roy terminou em 1971, com um documentário feito pela cadeia de TV Educativa dos Estados Unidos, a PBS, intitulado 'O maior guitarrista desconhecido do mundo'. Entretanto, a fama súbita não impediu que Roy vagasse por três gravadoras diferentes, fazendo discos irregulares que poucas vezes capturavam o fogo que ele tinha ao vivo. Tampouco ajudavam o vai-e-vem de opiniões relativas ao repertório do artista: em determinado momento, Roy foi obrigado a gravar um compacto discotheque. Para quem não conhece Buchanan, uma boa oportunidade é tentar achar o vídeo 'Roy Orbinson and Friends', onde ele aparece duelando com Bruce Springsteen."

sábado, 5 de outubro de 2013

Raul Seixas Fala de Filosofia e Música - 1976

O trabalho de Raul Seixas foi marcado pelo alto teor filosófico (principalmente na fase de sua parceria com Paulo Coelho) e uma postura anárquica e irreverente. Em 1976 Raul lançava seu quarto disco solo "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás", e ainda na fase de gravação e finalização do trabalho, escreveu um texto para o jornal Hit Pop, um tabloide que acompanhava a revista Pop, onde ele fala sobre a fase de preparação do álbum, que estava prestes a ser lançado. Abaixo, transcrevo o texto de Raul:


“No momento não existe no mundo nada novo. As águas parecem pedras. Existe um vazio, um momento caótico no que se refere a qualquer esfera de movimento das ‘coisas do homem’. A arte é o espelho social de uma época e tudo o que se passa. O artista, criador, sente profundamente, e conscientemente ou não, acaba por comunicar esse momento dentro do seu próprio prisma. E existem tantos prismas como existem muralhas. Embaixo desse mar petrificado o comunicador tenta, com seus instrumentos de trabalho, ajudar a ordem natural das coisas a movimentar-se de novo. Ajuda, sem impor, à despetrificação do rio para que as águas do processo histórico continuem a correr. Nada acaba. Tudo é mutável.
Eu escolhi ser artista no sentido de viver nessa sociedade, dando meus gritos e pontos de vista, e ser ao mesmo tempo, um bom surfista na onda da frente, de onde vislumbro intuitivamente o Novo momento. O novo chegou e só quem pode detectar o novo é aquele que dispõe de um olho Novo, caso contrário vai ser sempre o Novo em sua frente como velho. É como meu parceiro Paulo Coelho diz: ‘a humanidade caminha como se dirigindo um carro e captando o momento presente através de um espelho retrovisor. Ora, quando se dá o insight do presente vivido naquele instante, o retrovisor do carro já fez o momento percebido se transformar em passado.’ E assim se torna mais fácil e mais cômodo deixar as coisas como estão, como medo de viver ou enfrentar um Novo desconhecido.
 
Estou pouco a pouco vencendo meus problemas que deixam de existir à medida em que eu me sinto bem sem eles. Isso para mim é a única medida utilizada para saber o que quero na vida. Me faz bem isso e não me faz bem ou feliz aquilo.
Há Dez Mil Anos Atrás, que é o disco que estou gravando agora, foi, digamos, uma nova muralha que galguei e pulei. Sei que há muitas muralhas.
Meu objetivo fundamental sempre foi o homem e sua equação. Eu, como homem, continuador da história em ’10 mil anos atrás’, me senti como o velhinho da esquina da Rio Branco, como Jesus, amor, assassino, bruxos e bruxas em fogo. Moisés, Maomé, Pedro, o apóstolo, o papa, o drama Babilônico, Drácula, discos voadores e arca de Noé, Salomão, Zumbi dos Palmares, Hitler ou um soldado solitário. Minha cabeça se projetava em livros sagrados entre Gitas e Umbanda. Fui macaco, Rapunzel e tudo mais que eu vivi por esses séculos me provaram que as águas petrificadas do rio estão próximas a correr de novo. E aquém disser que estou mentindo, tiro o chapéu.
Sobre o LP Há 10 Mil Anos Atrás, digo que está sendo preparado por mim e pelo Paulo Coelho com todo vapor que temos em nós. A primeira fase das composições já está praticamente terminada, pois desta vez estamos mais ligados e trabalhando juntos em letras e músicas, sem ficar aquela coisa de botar letras nas músicas dele ou eu botar música nas letras do Paulo. Assim, brigando, discutindo, 3 horas da manhã, entre cafezinhos requentados, estamos no final não só da relação das músicas, mas na concepção global do trabalho. É um Lp muito claro e muito bonito.
 
