Palavras Domesticadas

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sábado, 20 de fevereiro de 2016

Raul Seixas e os Malditos - Revista Vizoo - 2005 (1ª Parte)

Em 2005 a revista Vizoo trazia uma matéria de capa em que destacava Raul Seixas e os "malditos da MPB". Apesar de não ser considerado um "maldito", por seu trabalho ter feito sucesso e ter sido reconhecido pelo grande público, Raul Seixas é colocado entre esses artistas marginalizados pelo mercado musical por sua postura sempre contestatória. A matéria é assinada por Gustavo Frank, e destaca o trabalho de um fotógrafo, Silvio Pinhati, que costumava fotografar vários desses artistas. Todas as fotos que ilustram as duas partes dessa postagem são de sua autoria. A primeira parte da matéria é transcrita abaixo:
" 'Verdadeiros. Eles falam o que acham, sentimentos, coração, amor'.
Com essas palavras, o paulista Sílvio Pinhati, que entre o final da década de 70 e meados dos anos 80 fotografou de forma contumaz as apresentações de um grupo especial de compositores da música brasileira, define os nomes que até hoje fazem a sua cabeça, e que carinhosamente chama de malditos. A alcunha de maldito, no caso, é um verdadeiro elogio ao talento contestatório de Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Zé, Luiz Melodia, Lanny Gordin e Raul Seixas.
Enquanto fotógrafo, Sílvio não conseguia encontrar alguém que ampliasse suas cópias com os resultados desejados. Por conta disso, passou a revelar seus filmes e preparar as próprias ampliações. Hoje, seu laboratório fotográfico é considerado um dos melhores de São Paulo, tendo como clientes cativos nomes do quilate de Mario Cravo Neto e J. R. Duran, além de ser o único do país autorizado a manipular os originais do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger.
Logo que chegou a São Paulo, em 79, Silvio passou a frequentar os lugares onde rolavam apresentações musicais. A insistência em registrá-los todos os dias fez com que passasse a ser reconhecido pelos artistas, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Itamar Assumpção, Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal. Aí surgiu o conceito dos malditos. Músicos com os quais se identificava muito, e que obviamente, sempre considerou acima de tudo benditos. O termo foi cunhado por achá-los verdadeiros e por não se encaixarem no esquema comercial. 'Não sei nem se eles gostam desse termo', observa.
Raul Seixas e o guitarrista Lanny Gordin moravam em São Paulo. Já Jards Macalé e Jorge Mautner vinham da cidade do Rio de Janeiro para se apresentar. Luiz Melodia (um dos caras mais cariocas que conheceu) também, mas com menor frequência. Assim, foi normal que a convivência com alguns ultrapassasse a fronteira fotógrafo-fotografado. Considera Jorge Mautner e Jards Macalé como amigos. Lanny é um cara que vê até os dias de hoje. Com Raul, teve uma relação, em suas palavras, muito bacana. 'O Lanny é um maluco, o Jorge é um maluco, o Jards até talvez seja uma pessoa mais centrada hoje, mas não deixa de ser maluco'. Para Silvio essa convivência lhe transmitia uma coisa muito boa.
Capa de revista
Nessa época, Raul Seixas já era um mito. Apaixonado por sua música, Pinhati logo concluiu que a primeira pessoa que deveria fotografar era ele. E assim foi, ano após ano, show após show, até que um caso inusitado o aproximou do ídolo. Ao ir a uma passagem de som com o intuito de conseguir se credenciar para poder fotografar determinado show, Silvio, que estava meio duro na época, deixou para comprar os filmes em cima da hora, antes de chegar no local do evento. Acabou se atrasando e partiu sem filme mesmo, só com a câmera. Lá, durante uma pausa, Raul Seixas saiu do palco para atender a imprensa causando grande alvoroço, com todos fotografando ao mesmo tempo. Sem filme, Sílvio ficou parado, só observando, com a máquina pendurada no pescoço. 'Não é que acabei atraindo a atenção do cara? Foi o máximo, ele me chamou e disse que queria ser meu amigo. Ele nunca soube que naquele dia não o fotografei simplesmente porque estava sem filme. Mas o Raul é uma pessoa... O que dizer dele? Basta ouvir sua música.'
Nessa fase, o corpo de Raul Seixas já dava sinais de que os arroubos cometidos nos anos anteriores estavam cobrando a conta. Em alguns shows, as pessoas achavam que não se tratava dele, que era algum sósia em seu lugar. Quase foi linchado numa apresentação no interior de São Paulo. 'O que eu saquei na época era que o Raul fazia um teatro ali. Ele não tava tão doido, tão doente quanto parecia. Acho que no fundo era uma pessoa sempre muito consciente de tudo. Nessa loucura toda, não sei se ele estava tomando remédio, não sei que porra que estava acontecendo que fazia com que ele não conseguisse tocar, cantar as músicas. Não lembrava da letra, não conseguia fazer os acordes.' Havia uma pressão das pessoas mais próximas, provavelmente da mulher (Kika Seixas) e dos demais integrantes da banda para tentar domá-lo, acalmá-lo, tentando curar algo que não tinha cura, para qual não existia remédio. 'Afinal, o cara era o maluco beleza', diz Sílvio, encerrando o assunto.
Das histórias do convívio com os malditos, Jorge Mautner é um dos campeões. A mistura de excentricidade com bagagem cultural tornava-o capaz de fazer coisas como pegar o violino e tocar de ouvido os hinos nacionais de pelo menos 30 países. Em certa ocasião, ficou hospedado na casa do fotógrafo na mesma época em que escrevia um de seus livros. No meio da noite, bateu na porta do quarto de Pinhati dizendo que queria fazer umas fotos, e para montar o cenário revirou a casa toda.
Itamar Assumpção
Outro que deixa saudades é Itamar Assumpção, falecido em 2003. 'Foi uma pessoa que infelizmente só fotografei uma vez', lamenta Silvio. Aconteceu durante uma apresentação num colégio em São Paulo, quando eu estava começando a fotografar. Ao chegar no local da apresentação, Sívio perguntou ao produtor se poderia fotografar, pois tinha a ideia de fazer um livro um dia. Foi devidamente autorizado. Mas havia uma combinação na qual, durante o show, Itamar iria brigar com um fotógrafo. 'Como eu apareci lá na hora eles pá, me pegaram de gaiato. 'Chegou o otário, aí, vai ser esse mesmo!' Começa a apresentação e  Pinhati inicia seus cliques. Logo Itamar passou a interromper as músicas e falar para o fotógrafo que iria descer e dar umas porradas nele. Voltava a cantar e Sílvio recomeçava a fotografar. E dá-lhe esporro. 'Foi assim umas três, quatro vezes, até que mandei ele ele se foder, peguei minha máquina e fui saindo.' Nesse momento Itamar Assumpção  revelou que tudo estava combinado, que era uma brincadeira e que poderia fotografar à vontade. Ainda muito nervoso, Sívio não conseguiu fotografar mais nada."

(continua)



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