Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sábado, 23 de abril de 2016

Gal Costa - Revista Música (1977) - 2ª Parte



"Cantar insolente – A mesma sensação de uns anos atrás, 68-69, quando Janis Joplin, Summertime, Aretha Franklin, James Brown quebram uma visão perfeccionista do canto de João Gilberto. Além, é lógico, da saída de Caetano e Gil do Brasil. Naturalmente, a ruptura do perfeccionismo herdado de João, a busca do novo, embora sem a visão crítica do seu trabalho naquele momento, terminam com um encontro com Macalé e novas experiências. ‘Eu me juntei a Macalé e comecei um trabalho novo. Meu Nome É Gal, meu segundo disco, é a marca da minha personalidade como cantora. Foi um disco completamente experimental. O cantar é gritado, agressivo. Pode, inclusive, ser considerado mal feito para as pessoas que tenham um ouvido como eu tinha. Mas, foi a fase onde realmente eu comecei a ter uma marca. E, a partir daí, começou uma ligação muito forte com a juventude. A coisa de jovem, de garotada.’
Hoje a reaudição provoca na própria Gal classificações como um cantar insolente, louco, agressivo e irreverente. Mas, de qualquer forma, válido. Mais: coerente com a nova visão, a nova proposta de trabalho. Uma quebra, inclusive, com o disco anterior, ‘Divino Maravilhoso’ (68), onde músicas de Roberto Carlos, Jorge Ben e do próprio Caetano garantem índices de boa vendagem. E, acima de tudo, a validade, a necessidade de uma  opção consciente.

‘O segundo disco (69) vendeu bem menos que o primeiro. Eu sabia que isso ia acontecer. Mas, foi importante pra mim como realização. Mais correto comigo mesma. E mais importante. Graças a esse trabalho, eu acho que sou Gal Costa na música brasileira. Era um disco que eu considero corajoso.’
Inquestionavelmente, o precursor da juventude, do colorido, do imenso ritmo do show ‘Fatal’ (71), quando o desembaraço e os primeiros indícios da nova imagem retratam seguras descobertas: o palco, o corpo no espaço, os gestos, e o próprio canto, solto, livre e sujo. Uma imagem forte, marcante, onde ‘eu descobri as minhas possibilidades como presença, como mulher. Transar o corpo e me soltar com uma imposição mais segura, mais direta pro público. Era uma coisa apaixonada, onde eu cantava coisas emocionais, de arrebatamento, de paixão. E descobri isso tudo sozinha.’
Tudo de mentira – Persuasiva argumentação, sem dúvida, para uma declaração de resistência à televisão, embora um incisivo ‘eu não gosto’ atraia, rapidamente, explicações como a frieza do trabalho, a americanização e a perfeita produção calcada no infindável ‘anda-pra-lá-anda-pra-cá. Você canta e sente tudo de mentira’.
A oportuna abertura a novos públicos aliada à farta divulgação do trabalho terminam, porém, em insinuantes alternativas e ‘faço pelo menos uma vez por mês’.
Dessa forma, ‘Fantástico’ e ‘Parada de Sucesso’, embora donos de palpáveis pontos no Ibope, perdem para o ‘Globo de Ouro’, ‘porque é mais bacana de fazer. Tem uma garotada. Eles chamam uns estudantes. É legal, é importante para divulgar o trabalho da gente’. Naturalmente as trilhas de novela assumem o papel do adequado termômetro na vendagem dos discos. ‘Foi usada uma faixa, ‘Só Louco’, pela TV Globo na novela ‘O Casarão’, e eu achei positivo para o meu trabalho. Promove o disco.’
E exatamente a mesma televisão, há 10 anos retrata as vaias aos nomes de Caetano Veloso, Gilberto Gil e os cabelos revoltos de Gal. ‘Divino Maravilhoso’ assume, então, a ruptura ao bossanovismo, a perfeição e o idealismo sempre procurados.

