Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Gilberto Gil - Revista Música (1976) - 4ª Parte

" 'A questão do timbre ficou uma coisa de louco nessa nova fase da música elétrica.' Essa afirmação é feita quando são comparados instrumentos eletrificados e acústicos. 'Violão acústico você toca e a expansão do som é imediata. Num elétrico, na verdade são tocados dois instrumentos: o instrumento em si e o amplificador. Com o aparecimento desses acoplamentos eletrônicos, uma guitarra passa a ser, ao mesmo tempo, vários instrumentos. Ela tem  possibilidade de pelo menos dez timbres diferentes: pode soar como uma flauta à qual se acopla um pequeno aparelho desses pode soar como uma guitarra, um piano pode soar como uma flauta...'
Gil gosta de tocar na afinação clássica, buscando dessa afinação os sons que quer. Apenas 'Jurubeba' foi gravada com o instrumento afinado especialmente em mi-maior. 'Peguei a segunda corda, em si, aumentei um tom, levei pra dó. Peguei a corda ré, levei para mi e fiquei com o violão todo afinado em mi.'
Sua tabla veio da Índia. Valeu-se de informações baseadas na observação para tocá-la, sentindo a falta de professores, existentes somente em Paris. A técnica de dedilhar exige que o pulso também seja utilizado para fazer soar o tambor grande. 'Tentei transpor, na medida do possível, a técnica clássica para uma auto-interpretação dessa técnica.'
'Eu uso meu Dulcimer pra tocar coisas doces, mântricas.' O Dulcimer é de origem nórdica, assemelhando-se a instrumentos orientais, como a cítara, de quatro cordas, permitindo a aplicação de quatro escalas além de outras próprias de quem o utiliza. É tocado na posição horizontal. Atualmente, é muito usado nos Estados Unidos, onde é hábito os próprios artistas fabricá-los. 'A primeira vez que eu vi um Dulcimer ser tocado foi pela Joni Mitchell, no Festival da Ilha de Wight. Ela toca muito bonito. James Taylor também. É um instrumento muito comum entre esses artistas mais doces. Eu fiz duas músicas pro Dulcimer: uma sobre o Moreno, o filho de Caetano, e minha filha Preta e outra sobre aquele incidente do menino que foi preso em Porto Alegre porque subiu numa árvore que ia ser cortada. Não é bem uma música, é uma espécie de relato trovado: Um menino em Porto Alegre/subiu num pé de planta/um pé de acácia tipa/um pé de flor...'
Dentre os variados processos de criação por ele utilizados - fazer uma letra depois pôr a música, fazer a música e depois pôr a letra, desenvolver um tema, 'trabalhar por encomenda' - prefere o que chama 'criação inspirada', aquela que vem de repente, por acaso. 'Ainda ontem à noite, eu me deitei, de madrugada, não conseguia dormir. De repente me veio uma coisa na cabeça. Comecei a cantarolar, peguei o gravador e foi possível registrar. Parece que hoje deve ter uma música nova aí, que surgiu assim de madrugada, veio na cabeça e eu fiquei cantando. Eu nem sei ainda como é direito. Tá lá . Um canto que apareceu no meio da noite. A Rita Lee, do show, eu fiz a música e mostrei. Era uma música cantada, não era nada. A Gal disse; - Parece com a Rita  Lee! Aí eu disse: - Rita Lee! Aí Caetano fez: - ii! Aí a Gal fez: - tchu, tchu, ru, ru, ru! Aí saiu!'
E, por esses meios, expõe sua música, para ele o elemento que mais realiza o problema da expressão geral do homem no mundo de nossos dias. 'É a arte mais forte, a mais universal, pela própria qualidade plástica do som, talvez o elemento mais fluídico de todos, porque se propaga no ar e se dá no tempo. A música é a única forma de arte que se dá no tempo: escoada a nota, terminada a nota, terminou a música. Estava tocando, acabou de tocar, deixou de existir. As outras artes não. Elas se dão no tempo e no espaço. Elas ficam. A música não. A música é só o tempo que ela toca.
'Doces Bárbaros' é um trabalho muito simples, o nome define muito. A imprensa do Rio, uma boa parte, resolveu decretar guerra ao show, em nome de uma dignidade, grandiosidade e seriedade que nós quatro teríamos em particular, individualmente, e que estaria sendo perdida em 'Doces Bárbaros'. Eles acham que o fato de nos reunirmos no show, nos coloca num grau de jovialidade, de juventude que não seria permitido, pelo fato de sermos pessoas com mais de 30 anos. Acham o repertório banal, porque tem uma música chamada 'Rita Lee'. Um crítico disse que é um absurdo, uma homenagem absurda. Você sente que são coisas preconceituosas realmente. Existe uma facção desse pseudonacionalismo, dessa xenofobia musical que continua investindo. E, no entanto, a gente gosta de fazer e o público sente que a gente está alegre e fazendo uma coisa descontraída.
Os críticos, em geral, vão com 'Refazenda', 'Jóia', e 'Qualquer Coisa' na cabeça sem respeitar, sem saber, sem levar em conta o respeito pela atualidade, pelo que está sendo feito agora, que não é perfeito, mas é uma brincadeira, é uma festa.
Eu não entendo porque. Mas, o que me interessa é eu ir lá, me sentir alegre, cantar. E acho que o repertório dos 'Doces Bárbaros' é doce e bárbaro. É um repertório leve, com iê-iê-iês, rocks, sambas, folclore e coisas de macumba. A música brasileira é uma coisa muito vasta. Se a gente faz uma citação qualquer de uma das matrizes, o que é que tem? Criticam a falta de integração entre nós. Eu não acredito que exista isso. Eu acho que a gente é muito integrado, acho que a gente tá muito legal. É uma integração natural, sendo cada um como cada um é. É disso que eles não gostam, pois queriam uma unidade industrial, elaborada, programada, super-Broadway, super detalhada. Mas na verdade é bom, porque é um desafio. E mais uma vez a gente tá vendo que o frescor, a unidade e a leveza incomodam mais do que a coisa de aço, pesada. E a gente tá muito contente, porque tá mexendo de novo. Não é nossa intenção, mas acaba sendo resultado pela falta de sensibilidade dos críticos.' "

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