Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 10 de junho de 2016

Hermeto Pascoal - Revista Ele Ela (1979) - 2ª Parte

"Hermeto conta que levou um montão de instrumentos para Montreux e para o Japão. Na Suíça tocou poucos ('mas só de olhar pra os outros, de saber que eles eles estavam ali já era bom. Cada instrumento é um amigo'). Ele toca conforme o clima. Panelas comuns, recheadas de fichas de ônibus, e cobertas por tela de náilon verde convivem lado a lado com a caixa das flautas doces e de bambu. Ele abre uma caixa e retira uma flauta bem miudinha que ganhou durante a viagem. Tira um som e conta que a batizou de Cheiroso em homenagem ao famoso bode de Recife. Uma outra, grande e toda diferente, é a Cabra. Ele conversa com seus instrumentos num tom que gente sensível usa para falar com as plantas. E me diz:
'Chegue pra cá que agora vou te dar um furo. Tá vendo isso? (um móvel antigo, empoeirado). É um harmônio. Chegou aqui anteontem, não foi nem estreado. Tem um som assim meio de igreja. Eu estava andando por um dos corredores do hotel lá em Montreux e vi um móvel estranho. Falei para aquele menino da Warner, o Midani: isso é um órgão. Chamamos um empregado do hotel que afirmou que não era. Eu teimei. E era. Igual a esse aí que deve ter uns 80 anos. Comprei através de uma daquelas lojas de instrumentos da Rua Marechal Floriano. Quer ouvir?
E eu lá queria outra coisa no mundo?
Hermeto abriu a tampa e um teclado, com três escalas, idêntico ao do piano, apareceu. Com os pés pressionando dois grandes pedais em madeira ligados ao fole, ele ia passando o ar necessário para fazer o som. Começou ensaiando um xote lento num tom sacro e grandioso. De repente, sapecou um Tico-Tico no Fubá com uma técnica verdadeiramente enlouquecedora. A emoção começou a subir, a esquentar as cabeças e, para disfarçar, demos mais um rápido giro no início das escaletas, teclados elétricos, baixos, baterias, caixotes, latas de tinta, trave de percussão. Conheci ainda a famosa mesa azul de fórmica, ela também um instrumento.
Por fim, o Mago das Alagoas abriu uma porta e entramos num quarto pequeno, anexo ao estúdio, onde brevemente será colocada a mesa de som (corte, mixagem etc) e que vai ganhar também um painel envidraçado. Como nos estúdios completos de gravação. No momento este é o quarto dos entulhos. Mas, perto de um piano desmantelado em fase de restauração ('tirei uns oito ratos aí dentro' - brinca Hermeto), travei conhecimento com a Bacia. Um tanto ou quanto avariada pelas viagens e constantes problemas alfandegários. ('Já pensou os home vendo uma coisa dessas vão acreditar que é um instrumento musical?') Este instrumento, bolado por Hermeto e executado pelo mano e amigo Manoel, é feito de uma bacia de alumínio comum, com cerca de um metro de diâmetro, cortada por dois travessões de madeira tosca. Num deles, estão estiradas oito cordas que transpassam a bacia através de furinhos e acabam nas cravelhas de afinação semelhantes às do violão. Eu arrisco um som; Hermeto morre de rir e explica que  a Bacia fica presa a um suporte, e que dentro da  bichinha vão ainda bolas de gude e água. Para tocar, ele usa um espremedor de limão. Naquele quarto minúsculo o ambiente é mágico. A luz da manhã se firma. Mas há perguntas a fazer sobre este homem iluminado e que acende tantas outras pessoas que vivem ao seu redor.
Voltamos à sala do primeiro andar e eu me instalo no chão. ('Fátima, Fabíola, tragam almofadas.') Hermeto senta-se na poltrona ao meu lado. Enquanto ligo o gravador, dou uma olhada pela sala.
As paredes são forradas de papel com motivos cashmere em dourado (ou será prateado?). As portas são laqueadas de azul-celeste; o grupo de estofados compõem-se de um sofá e duas poltronas, em tons marrom e bege. Há uma mesinha hexagonal no centro, com um jarro cheio de flores artificiais, em tecidos; a televisão em cores fica num canto e posters e fotos de Hermeto enfeitam as paredes entre uns arranjos de flores de plástico. É só.
Para começar, foi assim que Hermeto viu o sucesso fora de qualquer gibi, obtido em julho passado, no Festival de Jazz de Montreux:
'É o seguinte: quando a pessoa está com frio tem que dar um lençol conforme. O lençol fomos nós. Nós esquentamos a rapaziada com o som. Eu acho que não tem diferença de público, sabe. O público é sempre a mesma coisa, depende do trabalho que a gente apresenta. Ele quer ouvir coisas novas. E acho que foi isso que aconteceu. Aconteceu na Suíça, aconteceu no Japão também. Eram 10 mil japoneses vibrando. Os negros até pularam lá. A japonesada pulou. Eles pularam muito foi com a cabeça primeiro, pensando. Isto é que é importante: ouvir música.'
Hermeto costuma repetir em suas entrevistas que a música que faz não é para dançar. Mas argumentei que mesmo entendo o trabalho que ele e o seu grupo apresentam, com a máxima concentração, é impossível, a partir de dado momento, não se sacudir o esqueleto.
'Mas antes, tenho certeza de que as pessoas pensam muito. Não é aquele negócio que a pessoa ouve e já começa a dançar. É um remelexo que vem de dentro pra fora. a música que fazemos não deixa realmente ficar parado. Mas bole mentalmente, em primeiro lugar. Olha, na Suíça eu improvisei umas coisas com a voz, como sempre faço. Conversei com o público em português, fiz uma música para Montreux. No fim da reportagem, vou botar a fita para você. Me inspirou demais o lugar, o lago. Poucos lugares são lindos como Montreux. Me inspirou tanta plantação. Plantação até em cima dos morros! Aí fiz a música para flauta, piano e baixo. Tocamos eu, Jovino e Itiberê.'
Hermeto no palco em Montreux
 Aproveito a deixa pra perguntar pela formação deste grupo atual, que muitos sabem ser sua segunda família. Como vivem e trabalham estes meninos ainda na faixa dos 20 anos? Sei que formam uma espécie de comunidade também. Mas vamos lá;
'Menina, o grupo é uma s-a-l-a-d-a (e saboreia mesmo esta palavra). A Zabelê é mineira, toca violão, percussão e faz o vocal também. Ela é casada com Nenem, gaúcho que transa bateria, piano e percussão. Os dois moram na segunda rua à direita daqui; o Itiberê toca contra-baixo, acústico e elétrico, é paulista e mora defronte de meus pais, Pascoal e Divina, alagoanos, que por sua vez moram a três esquinas daqui; o nome do Pernambuco já entrega  o ouro, ele é pernambucano ligítimo, toca percussão, declama e  mora em Madureira; já o Cacau transa flauta e sax e é  o carioca do grupo, sendo o único que mora na Zona Sul, na Avenida Atlântica; o Jovino transa teclados e mora em Realengo. Tem ainda meu mano Manoel, que mora com nossos pais e é quem faz os instrumentos. Dexovê, será que esqueci alguém? Se esqueci, paciência. E eu, Nossa Senhora! Falta eu. Eu sou  o pastor. (E ri). "

(continua)

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