Parecia baião – Curiosas transformações aconteceram nessa época. João Gilberto e Janis Joplin passam a compartilhar, lado a lado, a condição de ídolos. ‘Eu era fascinada por João Giberto, e quando Janis Joplin gravou ‘Summertime’, fiquei louca por aquela mulher. Achei genial.’ Aretha Franklin, James Brown, à princípio, unem-se, mais tarde, a Sly & The Family Stone, a Joan Baez, The Who, Jethro Tull, e, principalmente, a Jimi Hendrix, numa expressiva amostra pop, ouvida, quase toda, no Festival da Ilha de Wight, na Inglaterra. ‘De todo mundo, quem mais me impressionou foi Hendrix. Quando ele tocava parecia baião. Foi uma coisa impressionante.’
Além, é lógico, do esperado encontro em Londres com Caetano, Gil, Dedé e Sandra, amigas de infância, de clubes, de brincadeiras. E indiretamente responsáveis pela descoberta de Maria da Graça por Caetano. Num encontro no ‘Bazar’, reduto de intelectuais e artistas de Salvador, Caetano ouve os primeiros versos de ‘Vagamente’, junto à confissão de incontida admiração por João Gilberto. Resultado: até hoje Gal é a sua cantora predileta.
Admiração, por sua vez, compartilhada também por Gilberto Gil, para quem ela ‘é a cantora que eu mais gosto, a que transmite mais profundamente uma medida de um ser doce e meigo, dentro do que eu busco como equilíbrio para uma mulher’. Um profetizante resultado, portanto, para a mãe Mariah que, grávida, ouvia diariamente, em profunda concentração, uma hora de música clássica, ‘o que deve ter me influenciado’.
A adolescência ao som de Dalva de Oliveira, Anísio Silva, Luiz Gonzaga, os acordes do primeiro violão antecipam João Gilberto, ‘o cara que me abriu a cabeça. A partir daí, eu fiquei empolgada. Ele me ensinou muita coisa, eu tenho muita coisa dele na maneira de cantar. Só agora quebrei isso’.
‘Nós, Por Exemplo’ e ‘Velha Bossa Nova, Nova Bossa Velha’, em 64, no Teatro Vila Velha, Salvador, junto a Caetano, Gil, Bethânia, o pianista Perna Fróes, o percussionista Djalma Correa e o compositor Tom Zé, animam os músicos amadores. Mais tarde, quando Bethânia substitui Nara Leão no show Opinião, ‘começou a história da gente como carreira musical’.

Mesmo assim, o perfeccionismo ao cantar a estreita amizade entre Caetano e Bethânia, já com sucesso, não parecem argumentos convincentes para as gravadoras, ‘na verdade eu não tinha convite nenhum pra cantar.’ ‘Arena Canta Bahia’ e ‘Tempo de Guerra’, em São Paulo, peças dirigidas por Augusto Boal, intercaladas por idas e vindas à Bahia e um compacto na RCA, sem sucesso, marcam um início não muito promissor. Situação modificada, no entanto, no Primeiro Festival da Canção, com ‘Minha Senhora’, de Gil e Torquato Neto. Um contrato com a Philips e ‘Domingo’, um elepê com Caetano (67), estreia de ambos, são os passos seguintes.
‘No começo foi tudo deslumbrante. A gente tinha fascinação por música e tava cada vez mais próximo da realização disso. Mas, ao mesmo tempo, existia um cuidado muito grande para não se jogar inteiramente nesse deslumbramento e manter uma integridade como pessoa. Nesse disco, tem toda uma linha gilbertiana, eu e Caetano cantávamos como João. Eu cantava sozinha algumas faixas e Caetano outras.’
Dez anos depois, as personalidades são isoladas, as carreiras e sucessos individuais momentaneamente interrompidas, e Caetano, Gal, Gil e Bethânia apresentam uma nova proposta, um grupo, os ‘Doces Bárbaros’, onde a música ‘O Seu Amor’, uma vocalização dos quatro, reflete o clima de amor no palco ‘talvez a coisa mais importante do trabalho’. E onde Gal significava a voz do grupo, confirmando, portanto, as palavras de Caetano: ‘Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas.’ “

Nenhum comentário:

Postar um comentário