Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 27 de maio de 2015

Rita Lee: "Eu Queria Ser uma Corista de Rock" (1976) - 2ª Parte

'"Rita trouxe uma série de pios, de apitos, de instrumentos e objetos rituais, como um certo e mágico pau-do-diabo. Um grande cone em que esferas e seixos deslizam lentamente criando um som de água escorrendo. É usado na Amazônia para invocar a chuva e será ouvido no novo LP.
- São Paulo oferece a eletrônica, a guitarra, a coisa amplificada. A gente não pode prescindir da tecnologia. E nem exagerar sua importância. Antes dessa viagem, eu me sentia como uma espécie de turista, via as coisas de longe. Depois, me misturei com as pessoas. É na direção dessa integração que quero levar a minha música. E quero que as pessoas se divirtam - divertir os outros é a maior diversão. Mensagens? Nada disto. Um diálogo, uma forma de comunicação entre as muitas raças desses muitos planetas em que vivemos.
Que ninguém acredite, contudo, que a turnê teria sido apenas um idílico retorno à pureza e ao coração aberto por entre os sabores inebriantes de graviolas, cajás, sapotis e praias não poluídas. A garotinha que um dia iria casar com os Beatles e os Rolling Stones viveu também sua noite de Altamont. A primeira grande tragédia, o maior choque: 
- O rapaz caindo a meus pés, fulminado por um colapso. Um amigo, que há quase dois anos cuidava da segurança da aparelhagem. Na plateia, seis mil pessoas esperando minha entrada. Não recuei - entregava o microfone pro auditório, a coisa não estava dando, mas eu ia. Todos pareceram entender. A saída foi quase silenciosa, mas solidária.
Contando essa história, Rita mostra outra imagem: é uma mulher forte, temperada pela estrada, com uma grande capacidade de compreender o que lhe acontece. O reverso da Gum-Gum, deliciosa e estabanada personagem que ela usa para dialogar com o público infantil das matinês. E o flash-back trágico é substituído por outros, menos doloridos:
Rita Lee e Tutti Frutti
- A partir do meu último disco senti que as pessoas passaram a ouvir minhas letras. Antes, vinham a mim falando do meu som. Agora, citam frases, fazem perguntas, trocam ideias. Pensando no público que consigo atingir me sinto com uma responsabilidade maior. Porque agora vejo o quanto posso tocar as pessoas, e quero dizer coisas que contribuam para que elas se sintam melhores. O diálogo ficou muito mais estreito, íntimo. Uma história da viagem? Bem boa? Ah, em Belém: eu sozinha no hotel, voz no telefone perguntando por Ritalí. Ia dizer que tinha saído, mudei de ideia. A mulher no outro lado do aparelho pareceu ter levado um choque, não acreditava que eu existisse mesmo. 'Não conheço a senhora, dona Ritalí, pensei que era invenção da minha filha. Aí, vi seu nome nos cartazes de rua, resolvi telefonar. Não sei as músicas da senhora, somos pobres, não temos toca-discos'. Contou que a filha falava em mim o dia inteiro, que cada vez que ia comer servia comida também pra mim, como se eu só fosse visível pra ela. A mãe levou a garotinha ao hotel, cantamos juntas. Ela entende 'Ovelha Negra' como uma história infantil. Foi deslumbrante quando eu fiz a Gum-Gum e a menina, que apenas me olhava como se de fato eu não existisse, passou a brincar comigo. Era como se ela estivesse conhecendo um personagem de fadas. De repente, eu pude ser pra uma pessoa o Peter Pan que nunca apareceu pra mim.
 Rita fala também de sonhos que nem dez anos de estrada conseguiram destruir. E alguns não foram realizados ainda: ela queria tocar com Rod Stewart (o superstar pop que mais adora, 'um homem que curte ser popular, uma voz de feiticeiro, que gosta de futebol, que se coloca no mesmo plano diante das pessoas'), com Raul Seixas, com Gilberto Gil. Quando fala desses ídolos tem o mesmo saudável deslumbramento de qualquer fã, como se houvesse entre ela e eles uma enorme distância. Conta, com evidente prazer, que mandou uma música (das mais de 20 compostas para o novo LP, que só terá nove faixas) a Ney Matogrosso, 'Bandido Corazon'. E que fez uma outra pedida por Caetano: 'Fiz e já mandei, é uma criação dizendo que o pior da vida é a timidez'.
Rita se cala e ouve Mônica contar sobre a excursão. Tudo preparado com antecedência de quatro meses e um rigoroso planejamento. Pensou-se em coisas tão necessárias e esquecidas quanto calcular a quantidade necessária de material de reposição, na melhor forma de embalar e catalogar o equipamento, em contatos e reservas de hotéis. Um investimento de 300 mil cruzeiros (que retornaram com lucros), gastos com publicidade, alimentação e hospedagem para 22 pessoas - a maioria delas dedicada à montagem do enorme palco de 15x12 metros e ao complexo sistema de iluminação. A organização impecável deu ao rock até mesmo a respeitabilidade comercial que sempre lhe negam quando cantado em português: conseguiu-se para a viagem o patrocínio antecipado da empresa aérea Transbrasil.
 Num balanço dos dez anos, Rita pode até mesmo rever antigas admirações e criar outras: 'Eu amava Paul McCartney com os Beatles, agora nem tanto. Tenho gostado do Bad Company. Do Yes eu gostei demais. Eles até fizeram minha cabeça durante um tempo. Mas depois foram se fechando, virou uma coisa religiosa, e assim não dá. E tem também os no (ah! os Stones), não é só essa de yes.
Na vastíssima tina de leite onde se atiraram atrás da glória os corajosos ou desgarrados ratinhos do rock, Rita Lee Jones foi o primeiro a nadar com vitalidade suficiente para amanhecer a salvo, estirado sobre a sólida manteiga do sucesso. Outros ainda nadam, muitos se afogaram.
- Como me sinto depois disso tudo? Tenho às vezes flashes, saudades dos Mutantes, das brincadeiras. Mas isso passou, eu sei. Era tudo bom, mas radical demais. Eu me sinto... eu me sinto, principalmente uma profissional. Eu curto isso."

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