A próxima fase é comigo e com meu velho e predileto maestro Miguel Cidras Rivas, que virá passar algumas semanas aqui em casa em ordem de ouvirmos discos, falar de músicos, arte, burilarmos as orquestrações em códigos diferentes que um outro maestro faria. Meu trabalho com o maestro Miguel é incrível! Mostro para ele exatamente o feeling de uma passagem musical e ele a capta por intermédio de um código meu que só ele se acostumou a sentir. Por exemplo, eu digo: ‘Miguel, aqui nessa frase... me ensina a segurar... a barra de te amar... eu quero uma harmonia azul turquesa com... assim um cheiro leve de jasmim mas ao mesmo tempo a nota dissonante tem que ser como um som  da pancada de um carimbo de um tabelião às cinco horas da tarde no centro da cidade... entendeu? E ele sempre entende e pega e escreve exatamente o que eu ‘sensoriava’. Ouro de Tolo, Gita, Trem das 7, essas músicas foram orquestradas assim desse jeito abstrato.
Há Dez Mil Anos Atrás será gravado no estúdio de 16 canais da Philips e logo estará pronto, pois vou entrar no estúdio com todo o trabalho já pronto. É bem mais fácil e perfeito assim. Vou gravar a maior parte do Lp com o grupo Flamboyant e mais a guitarra de meu cunhado Gay Vaquer (aquele americano que gravou aquele Lp ‘20 Anos de Rock’ comigo), Ele é indispensável nesse trabalho. No mais, estou ansioso para essa nova fase de um novo disco a mais chegar ao ouvido dos que ouvirão.
OS: De resto... só cortei meu cabelo bem baixinho. Me retei e cortei.”

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Chico Buarque na Bronca - Revista Careta - 1981 (2ª Parte)

