Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

João Bosco e Aldir Blanc - Jornal de Música (1975) - 1ª Parte

João Bosco e Aldir Blanc formaram uma das mais perfeitas parcerias da  música brasileira. Um músico intuitivo, excelente melodista, músico excepcional, além de ótimo intérprete, e um letrista dos mais inspirados, capaz de escrever letras de grande simplicidade mas ao mesmo tempos outras de grande erudição, Bosco e Blanc compuseram diversos clássicos. Em 1975 a dupla vivia o seu auge criativo, com várias de suas músicas tocando nas rádios e tornando suas composições bastante populares. Na ocasião, o Jornal de Música nº 9, que vinha encartado na revista Rock, a História e a Glória, trazia uma matéria com a dupla, assinada por Roberto Moura, intitulada "Aldir Blanc e João Bosco -  a parceria que começou com um pra lá e um pra cá":
"O encontro e a parceria entre Ouro Preto e o Estácio se deu por televisão, prosseguiu por correspondência e se realizou através das fitas magnéticas enviadas pelo Correio. João Bosco, ainda estudante em Ouro Preto, vê Aldir Blanc no palco do [festival] Universitário, no momento da premiação de uma de suas músicas. Vê Aldir meio desligado, meio alheio às comemorações e às demonstrações de deslumbramento. E resolve: 'É com esse cara que eu quero trabalhar'.
- Gostei do Aldir ali no vídeo, da fisionomia dele. Nas férias seguintes, no Rio, um amigo me levou até ele. Isto em 1970.
(Aldir interrompe o lance e desce aos detalhes).
- Quando começou foi aquele negócio de namoro na roça. Eu aqui e ele em Ouro Preto. Todas as músicas do primeiro elepê dele foram feitas por correspondência. Cartas e fitas a toda hora trocadas.
- Nós sabíamos também - João pega a bola de novo - que não podia ser um trabalho muito sujeito à ação do tempo, porque teria que esperar até que eu viesse pro Rio. Realmente, teve que esperar: o primeiro elepê saiu exatamente no dia 13 de agosto de 1973, há dois anos, portanto. Se estivéssemos em 1970 fazendo um trabalho sem esta preocupação, ele teria perecido antes de se gravar o disco.
- Depois - bola com Aldir Blanc - era um disco meio experimental, eu me amineirando e ele se acariocando, um chegando pra lá, outro pra cá. Isto só se soluciona neste segundo disco: ele cede e se acarioca pra valer, ainda que conservando os mineirismos indispensáveis...
- Acredito - João interrompe - na música como alguma coisa vinculada a um instante determinado, que se relaciona tanto com o heterogêneo do passado como com o imprevisível do futuro. Comecei a fazer música como se estivesse medindo o tempo com mais preocupação. Minhas músicas não têm que, necessariamente, se relacionar entre si: esta é a única abertura que tenho na vida. Aprendi que meu trabalho se defende sozinho, sem que eu precise ficar definindo-o a todo instante.
(Aqui entro eu: Apenas para documentar que estas preocupações de João e Aldir não começaram ontem e nem são produtos das comparações estabelecidas entre seu primeiro e segundo elepê, que eles não estão e nem precisam se defender do hermetismo de um ou da abertura do outro. No dia 4 de agosto de 1973,  publiquei uma entrevista com João Bosco no extinto O Jornal. Nela, dizia ele: 'As pessoas não vão achar no meu trabalho a unidade que, daqui a algum tempo, vai ser procurada. Esta unidade não existe. Meu primeiro elepê é uma coisa de Ouro Preto. O segundo conterá naturalmente os conflitos da minha integração na vida carioca. Terá que ser diferente').
Um dia, descobriu que calcularia melhor a harmonia de uma música do que a estrutura de um espigão e, universitário, amigo de Vinícius e Scliar, começou a trocar o diploma e o anel de engenheiro pelos riscos da carreira de compositor. A 'planta' do que seria a sua nova verdade começou a se materializar num disco de bolso, 'puxado' por Tom Jobim, que apresentava a então inédita 'Águas de Março'. No lado B, João Bosco fazia a sua estreia: Agnus Sei (estreia também da parceria com Aldir, que nada tinha mais de estreante).
Mineiro de Ponte Nova, 28 anos, João Bosco de Freitas Mucci passou dez anos em Ouro Preto, vivendo em comunidades universitárias, enquanto estudava. Quando a bossa-nova surgiu encontrou-o assim: um estudante morando longe de casa. E um estudante que gostava de rock. O curso científico, 2º grau, passou e levou com ele as dúvidas do mineiro que se ensaiava na música, no violão, na informação, E, no primeiro ano da Faculdade de Engenharia, João Bosco começou a compor, conheceu Vinícius, fez música com ele... e repetiu o ano: 'Foi o único ano que repeti na Faculdade e foi o ano em que mais aprendi', me disse, uma vez. Com Vinícius foram feitos Samba do Pouso, Rosa dos Ventos, O Mergulhador e outras. Todas inéditas.
As parcerias com uma das eminências pardas de MPB da época não foram para a cera, mas tiveram o poder de bulir com o jovem mineiro: 'Senti ali a possibilidade de um dia ser profissional em música: passei a encarar as coisas da música com a mesma seriedade com que encarava a engenharia e ficava catando informações, querendo estudar música, com a mesma preocupação que teria se estivesse numa escola'. Nesta altura, João já tinha se decidido pela música. Mas continuou na engenharia, até se formar: 'Estava nos meus planos colher a formação generalizada que o curso poderia me dar'. Havia também Ouro Preto, a cidade em si, que criou toda uma atmosfera misteriosa 'de música, de boemia, de noites em bares, com o meu trabalho sendo permanentemente influenciado por esta atmosfera'.
Da faculdade e do convívio nas repúblicas estudantis, João Bosco trouxe para a música 'a influência de metrificar as coisas, organizar, usar os métodos: por isso não me apressei em vir para o Rio. Sabia que tinha que vir, mas sabia que tinha que vir, mas sabia que precisava do curso, que precisava aprender muito antes de tentar o salto para o profissionalismo'. Esta mineirice valeu até quando ele se formou, casou e veio para o Rio, contratado seis meses antes pela RCA, para começar o primeiro elepê.
- Me apoiei no curso de engenharia para sair dele sem que fosse necessário vestir aquela carapuça de que artista é um marginal. "

(continua)

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