Palavras Domesticadas

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sábado, 5 de outubro de 2013

Raul Seixas Fala de Filosofia e Música - 1976

O trabalho de Raul Seixas foi marcado pelo alto teor filosófico (principalmente na fase de sua parceria com Paulo Coelho) e uma postura anárquica e irreverente. Em 1976 Raul lançava seu quarto disco solo "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás", e ainda na fase de gravação e finalização do trabalho, escreveu um texto para o jornal Hit Pop, um tabloide que acompanhava a revista Pop, onde ele fala sobre a fase de preparação do álbum, que estava prestes a ser lançado. Abaixo, transcrevo o texto de Raul:


“No momento não existe no mundo nada novo. As águas parecem pedras. Existe um vazio, um momento caótico no que se refere a qualquer esfera de movimento das ‘coisas do homem’. A arte é o espelho social de uma época e tudo o que se passa. O artista, criador, sente profundamente, e conscientemente ou não, acaba por comunicar esse momento dentro do seu próprio prisma. E existem tantos prismas como existem muralhas. Embaixo desse mar petrificado o comunicador tenta, com seus instrumentos de trabalho, ajudar a ordem natural das coisas a movimentar-se de novo. Ajuda, sem impor, à despetrificação do rio para que as águas do processo histórico continuem a correr. Nada acaba. Tudo é mutável.
Eu escolhi ser artista no sentido de viver nessa sociedade, dando meus gritos e pontos de vista, e ser ao mesmo tempo, um bom surfista na onda da frente, de onde vislumbro intuitivamente o Novo momento. O novo chegou e só quem pode detectar o novo é aquele que dispõe de um olho Novo, caso contrário vai ser sempre o Novo em sua frente como velho. É como meu parceiro Paulo Coelho diz: ‘a humanidade caminha como se dirigindo um carro e captando o momento presente através de um espelho retrovisor. Ora, quando se dá o insight do presente vivido naquele instante, o retrovisor do carro já fez o momento percebido se transformar em passado.’ E assim se torna mais fácil e mais cômodo deixar as coisas como estão, como medo de viver ou enfrentar um Novo desconhecido.
 
Estou pouco a pouco vencendo meus problemas que deixam de existir à medida em que eu me sinto bem sem eles. Isso para mim é a única medida utilizada para saber o que quero na vida. Me faz bem isso e não me faz bem ou feliz aquilo.
Há Dez Mil Anos Atrás, que é o disco que estou gravando agora, foi, digamos, uma nova muralha que galguei e pulei. Sei que há muitas muralhas.
Meu objetivo fundamental sempre foi o homem e sua equação. Eu, como homem, continuador da história em ’10 mil anos atrás’, me senti como o velhinho da esquina da Rio Branco, como Jesus, amor, assassino, bruxos e bruxas em fogo. Moisés, Maomé, Pedro, o apóstolo, o papa, o drama Babilônico, Drácula, discos voadores e arca de Noé, Salomão, Zumbi dos Palmares, Hitler ou um soldado solitário. Minha cabeça se projetava em livros sagrados entre Gitas e Umbanda. Fui macaco, Rapunzel e tudo mais que eu vivi por esses séculos me provaram que as águas petrificadas do rio estão próximas a correr de novo. E aquém disser que estou mentindo, tiro o chapéu.
Sobre o LP Há 10 Mil Anos Atrás, digo que está sendo preparado por mim e pelo Paulo Coelho com todo vapor que temos em nós. A primeira fase das composições já está praticamente terminada, pois desta vez estamos mais ligados e trabalhando juntos em letras e músicas, sem ficar aquela coisa de botar letras nas músicas dele ou eu botar música nas letras do Paulo. Assim, brigando, discutindo, 3 horas da manhã, entre cafezinhos requentados, estamos no final não só da relação das músicas, mas na concepção global do trabalho. É um Lp muito claro e muito bonito.
 
A próxima fase é comigo e com meu velho e predileto maestro Miguel Cidras Rivas, que virá passar algumas semanas aqui em casa em ordem de ouvirmos discos, falar de músicos, arte, burilarmos as orquestrações em códigos diferentes que um outro maestro faria. Meu trabalho com o maestro Miguel é incrível! Mostro para ele exatamente o feeling de uma passagem musical e ele a capta por intermédio de um código meu que só ele se acostumou a sentir. Por exemplo, eu digo: ‘Miguel, aqui nessa frase... me ensina a segurar... a barra de te amar... eu quero uma harmonia azul turquesa com... assim um cheiro leve de jasmim mas ao mesmo tempo a nota dissonante tem que ser como um som  da pancada de um carimbo de um tabelião às cinco horas da tarde no centro da cidade... entendeu? E ele sempre entende e pega e escreve exatamente o que eu ‘sensoriava’. Ouro de Tolo, Gita, Trem das 7, essas músicas foram orquestradas assim desse jeito abstrato.
Há Dez Mil Anos Atrás será gravado no estúdio de 16 canais da Philips e logo estará pronto, pois vou entrar no estúdio com todo o trabalho já pronto. É bem mais fácil e perfeito assim. Vou gravar a maior parte do Lp com o grupo Flamboyant e mais a guitarra de meu cunhado Gay Vaquer (aquele americano que gravou aquele Lp ‘20 Anos de Rock’ comigo), Ele é indispensável nesse trabalho. No mais, estou ansioso para essa nova fase de um novo disco a mais chegar ao ouvido dos que ouvirão.
OS: De resto... só cortei meu cabelo bem baixinho. Me retei e cortei.”

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