Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sábado, 11 de julho de 2015

Muddy Waters - Entrevista Jornal Melody Maker - 1976

Muddy Waters foi sem dúvida um dos nomes mais importantes do blues. Muddy é considerado o pai do blues elétrico, e influenciou toda uma geração de músicos de rock e de blues que surgiram nos anos 70. Em 1976 o jornalista  Max Jones, do jornal Melody Maker o entrevistou, e abaixo transcrevo a tradução da matéria:
"Muddy Waters tinha provado mais uma vez que era uma das maiores autoridades - senão a maior - dos blues urbanos. Imediatamente após o show no New Victoria (Londres) rumei para seu camarim para conseguir uma entrevista. No palco ele se anunciara como Muddy Mississippi Waters (seu nome verdadeiro é McKinley Morganfield), e eu tinha vibrado com  a tremenda reação do público jovem ao poder mágico de suas velhas canções do Delta(1). É um mestre até o fim. Ele me avisou que tinha que ir logo para o hotel dormir ('Cê sabe que essa idade pega a gente, né Maxie?'),  mas fomos papeando, e a entrevista foi surgindo...
Max Jones: - Nesse show você preferiu tocar músicas antigas, como Hoochie Coochie Man, Trouble no More, Got My Mojo Workin, e Rollin' Stone (2). A única música dos anos 70 é Can't  Get No Grindin, que mesmo assim, é uma adaptação de uma música antiga do Mississippi. Por que essa escolha?
Muddy Waters: - Os fãs pedem essas músicas. De vez em quando eu volto pras velhas, sabe. As pessoas ficam gritando e é nessas que eu mando brasa.
MJ: - Por que você não vem à Inglaterra desde 72?
MW: - Não tive tempo. Não sei porque, mas agora que tô velho tem mais gente querendo me ver do que quando eu era moço.
MJ: - Em 72 você me disse que passou muita fome mas que sempre viveu tranquilo. Agora as coisas devem ter melhorado, né?
MW: - Bem, tá melhor do que há alguns anos, mas não faço isso por dinheiro. Gosto de cantar pro povo. O blues é o que sempre tive e a única música que sei.
Desde aquele papo em 72 muita água desceu o velho Rio Mississippi. Muitos músicos de blues morreram. Lembrei de Victoria Spivey. A primeira vez que a vi foi em 63 e eu estava com  Muddy Waters, procurando algo para beber num hotel de South Kensington antes de partir para uma noitada com Alexis Korner. Muddy Waters desistiu e falou: 'O jeito é procurar a Queen Vee (Rainha Vê). Ela sempre tem uma coisinha'. Dito e feito, Spivey fez jus à sua fama. Bebemos os três, no gargalo.
Lembramos de algumas gravações de Victoria Spivey com o grupo de Muddy Waters, que teve que atuar sob pseudônimo devido a problemas de contrato. O último disco dela que recebi foi gravado em 69 por Victoria e Ottis Spain como homenagem à mãe de Otis, Mrs. Spain e muito amiga de Victoria. Comentei que Victoria tratava Otis como um filho, e que pra mim Otis e Muddy eram como irmãos.
Quando ele ia responder isso chegou outro admirador de Muddy Waters, que nunca tinha ouvido falar da Mrs Spain e cortou completamente o nosso papo. Muddy nunca foi muito a fim de entrevistas, e nem interessado em papos críticos sobre o significado dos blues. O jovem mancebo teve a audácia de perguntar: 'O que é o blues?' Antes do show Muddy já havia me dito que estava cansado. Agora estava mesmo cansado e a expressão do seu rosto mostrava claramente. 'Tá na hora de dormir, e você me faz uma pergunta dessas?'
Mas explicou, mais uma vez, que o blues era a sua vida, não só um meio de vida apesar de que pra viver a gente precisa ter meios, mas uma coisa que estava dentro dele desde que era 'um pirralhinho'. Quando tinha três anos, mal sabia andar e roubava as bacias da vizinha pra fazer batucadas, suas 'musiquinhas'. 'Então eu amo o blues, ponto final.'
Nós dois voltamos a mexer nas lembranças e falamos do Folk Blues Festival de 63, quando Muddy tocou com Lennie Johnson, Willie Dixon, Memphis Slim e Big Joe Williams. Ele me mostrou um retrato a cores de Big Joe tocando seu violão de nove cordas. Na noite anterior os dois haviam dado um show juntos na Alemanha.
