Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Jorge Ben - O Alquimista do Rio Comprido

Jorge Ben é um dos grandes criadores da música brasileira. No início dos anos 60 Jorge revolucionou o samba com uma batida que era diferente de tudo que se produzia no gênero até então. Suas letras traziam  uma originalidade e uma forma diferente de se falar de assuntos variados, trazendo como marca um otimismo e uma alegria raras vezes apresentados com tanta ênfase em nossa música. Além do mais, Jorge seja talvez o letrista que mais exaltou a figura da mulher amada, da mulher sonhada e pretendida, do amor correspondido ou não.
Em 1980, o escritor e crítico musical Nelson Motta lançou um livro chamado, "Música Humana Música", que reúne alguns textos das colunas que publicou durante anos no jornal O Globo. Um dos textos escolhidos foi sobre Jorge Ben, chamado "O Alquimista do Rio Comprido", cuja data de publicação não é mencionada no livro, mas que é dos anos 70. Segue abaixo, o texto:
"Um dos fundamentais dramas que afligem os criadores da música é a fidelidade a seus valores artísticos e, ao mesmo tempo, a evolução dentro deles, renovando o compromisso com o novo e abrindo caminhos em seus universos pessoais. Muitos têm a desagradável surpresa de, num exame de consciência após alguns anos de carreira, constatarem que 'antes eu era muito melhor', 'quanta besteira eu fiz', 'agora é que encontrei meu caminho', 'isto não tinha nada a ver', 'como é que eu pude fazer isso?' e outras observações ainda mais doloridas. Como 'e agora?'
Jorge Ben não tem esses problemas porque não pensa sobre eles, vive-os sem sofrimento ou conflito. Ele não tem tempo nem temperamento para elaborar uma linha dentro da qual vai exercer seu talento. Ele exerce, os outros falam e justificam e explicam por ele, como quase ridiculamente se tenta fazer aqui. Como quem tenta explicar 'cientificamente' o vento e a chuva diante de alguém que faz chover e ventar quando quer.
Jorge deve achar engraçado tudo que se escreve sobre sua música espontânea, vital e alegre como ele. Como fica infantilmente feliz com as constantes e  públicas homenagens que recebe através de músicas feitas sobre ele por artistas da dimensão de Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Chico Buarque. Ou quando Gato Barbieri quer gravar um disco com ele de qualquer maneira. Ou quando Cat Stevens tem nele um de seus artistas favoritos e até tenta (ingênua e reverencialmente) em seu disco 'Buddah and the Chocolate Box' reproduzir alguns dos ritmos que  o violão de Jorge cria.
Quando você ouve qualquer música que Jorge fez, identifica imediatamente o seu autor, sem possibilidade de erro, tão pessoal e forte é seu estilo. Isto seria fácil se todo seu trabalho fosse horizontal e sem piques, arrastando-se pelo tempo dentro das mesmas fórmulas poéticas, rítmicas e harmônicas. Mas Jorge consegue o milagre de manter inalteradas suas características básicas e, ao mesmo tempo, desenvolver em cada disco novas e poderosas criações rítmicas, aliadas a um canto cada vez mais perfeito e letras de liberdade crescente.
Em nenhum momento de sua carreira Jorge procurou adaptar-se à 'nova moda' musical, em nenhum momento ele teve a preocupação de ser vanguarda ou defensor da tradição, em nenhuma hora pretendeu ser revolucionário ou preservar o estabelecido. E conseguiu tudo isto e  muito mais, ao mesmo tempo.
Absurdamente subversivo, Jorge Ben subverteu inteiramente todas as regras de poética dentro da música, falando seus versos, ignorando totalmente qualquer relação exata sílabas-notas em favor de uma riqueza expressionista. Subverteu de forma total todas as batidas de violão existentes, transformando o instrumento em percussão & cordas.
Jorge deu um nó difícil de desamarrar nas posições elitistas tão presentes na  poética musical brasileira dos últimos tempos, tão cheias de 'regras absolutas', 'compromissos' e 'intenções' profundamente fechadas e duvidosas. Ele explode tudo isto com sua maneira de ver as coisas e as pessoas, criando valores e situações absurdas, no melhor e mais excitante sentido da palavra.
Senão, ouça 'Estão Chegando os Alquimistas' ou 'A Gravata Florida de Parecelso' ou 'Errare Humanun Est' ou qualquer outra faixa do 'Tábua de Esmeraldas'.
O universo lírico de Jorge Ben é diferente de tudo que já foi feito e pobres dos que atrelados a valores intelectuais ou 'intelectuais' não conseguem vislumbrar a magia intensa que há em suas músicas e letras. A loucura, a saudável loucura, está presente em cada música sua. Louco é alguém que trabalha trancado num banco a vida inteira ou quem fala em 'agricultura celeste' ou 'sua gravata era como um jardim suspenso'? A beleza está, muitas vezes, onde não se espera que ela esteja. Inclusive esperar beleza em algum lugar é esperar, esperar, esperar... Jorge não espera nem pensa sobre a beleza ou onde ela provavelmente estará. Vai de encontro a ela explosivamente africano, negro, brasileiro, universal."

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