Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Chico Science - Revista General (1994)

Em janeiro de 1994, a revista "General" trazia uma matéria de capa com Chico Science, que estava prestes a lançar seu primeiro disco, Da Lama ao Caos, e ainda não se previa o rebuliço que causaria no panorama musical brasileiro, com o surgimento do movimento mangue beat. Sua morte precoce em um acidente automobilístico, em 1997, deixou uma imensa lacuna. Felizmente sua banda de apoio, Nação Zumbi, continua dando prosseguimento a seu legado, lançando bons discos e fazendo shows de qualidade, embora sem a genialidade de seu mentor.
Na matéria, assinada por Pedro Só, Chico fala de assuntos variados, e da concepção de seu  disco. Abaixo, a matéria:
" 'E aí, trankilo?, manda Francisco de Assis França, ignorando a alteração fonética. Traduzindo: Chico Science, uma das mais festejadas revelações do pop brasileiro dos últimos tempos, saúda o jornalista que chega para entrevistá-lo no estúdio Nas Nuvens, no aprazível bairro do Jardim Botânico, no ocasionalmente aprazível balneário de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Trankilo? Que mané tranquilo, brother! Já é a terceira vez que o mané repórter baixa na área e ainda não deu para ouvir porra nenhuma da esperadíssima estreia fonográfica de Chico Science & Nação Zumbi.
Na verdade, o disco está numa fase empaca-soda (faltando confeitar vozes, algumas guitarras e sampleagens) e qualquer cego pode ver que os caras estão regulando mixaria. Não querem nem falar direito sobre as músicas. 'Quando escutar, tu vê', despista em confusão sensorial o Chico Pernambucano, com um sorrisinho gaiato pra lá de mineiro. Tudo bem que o bicho esteja numa trip carangueijo, mas assim já é exagero. O mangeboy recolhe as patolas, as puãs, os zoinhos, não quer entregar nada. Pois sim...
O negócio é fazer como ele mesmo e seus companheiros preconizam no manifesto/obra-prima 'Da Lama ao Caos': se organizar para desorganizar e, desorganizando, organizar. Em outras palavras, falar bobagens para zapear o que é que ferve nesta panela de siri.
Elogiados por Arto Lindsay, disputados por gravadoras multinacionais, produzidos por Liminha e babados por todos da imprensa que os (ou)viu, estes tais de Chico Science & Nação Zumbi são uma história e tanto.
Uns garotos não tão garotos (Chico tem 27 anos) do Recife que conseguiram fazer um barulho danado país afora a partir de uma saudável confusão de ritmos tradicionais e alienígenas: pop, hip hop, funk e outras influências exóticas temperadas com   a raiz forte de maracatus, cocos e emboladas, sem esquecer a bastardeira do samba-reggae. Tudo isto e o céu parabólico, também. Sem disco nem demo, mas com um esperto senso mercadológico, os caras souberam vender seus crustáceos e tiraram o pé da lama.
 Agora estão sendo lançados com pompa, circunstância e uma bela verba pela poderosa Sony Music. 'Fudeu... Entrou no show business, tem que arrebentar. A ideia é massificar mesmo', raciocina Chico, determinadíssimo. Pronto para encarar o lado prostituto da divulgação, mangueboy? Topas um programa do Clodovil? 'Aí é foda, né?', discrimina, com toda razão. Mas papo de medo do sucesso e de peso da responsabilidade não rola.
'Trankilo', sorri nosso heroi, à boca pequena. É verdade que as pretensões iniciais são modestas. 'A gente queria fazer uma coletânea, mas fomos atingindo a mídia no sul... O negócio agora é detonar a abrir espaço para o resto do pessoal'. Por pessoal entenda-se Mundo Livre S/A, Loustal e Lamento Negro, uma curriola de bandas amigas que, organizada em forma de cooperativa cultural, driblou a paupéria do curto circuito underground do Recife.
Formada a partir da necessidade e da amizade no começo do ano passado, esta panela tratou de  ideoligizar seus laços arriscando um manifesto chamado ‘Caranguejos com Cérebro’. O texto ajudava a vender o projeto do álbum de compilação da tal cena mangue, amarrando com inteligência um conceito estético que misturava a fertilidade e a riqueza biológica do habitat, sua sujeira e seu papel no conturbado processo de urbanização do Recife (quarta pior cidade do mundo em qualidade de vida).
‘Caranguejos com Cérebro’ falava da realidade virtual, teoria do caos e modernidades diversas. Mas vá perguntar a Chico o que ele entende de matemática quântica... ‘Não saco porra nenhuma, mas me interesso.’ Caos de Chico está mais para aquilo que Bezerra da Silva e os dacunhas franceses da retaguarda chamam de ‘le caô’. Ele não passou de cinquenta páginas de leitura sobre o assunto. ‘Não me aprofundo nestas coisas’, admite, antes de emendar um blá-blá sobre o grande barato de se antenar. Na verdade, sua parabólica coletiva. ‘Tenho muitos amigos. Eles vão me dando os toques, e a gente desenvolve’, conta.