Muddy Waters obviamente está situado entre a Velha Guarda do blues. Sua voz não está tão rica e profunda como antes, e hoje sai do palco exausto, depois de entregar à plateia o que me descreveu como 'blues pesado, blues verdadeiro, do tipo tira-as-calças-e-enfia-lá-dentro'. Mas quando começa a tocar sua guitarra, o battleneck no dedo mindinho, e cantar as frases semi-místicas da maravilhosa Hoochie Coochie de Willie Dixon (feita especialmente pra ele) tem a mesma força de quando era 'o segundo filho homem' de Ollie Morganfield, trabalhador da fazenda Stovall, quando o folclorista Alan Lomax o gravou para os arquivos da Biblioteca do Congresso em 1941 (3).
Faz muito tempo que não sai nenhuma gravação nova de Muddy Waters ('desde Woodstock', ele diz). Mas em janeiro lança um novo disco com Bob Margolin (guitarra), Willie Perkins (piano) e James Cotton (gaita). Devido a seu gênio e criação Muddy Waters sempre teve muito orgulho de sua raça. Bob Margolin é branco, e nos conjuntos de Muddy já houve dois gaitistas brancos. A entrevista recomeça desse ponto.
MJ: - Você já teve vários músicos brancos nos seus shows, né?
MW: - Passei por muito preto e muito branco. (E não disse mais nada).
MJ: - Por que você saiu da Chess Records?
MW: - Aí você já tá falando de política. (Outra resposta curta).
Mas notei que ele se interessa pelo fenômeno da juventude branca europeia estar transando com o idioma de negros americanos da classe baixa. Orgulha-se disso e confessa que é essa juventude que tem mantido o blues, tocando as músicas e indo a todos os concertos dos bluesmen. '99% do meu público é branco,e a maioria é de jovens.'
Certa vez Muddy Waters me disse que ficava feliz de ver músicos jovens e brancos tocarem suas músicas, mas quando via pessoas faturando em cima disso, às vezes ficava uma fera. Agora sua raiva parece ter abrandado um pouco. Quando perguntei sobre isso, disse que não o incomodava, que essas pessoas só aumentavam seu próprio faturamento. E os Rolling Stones? 'Gosto deles porque significam mais sucesso pra mim.'
Hoje Muddy mora numa vila a uns 50 km de Chicago. 'Não dá pra viver naquela cidade'. Raramente vai a Chicago e nunca mais voltou aos clubes da barra pesada onde batalhava pela vida.
MJ: - Muddy Waters, você agora é outro?
MW: - Vivi duas vidas. Fiz coisas que muita gente nunca vai poder fazer. Comecei tocando pra minha raça, só pra pretos, em lugares que as pessoas tinham medo de ir. De uns 13 anos pra cá meu público foi na maioria de brancos, universitários, por aí. Então vivi duas vidas.
O jovem mancebo repetiu um comentário de Muddy de que um branco não consegue cantar o verdadeiro blues.
MW: - Ainda acho a mesma coisa. O que é que você acha?
Mancebo: - Sim, mas...
MW: - Ei, diga a verdade. Você acha que um branco pode cantar o blues como eu?
Fim de papo.
Na saída perguntei sobre a recepção na Europa.
MW: - Muita gente não fala inglês mas entendem o que tamos tentando fazer.
MJ: - Tá sendo melhor do que sua primeira excursão à Europa? (1958)
MW: - Ah, Max, aquilo foi uma zorra (ri). Ninguém entendeu aquele amplificador imenso que eu trouxe. Cara, as manchetes de Leeds falavam dos gritos da minha guitarra (dá longas e sonoras gargalhadas). Aí quando voltamos todo mundo tava com o palco lotado de amplificadores. Porra, tava alto pra caralho. Aí passaram a tocar mais alto que eu.

(1) Delta - região da foz do Rio Mississippi
(2) Toque pra quem não saca a importância desse cara. Os Rollings Stones começaram tocando músicas de Muddy Waters e o nome do conjunto foi tirado dessa música.
(3) Alan Lomax saiu de gravador em punho, dormindo em fazendas, bebendo em botequins, visitando prisões, e fazendo um trabalho admirável de coletânea de canções do povo. Esse projeto era financiado pela Biblioteca do Congresso e as melhores gravações saíram numa série de discos."


Nenhum comentário:

Postar um comentário