Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 22 de abril de 2015

Egberto Gismonti - Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 2ª Parte

"Experimentar combinações diferentes está no sangue de Egberto, um sangue onde convivem e exuberância italiana e a sagacidade árabe. E reúne a tendência ao misticismo dessas raças, um misticismo que sempre encontra uma forma de se sobressair. A música sacra faz parte de sua iniciação, como os dobrados com que o avô e o tio embalavam os sonhos que povoavam os crepúsculos dos domingos do Carmo.
'Eu soube desse misticismo através das pessoas. Elas vinham e falavam disso comigo', relembra. Também por parte dos críticos, 'mais os estrangeiros que os brasileiros'. Egberto lembra com humor a crítica que Chris Albertson, do mensário americano Stereo Review, fez do disco Solo: 'Foi curiosíssima. Ele conta que chegou em casa e colocou o disco. De repente, teve a impressão de que estava conversando com alguém. E quando terminou, travava uma verdadeira discussão. 'Não concordo com isso ou com aquilo', dizia ele. E para um americano escrever isso, é porque deve ter sido razoavelmente forte.'
A gravação de Solo foi uma nova experiência para Egberto. Depois de tocar sozinho no estúdio durante cinco ou seis horas, o produtor Manfred Eicher pediu-lhe para voltar no dia seguinte e tocar o que ele não sabe. 'Ele achou que eu só tocara o que sabia, havia sido como num show'. Egberto voltou no dia seguinte e, sem saber direito o que fazia, gravou um novo disco. 'Quando comparei os dois, não tive a menor dúvida de qual era o melhor.'
Não são poucas as provas do misticismo que impregna a sua música. Recentemente, Egberto recebeu um convite do diretor de O Exorcista para musicar a cena mais forte de seu novo filme, Cruising. 'São 14 minutos. Ele quer que eu vá para o estúdio, assista a cena quantas vezes quiser e faça essa trilha. E uma das condições é que eu pegue um avião de volta assim que terminar, para que não possa mudar nada.'
Em janeiro, Gismonti fez um espetáculo no Teatro Castro Alves, na capital da Bahia, o centro do misticismo no Brasil. 'Foi uma coisa que me alegrou muito. Do lado tinha um show do Moraes Moreira, que é carnaval puro, do outro lado tinha não sei quem, também tocando carnaval. A moçada entrou ouriçadíssima. Mas depois de 20 minutos havia outro espírito. Estavam todos calmos, um relax total.' Egberto tocou durante três horas, e sua música foi forte o suficiente para fazer o povo de Salvador esquecer por algum tempo seu carnaval. 'As pessoas sempre comentam que a música está mexendo com alguma coisa diferente. Mas eu não notei antes, isso me veio de fora para dentro.'
Foi no Alto Xingu, porém que esse viramundo sofreu as maiores mudanças. 'Antes de ir lá, estava com Ravel, Stravinsky ou Villa-Lobos na minha música. E lá eu senti que era mais, que era a linguagem para para falar com os deuses. Os sertanistas do Posto Leonardo, onde eu fiquei, me disseram que, segundo os índios, só existem seis bons tocadores de jacuí. E um bom tocador de jacuí é aquele que consegue representar a voz dos espíritos.'
Para quem vive sentado em aviões, hotéis ou em frente do piano, a caminhada diária de ida e volta à aldeia era uma verdadeira maratona. Porém, plenamente recompensada no momento em que Aiopu disse a Egberto que seu irmão Sapaim o chamava para dentro da Casa Sagrada. 'É lá que eles guardam as três flautas jacuí. Um lugar pequeno, uns dois metros de altura, semicircular. Entrei e eles já estavam lá, uma vibração de arrepiar.'
Nesse dia, Gismonti conseguiu seu recorde: mais de 12 horas ouvindo música. 'Eles começaram às sete da manhã. Ao meio-dia, deram uma parada e eu pedi ao Sapaim que voltasse à primeira música, e ele respondeu que já não podia mais. O sol havia mudado de posição. E continuou tocando. Depois de 12 horas de música, me dei conta de que eu já nem sabia quem era o instrumento, o músico, a música. Era um todo só.'
Depois da viagem ao Xingu, Egberto largou de lado a velha cachaça, trocou a religião católica pelo espiritismo e a companhia de numerosas orquestras por alguns acompanhantes musicais. 'Aquele dia com Sapaim foi muito forte. Pensei que nos anos e anos de escolas de música nunca haviam me falado sobre uma integração tão grande, uma relação tão íntima entre música, músico e instrumento, pontifica.'
'A partir desse momento, a orquestra desapareceu da minha vida. Eu me toquei que não sabia ao menos como era a relação do músico com o seu instrumento, quanto mais do músico com seu instrumento com outros músicos e seus instrumentos. Era coisa demais para minha cabeça. Pude me aprofundar muito mais no que eu sabia fazer e a música passou a ter uma outra função. Passei a ter mais coragem como músico. Era bem mais fácil me cercar de uma orquestra e fazer uma música incompreensível mas respeitável. Já fazer essa música com mais um ou dois fica bem mais frágil, sobre uma linha mais fina. A grandiosidade assusta as pessoas o suficiente para que elas não se coloquem como críticas. Na medida que você faz um rolo compressor, não dá pra criticar.' "
(continua)

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