"Como um lobo sabido e atento, a Polygram enviou, em janeiro, no dia seguinte à expiração (por decurso de prazo) do contrato de Chico, um protesto judicial à Ariola, advertindo para que esta não colocasse em funcionamento o contrato com o cantor, pois ele continuava preso a sua antiga grvadora, através de respeitável dívida. Passarinho sim, Chico, mas na gaiola do lobo.
E agora? O departamento jurídico da Ariola afirma que agiu muito criteriosamente, como manda o figuriino. Ou seja: antes de firmar o contrato com Chico vasculhou todos os cartórios, e só encontrou registrado o último contrato (assinado a 30 de março de 1977, e registrado a 5 de maio daquele ano), pelo qual o cantor deve à Polygram apenas duas obras. 'E sobre elas, que representam um compacto - afirma a gravadora alemã -, estamos totalmente dispostos a entrar em acordo. Mas não sobre  4 LPs!' E, mais ainda, para demonstrar que a Polygram não está jogando limpo, o advogado da Ariola, Danilo Rocha, exibe a última página do 'contrato anterior', de 1974, onde aparece o registro em cartório feito a 16 de janeiro de 1981! 'Como podemos aceitar como válido um contrato registrado seis anos depois! Assinamos o nosso com o Chico a 31 de dezembro de 1979, e naquela época esse de 1974 não estava registrado, portanto não existia para terceiros.'
Tranquilo, Jorge Costa, o advogado do lobo, responde que o contrato, mesmo não registrado na ocasião, vale sim, se vale, na medida em que o de 1977 menciona a sua existência e o incorpora, o mesmo ocorrendo com todos os contratos anteriores, desde 1971, redigidos de maneira semelhante. Muito cioso o advogado explica ainda que a Polygram (sem dúvida preocupada com os destinos da música popular brasileira) não se coloca contra o Chico, mas contra a  Ariola, que assinou o contrato assim dessa forma, quando não podia fazê-lo. 'Estamos com o Chico, não contra ele', insiste o Dr. José. Ouvindo frase tão calorosa e desprendida, não consigo deixar de pensar que são amigos como esse que lascam a nossa vida. Tão bom se eles não existissem, ou tivessem a dignidade de se declarar inimigos, sem tergiversar. Selva danada, essa.
Por sua vez, Roberto Menescal, o executivo de calça Lee do lobo, acrescenta, muito solene: 'Questão de interpretação, questão de interpretação do contrato. Cada um olha de um jeito, e por isso também existe o juiz para ser mediador.' Defendendo bem as suas cores, ele fala claramente: 'Não estamos a fim de perder o Chico, nenhuma gravadora estaria, e vamos fazer tudo para não perdê-lo!' Mas Menescal, Menescal, pondero eu, e a música popular brasileira? Esta questão pode se arrastar por dois ou três anos, você, afinal, como compositor, não acha que é um grande prejuízo para nossa música, o Chico, o Chico Buarque de Hollanda, ficar sem gravar tanto tempo?! Nem por isso ele esquenta a cabeça: 'Não será a primeira vez que Chico não gravará durante dois ou três anos, ele já fez isso antes e, depois, você não acha também que 4 LPs do Chico não realizados representam um grande prejuízo para a gravadora?' Sem dúvida, Menescal, questão de perspectiva. Você se preocupa com os prejuízos da Polygram, e outros, como eu, o do Chico e da música popular brasileira.
A conversa prossegue e Roberto Menescal faz questão de destacar que não gosta de tratar dessas coisas não. 'Para resolvê-las existe o departamento jurídico, o advogado. Cada um na sua, ele de terno e eu de calça Lee. 'Lembra depois, convicto, que os contratos do Chico foram feitos 'pelo tio dele', a Polygram limitou-se simplesmente a aceitá-los. (Segundo pude apurar, apenas o primeiro contrato, de 1969, foi feito mesmo pelo tio, pois o cantor se encontrava na Itália, e então recorreu ao irmão de sua mãe. Mas, no de 1971, o tio já estava totalmente fora da jogada, pois Chico retornara ao Brasil).
Finalmente, Menescal aproveita a oportunidade até para tripudiar um pouco, vejam só, 'Sabe - diz-me ele - se der, até faço outra musiquinha com o Chico. Já tenho mesmo uma música para ele botar a letra, só tou meio envergonhado de no meio desse bolo mostrar para ele...' Qual é, Menescal?
Mergulhado até o pescoço em todo esse 'imbroglio' fica Chico tenso, nervoso, acabrunhado, sem ânimo nem cabeça para trabalhar, para criar. O seu próprio processo criativo é o mais atingido. A Ariola diz que vai gravar um disco com  ele até o fim do ano, de qualquer jeito, mesmo correndo o risco de ser processada. Será mesmo? A essa altura, ele já deveria estar no estúdio, e não está. Por outro lado, produzir músicas para outro cantor, ou uma peça, segundo ele, é muito diferente do que produzir para seu próprio disco. A motivação deste último é muito maior. Sem falar que o clima de tensão já se prolonga por mais de um ano. - como criar qualquer coisa assim? É, a Polygram talvez esteja perdendo uma boa nota, porém, Chico e nossa música, certamente, perdem coisas bem mais importantes.
'Incrível, quando termina a censura, a pressão oficial, etc, começa outra coisa. É muita coincidência. Uma coisa substitui a outra. Mas olhe, se eu soubesse que ia ser assim... fazia tudo de novo'. É isso aí, Chico."

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Chico Buarque na Bronca - Revista Careta - 1981 (1ª Parte)

