Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Walter Franco Gritando com Afinação - Revista Música (1980) - 2ª Parte

" 'Levei o disco branco às últimas consequências, em termo de hiper-sensibilidade. O espanto permanece até hoje imune ao tempo, face ao pique da proposta bio-elétrica que exercitei na época. E, se a veiculação comercial foi prejudicada pelo radicalismo dessa proposta em relação ao grande público, pode-se dizer que o LP se colocou no centro de uma corrente da MPB, dos que viveram as mesmas experiências e detinham a mesma informação.'
E - pasmem! - sequer nesse trabalho francamente experimental Walter igualou a contundência de suas apresentações ao vivo, que se constituíram em verdadeiros rituais de de liberdade. 'Alguma concessão a gente é obrigado a fazer, para sobreviver como criador dentro de um espaço comercial; eu tenho procurado conceder sem me violentar. Agora, quem me acompanhou ao vivo, possui de mim uma imagem muito mais completa. Em 1973, por exemplo, eu desenvolvia a temática das possibilidades, ia desde a respiração e silêncio (como diz o poeta) até levar às últimas consequências a possibilidade de inflexão'.
Seu segundo LP, 'Revolver', sairia em 1975 e se constituiria, segundo ele próprio, numa síntese entre rock progressivo e MPB. Marca, além disso, uma guinada em seu trabalho, que abandona a aspereza e virulência responsáveis pela imagem de maldito. Que houve, você cansou de carregar esse fardo? 'Olha, minha obra foi sempre voltada para o exercício do auto-conhecimento, em termos existenciais. Mesmo quando tive uma participação social, ela se deu a partir da minha busca individual de harmonia e equilíbrio. Às vezes, inconscientemente, eu refleti anseios gerais. Então, a transição entre o primeiro e o segundo LP deve ser entendida como resultado das vivências e experiências acumuladas nesses dois anos de intervalo. A partir de uma descoberta, temos sempre que ir para outra, e outra, e outra. Não faz sentido permanecer estático, explorando determinado filão. Recuso-me a isso. Para mim, cada trabalho possui existência única'.
Segundo Walter, a fase ultimamente atravessada pela MPB é a da reconciliação, com um espaço 'que sempre existiu' sendo ocupado com maior intensidade pelos artistas de sua geração. E ele acha que isso se explica, em última análise, por uma aproximação do nível consciente e inconsciente de participação, pois em todas as estruturas sociais os artistas sempre funcionaram como 'instrumentos de afinação' dos anseios da coletividade.
Então, nada mais natural que o relativo sucesso de 'Respire Fundo' (1978), um impulso à carreira de Walter 'em termos de números, bem como de execução nas rádios AM e FM'. Isso também é visto sob  o prisma da reconciliação dessas necessidades todas, do meu lado criativo com os imperativos comerciais dessa estrutura a que conscientemente pertenço. E é fantástico para um artista como eu, até há pouco tido como maldito, ligar o rádio e ouvir minhas músicas em várias estações. Nos shows, então, tudo tem virado festa, com  as pessoas participando do canto, da dança, de corpo inteiro'.
O lado 'insubmisso' da personalidade de Walter continua se manifestando nos festivais, como no Abertura, quando respondeu às vaias com que a plateia 'brindava' Muito Tudo jogando uma hipotética partida de dados com (se bem nos recordamos) Júlio Medaglia e Rogério Duprat (*). E mais recentemente, através da visceral Canalha, verdadeiro hino do último certame da Tupi.
'Canalha é a soma de todas as experiências, reciclada. É meu momento de maior prazer na liberação das energias primais, um exercício da liberdade, do grito com afinação. Se todos nós gritássemos com afinação haveria muito mais harmonia no universo. A desarmonia consiste na desafinação.'
Mas Walter se vê imbuído atualmente de 'uma necessidade de harmonia cada vez maior' e sente-se na obrigação de passar esse estado de consciência para as pessoas. Assim, 'Vela Aberta', recentemente lançado, é por ele definido como 'um esforço de conciliação de dimensões, das relações exterior-interior, causa-efeito, yin-yang, masculino e feminino, tudo isso colocado numa linguagem mais simples, mais ao dia a dia.'
A regravação de composições antigas, como Tire os Pés do Chão, Feito Gente e Me Deixe Mudo, não é, ele faz questão de frisar, uma reafirmaçao de seu ego, mas sim 'uma reciclagem: com isso, as novas gerações poderão saber como andava minha cabeça há dez anos'. E ele fala com entusiasmo da 'importância do mergulho que devemos dar em todas as possibilidades do universo musical, fazendo desde uma cantiga de ninar até um grito primal'.
A existência da faixas como O Dia do Criador e Divindade seria indício que sua obra passaria a ser predominantemente mística? 'Olha, este LP tem igualmente Canalha, de outras intenções, embora a veja também como manifestação da divindade que há em todos nós. Deus entra no meu pensamento e em minha obra como personificação dos anseios e ideais de perfeição, de busca de equilíbrio, de harmonia, de simplicidade. E nesse sentido me refiro desde ao Deus cristão até, por exemplo, a Govinda, entidade indiana que me inspirou uma das músicas do LP passado. Mas isso sem nunca me afastar do cotidiano, das coisas divinas, que também se manifestam no dia a dia'.
Perguntamos a Walter se há algo ainda a acrescentar. E ele nos oferece esses versos, de uma música que está compondo e resume suas preocupações atuais:
'Viver é afinar o instrumento
de dentro pra fora
de fora pra dentro
a qualquer hora a qualquer momento.' "
Obs: Trata-se da música Serra do Luar, que Walter lançaria no ano seguinte, no festival MPB Shell 81, da Globo. Esse trecho da letra sofreria uma mudança: em vez de 'a qualquer hora, a qualquer momento' ficou 'a toda hora, a todo momento'

(*) Na verdade foi com Júlio Medaglia (maestro e arranjador de sua música) e o flautista Toni Osanah, que o acompanhou

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