Foi assim, de ouvidos abertos e palpites, influências e ingerências diversas, que o garoto que pulava a janela para ir escondido dançar breack cresceu e multiplicou seu universo cultural. De tanto proclamar seu amor pela tecnologia, Chico que era Vulgo (‘tipo aqueles nomes  de marginal, Galeguinho do Coque, Bill do Olho Verde...) virou Science. A ciência que o seduz, contudo, é ‘mais de alquimista, mais mágica, mais intuitiva’. Mas sem cabecismo, por favor.  ‘A galera gosta de viajar, só que sem essa coisa cabeça’, ressalva, antes de cunhar uma grande frase. ‘O raciocínio é a mágica das ideias.’ Ca-bbêê-ça!! Cabeça legal.   
Mas pinta uma dificuldade nesta história: Chico acha 'um barato do caralho' usar máquinas para descobrir sonoridades e descobrir timbres, mas ainda não é capaz de mexer nos equipamentos. 'Ele não sabe operar, mas sabe conduzir', socorre o tamborman e guitarrista Jorge do Peixe, amigo há quase uma década e do Peixe, porque sempre criou peixe, ora bolas. 'Já criei até casal de piranhas lá em casa', conta, sem perceber a barbaridade da frase.
Mesmo não tendo a menor ideia sobre como se aperta aquela botãozada toda, Chico e a Nação Zumbi chegaram com ideias bem ajambradas no estúdio e selecionaram o que Chico Neves iria samplear e implantar em suas músicas. Disquinhos de James Brown e do Dead Can Dance foram vistos no local do crime, mas os meninos juram que não usaram. Nem os horns do grande James Brown, ouvidos por este repórter em alto e bom som durante uma session.
Supervisionando tudo estava Liminha, que não era a primeira opção na lista de possíveis produtores do disco, mas que agradou em cheio. 'A ideia inicial era o Arto, porque já sacava o som  da gente e por causa das ligações com Eno, Bill Laswell e David Byrne, mas foi ótimo trabalhar com o Liminha. Ele deu altos toques sobre guitarra, baixo e samplers. Mas nada que alterasse o curso natural das coisas. Porque o que precisamos mais é de alguém que conduza nossa trip', explica  Chico.
Pouca experiência no estúdio, um tempão longe de casa... haja saco para gravar. O guitarrista Lúcio que o diga. No melhor da festa, ele ele pegou uma caxumba das brabas. A maldita resolveu descer e o deixou duas semanas fora de combate. Deu mole, hein, garoto? 'Rapaz, isso aí o médico disse que eu era independente', rebate ele. Jorge do Peixe se queixou das saudades dos dois filhinhos. Pai zeloso, ele gosta de ouvir Elnstürzende Nëubaten e Youg Gods antes de dormir, mas manera em respeito aos pimpolhos: 'É relaxante mesmo, só boto baixo por causa dos guris.'
Jorge é o principal parceiro de Chico nas composições e um dos maiores ideólogos da Nação Zumbi. 'Ele passou um tempão das gravações vendo MTV enquanto a gente ralava, mas dá ideias sensacionais para as músicas', conta  Chico, que conheceu  o amigo dançando breack e fazendo escambo de discos  do Suggarhill Gang e... bem, Rick Springfield (um zé buceta australiano que encheu o saco no começo dos anos 80).
Mas, e a tal estreia fonográfica dos mangueboys? Para pegar os caras vale tudo. Até brincar de 'Cara a Cara'. 'Me Marília Gabriela, you Jane', proponho. E lá vai... Ideologia? Chico refuga: 'Ih, já vem com frescura... Assim é foda.' E sai imitando Cazuza. Aids? 'Xô ver... É uma coisa até que legal, as pessoas se reservam mais. Mas muita gente está mal informada', afirma, sem medo do escorregão politicamente incorreto.
Ano 2000? 'Afrociberdelia'. Chico Science? 'Supermanguecallfragilyboy', diz o próprio. O amigo do Peixe não perdoa, marca: 'Esse frágil no meio é coisa de viado!' Som, que é bom, nada. O bicho pega, mas o Chico não entrega. Antes de descer para finalmente mostrar o embrião de 'Risoflora', que fala da paixão de um pescador de carangueijo por uma lavadeira, ele pega o velho baixão acústico do Nas Nuvens e belisca 'Insane in the Beain', do Cypress Hill. Lá embaixo, na sala secreta, ouço uma quase balada com guitarra gótica no meio (parece coisa de Billy Duffy) e percussividades pernambucanas. Estranhamente bonita.
Já é tarde da noite. Chico levanta os braços, chega perto do engenheiro Vitor Farias e pergunta: 'Tá vencido meu Avanço?' Todos acham melhor não responder. Eject Time. "                                                 

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