Em 1981 Chico Buarque trocou de gravadora. Depois de anos na Polygram, assinou com o selo Ariola, que acabara de se estabelecer no Brasil. Mas essa transição não foi tranquila, pois por questões legais e contratuais Chico ficou impedido de lançar o disco que estava planejando. Essa questão acabou estremecendo sua relação com o produtor Roberto Menescal, diretor de sua antiga gravadora, que inclusive havia sido recentemente seu parceiro em "Bye Bye Brasil", tema do filme de Cacá Diegues. Essa situação acabou inspirando Chico a compor "A Voz do Dono e o Dono da Voz", onde ele ironiza a situação, que ele gravou em "Almanaque",seu primeiro e adiado disco na nova gravadora.
Em sua edição de julho de 1981 a revista Careta descreve a situação em uma matéria assinada por Helena Salém, intitulada "O Lobo Silencia Chico". Segue abaixo a primeira parte:
"Chico Buarque anda tenso, nervoso, acabrunhado. A essa altura, já devia estar gravando seu novo LP, produzindo, cantando. Mas não pode. É que ele se viu enredado na armadilha do lobo. Uma armadilha bem pensada, preparada, de quem não brinca em serviço. Explico: sem a malícia necessária, Chico tratou o lobo (leia-se : a Polygram, gravadora holandesa multinacional) como se fose gente, numa boa. Relaxou, deu, recebeu como só se faz entre as pessoas. Enquanto ele disse sim, tudo bem, a fera também riu, parecendo mesmo gente. Até que o cantor resolveu dizer não, deixar aquele domínio ferino. Então aí ela esbravejou, com  as garras e os dentes em riste: 'Alto lá, rapazinho, sou lobo, não sou gente, se você se esqueceu, azar o seu.'
Azar o do Chico, e da música popular brasileira. Eles que se danem, não o lobo multinacional. Afinal, foi para isso que ele sempre armou suas armadilhas, mesmo quando não pareciam importantes. Mas elas estavam lá, rapidamente acionáveis, se fosse o caso. E foi. Depois de gravar durante 11 anos com a Polygram, renovando sucessivamente seus contratos, Chico Buarque decidiu fazer as malas e ir para outra gravadora, a Ariola (multinacional alemã), que lhe ofereceu condições bem melhores de trabalho e remuneração. O último contrato de Chico com a Polygram, de três anos, vencia a 8 de janeiro último, e por isso mesmo o cantor, um ano antes, assinou com a Ariola um outro contrato (de dois anos), para vigorar a partir do dia 9 de janeiro.
Negociação para lá, negociação para cá, ainda com o aspecto de gente, a Polygram fez o que pôde para conservar o seu cantor, um produto que vende, e muito. Não conseguiu. A proposta da concorrente era materialmente muito melhor, por que Chico não a aceitaria? Multinacional por multinacional, ora, há de se escolher a mais generosa (?). Crente que era passarinho, dono de seu destino, Chico foi em frente. E logo, esbarrou com o lobo, que lhe arreganhou um sorriso todo poderoso.
'Tá pensando que vai partir assim, como quer, qual, qual!' - disse-´lhe então o lobo, enfurecido. 'Vai não senhor, porque não pode não.' E, com aquelas patas horríveis, unhas imensas e venenosas, empunhou vitorioso sua armadilha: o contrato. O contrato, com 17 cláusulas, muito bem pensadinhas, que Chico assinara em março de 1977, como sempre fizera no passado, sem dar muita importância aos seus meandros e particularidades, numa boa, relaxado. Por exemplo: ele nem dera atenção à cláusula nº 11, que afirmava: 'Fica incorporado nesta data o contrato anterior de interpretação, assinado em 7 de janeiro de 1974.' Detalhe: pelo 'contrato anterior', Chico deveria gravar 60 obras (faixas) em quatro anos, equivalentes a cinco LPs. E pelo contrato de 1977, 48 obras em três anos. Sendo que, segundo a regulamentação vigente (favorável às gravadoras, evidentemente), não são computadas como 'obras' as faixas de um LP não interpretadas pelo cantor (como a maioria de 'A ópera do malandro'), assim como cantam somente apenas como 'meia-obra' aquelas interpretadas em parceria com outro cantor (como 'Que Será', com Milton Nascimento).
'Eu assinava aqueles contratos', explica Chico, irritado, ' nunca pensando em cumprir, e não cumpria mesmo. Impossível para mim fazer mais de um LP por ano, ainda mais que eu sou compositor. Não dá. Mas tudo era feito num clima de cordialidade, não me passava pela cabeça que poderia vir a ter problemas'. Bobeou com o lobo, machucou-se. É a lei da selva. Nos 11 anos, Chico produziu discos (como 'Saltimbancos'), fez e aconteceu, tanto que ele se sente em crédito com a Polygram. "Se eu não tivesse dado mais, não teriam me oferecido luvas para renovar o contrato no ano passado.'
Lei da selva é lei da selva., não é refresco. 'Quem tem que ler o contrato é quem assina', professa trqnquilamente, com jeito de bom moço, Roberto Menescal, ex-parceiro de Chico, compositor, ou melhor, quer dizer, diretor artístico da Polygram. Um executivo de calça Lee, sim senhor. E pelo contrato, segundo a Polygram, Chico não é absolutamentye credor, mas um grande devedor da gravadora. Deve, nada mais, nada menos que 47 obras - o equivalente a 4 LPs! E tem que pagar, tem que pagar! No ano passado, antes de gravar 'Vida', Chico tentou chegar a um acordo. Muitas reuniões, muitas discussões, e tensão. Propostas e contrapropostas. A última que, para o cantor, parecia definitiva, era a que ele fosse mesmo para a Ariola mas fizesse ainda pela Polygram dois projetos musicais. Tudo acertado, só faltava o acordo da matriz em Amsterdã. 'Vida' foi para a rua, em cima do Natal. O cantor esperou até a última hora uma resposta a fim de autorizar a publicação do disco para não prejudicar seu próprio trabalho A resposta da matriz nunca chegou, e de lá para cá, diálogo interrompido."
(continua)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Essa Tal de Gang 90 & Absurdetes

