Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 23 de abril de 2015

Egberto Gismonti - Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 3ª Parte

"Egberto passou a fazer uma música de acordo com o tamanho das pessoas, e expôs-se à crítica. E o primeiro produto foi um trabalho realmente anárquico, já dentro dessa fase de questionamento dos conjuntos. Pronto para gravar um disco na Alemanha com mais ou menos três brasileiros, os planos mudaram. A isenção do depósito compulsório (*), de triste memória não lhes foi concedida. Egberto só tinha o suficiente para a sua e acabou embarcando sozinho. Lá perpetrou, em cumplicidade com Naná Vasconcelos, uma peça de berimbau e orquestra sinfônica.
Mas ele não inclui aí nenhuma coragem: 'É um negócio tão maluco que dá certo, escreva-se o que se escrever. A crítica alemã se rasgou em elogios, mas localizando a coisa sob outro aspecto. Eles não têm a menor noção de que berimbau se toca no sarro. Não sabem que a moeda toca cada vez em um lugar diferente da corda porque o dedo vai-se cansando. Aí ficou engraçado, porque eles comentavam as comas que o Naná conseguia, analisavam tudo. O disco, quando saiu no Brasil, teve críticas do tipo 'mas que falta do que fazer'. E na Alemanha eruditizaram o berimbau.
Essa forma de anarquismo, porém, não se estende à orientação política de Egberto. Sem tomar conhecimento da política partidária, ele tem intimidade absoluta com a política fonomecânica, como contratado de multinacionais. Convivendo com os grandes capitais da indústria de discos, ele assimilou a política em suas formas contratuais e editoriais. E a domina com maestria suficiente para ser, como afirma brincando, o Departamento Cultural de sua contratante.
'O fato de eu não querer demais nem de menos me fez exercer a profissão de músico dentro de um processo político-econômico que não permitia. E me possibilita ficar seis ou sete anos em uma companhia fazendo discos caríssimos que não vendem comparados a outros. E felizmente os caras continuam a aceitar isso. Aceitam porque eu sou mais importante que a música que eu faço. Tanto que meu nome é muito mais conhecido que minha música. E essa situação vem de que as companhias de discos são obrigadas a prestar contas aos seus acionistas do que venderam e também do que fizeram, sobretudo sendo uma multinacional. Eu estou no campo do que fizeram, não do quanto venderam. Por isso eles me permitem fazer coisas dentro dessa crise do mercado fonográfico.'
 E não é só isso que lhe permitem. Permitem muito mais. Como o Jornal Caipira, de 14 páginas, que acompanha cada disco de Gismonti, mesmo que nada tenham a ver com as matérias nele contidas. Nele colaboram os amigos. Nomes como Carlos Drummond de Andrade, Geraldo Carneiro e Ferreira Gullar. 'Essas pessoas têm muita influência no que faço. Ouvimos juntos, eles julgam, criticam. E um dia resolvi colocar alguma coisa a mais  nos meus discos. É muito pouco 30 minutos de música por 800 cruzeiros, não acha? E resolvi pedir a essas pessoas que colocassem alguma coisa delas nesses jornais. Hoje, já há até uma empresa de aparelhagem de som disposta a patrocinar o Jornal Caipira. A ideia está sendo sedutora. De repente, eu tenho um jornal de circulação nacional. Só eu e o Roberto Marinho. Não é ótimo?' "
Esse jornal deixa claro que a música não o preenche totalmente. Desenhista bissexto, Egberto Gismonti lê bastante. Em Fernando Fernando Pessoa, ele encontrou muito o que pensar sobre a solidão, um de seus temas fortes. 'A prosa de Fernando Pessoa deve ser lida por vários motivos. Primeiro, porque economiza uma boa grana de analista numa época em que se ouve, e sabe-se que é verdade, as pessoas dizendo que moram em tal prédio já lá se vai tempo e nunca viram o vizinho. E segundo, porque me parece necessário o conhecimento da história de um sujeito profundamente solitário e que teve a felicidade de saber escrever sobre tudo que tinha por dentro. Porque a história dos solitários a gente só fica conhecendo através do noticiário criminal dos jornais. Ler o Fernando Pessoa me ajudou a compreender que a capacidade do ser humano de suportar dor e alegria é muito maior do que eu acreditava.' "
(*) Havia uma lei que obrigava os brasileiros que viajavam para o exterior, a depositarem um valor, que depois era devolvido pelo Governo, chamado Depósito Compulsório, o que onerava ainda mais as viagens internacionais.

(continua)

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