Um dos melhores discos de rock nacional dos anos 80 - um período de tantos lançamentos nessa área - foi na minha opinião, "Essa Tal de Gang 90 & Absurdetes", de 1983. Um álbum de grande criatividade, surgido da mente inquieta de Júlio Barroso, de quem já falei nesse espaço. Quando comprei esse vinil, eu o ouvia muito, várias vezes ao dia, o disco todo ou determinadas faixas, de tão agradável que se tornou sua audição. Uma crítica muito favorável e a esse álbum foi publicada por Ezequiel Neves, na revista Pipoca Moderna nº 4 (nov/dez 83) :


“Escândalos dos escândalos: foi preciso esperar 15 anos (ou séculos?) para que surgisse no país o Tropicália Vol. II. Exagero? De forma alguma! Mas enquanto aquele genial projeto resgatava do limbo formas musicais brasileiras consideradas cafonas pela intelectualidade, Júlio Barroso, via Gang 90 & Absurdetes, nos gratifica com uma obra multimídia provando que a África é a Mãe Terra da música popular, sem linhas divisórias de raças ou idiomas. O tom-tom dos tambores ancestrais é o mesmo tanto em Nova York como em Nova Iguaçu. 
 
Lógico que o disco Gang 90 & Absurdetes é um projeto que só será deglutido se tivermos seu encarte à mão. Mas, afinal, o carioca Júlio Barroso sempre foi fascinado pela informação; basta lembrarmos seu tempo de editor da fabulosa revista Música do Planeta Terra (idos de 76/77). Aliás, seu LP é a própria revista transportada para o vinil. Pura obra-prima em 33 rotações. Mas é bom lembrar o que dizia Virgínia Woolf a respeito de Ulisses, de James Joyce: ‘Nenhuma obra-prima tem o direito de ser chata’.  E Gang 90 & Absurdetes, felizmente, não tem nada de nauseabundo.
São apenas 10 faixas. Mas essas 10 faixas são o próprio caldeirão fervente de informações sonoras, mapa geográfico do swing, despirocadas guloseimas para os tímpanos, cucas e músculos. Contando com músicos do calibre de Herman Tôrres, Luiz Paulo Simas, Otávio Filho, Gigante Brazil, Guilherme Arantes, etc... e mais as vozes das Absurdetes, Júlio e parceiros constroem um caleidoscópio que é pura desrepressão. Os xenófobos vão odiar, não apenas o disco todo, mas principalmente a presença coloquial do idioma inglês nas letras. E, como poucos, Júlio sabe verbalizar o transe de maneira acachapante. Exemplo: ‘Zoom navalha corta um globo/ Lâmina luz olhar/ Desenhando um poema/ Corpo nu deusa lunar’ (Spaced Out in Paradise). E há também um poema que é a própria síntese da antropologia: ‘Meu amor/ Vem me abandonar (...) Já foi assim mares do sul/ Entre jatos de luz beleza sem dor/ a vida sexual dos selvagens’ (Nosso louco Amor).
Mas a petulância (amantíssima petulância!) de Júlio vai mais longe. Ele é capaz de assinar uma letra, a de ‘Românticos a Go-Gô em que os versos só contém citações de gênios, começando com “Donga, Cartola, Guevara, Sinhô’ e terminando com ‘Marley, Duchamp, Oiticica, Xangô’. E também declama, sobre uma base de reggae espacial, uma belíssima confissão de amor ao rei dos Beats, Jack Kerouac.
Se me perguntarem de qual faixa gosto mais, vou ficar mudo, mesmo se tiver tentado a responder que é ‘Telefone’ ou ‘Nosso Louco Amor’ ou ainda ‘Eu Sei, Mas Eu Não Sei’ – o que seria a resposta mais plausível para essa obra-prima, produzida por Luiz Fernando Borges e que teve a direção musical de Herman Tôrres. O que me deixa mais feliz e gratificado é que, com incrível bom humor, Gang 90 & Absurdetes guilhotina a linha divisória que existia entre a música de vanguarda e a popular. Ave Júlio!