Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Ziggy Marley Revisita as Pegadas do Pai (1988)

Em 1988 Ziggy Marley estava começando sua carreira, cercado de dúvidas e desconfianças. Ser filho de um mito como Bob Marley é um peso, pois as comparações são inevitáveis. E para um jovem músico que segue o mesmo estilo do pai famoso (algo inevitável para um jamaicano nascido sob a cultura do reggae) o início de carreira não é tão fácil como poderia se esperar. Após ter lançado dois discos sem grande receptividade, Ziggy acabara de lançar seu primeiro álbum com uma grande produção, "Consious Party". E assim foi com Ziggy, destacado na sessão Rio Fanzine, do jornal O Globo em sua edição de 05/06/88, em texto assinado por José Emílio Rondeau, e intitulado "A galeria Marley tem novo quadro". Numa legenda de uma foto ele diz: "São enormes as pressões em cima do trabalho de Ziggy. poderá ele levar adiante o legado do seu pai? As apostas estão abertas". Mas a verdade é que o tempo respondeu as indagações e dúvidas em torno de sua carreira que começava a se lançar como uma aposta naquele final dos anos 80. Ziggy se firmou, e leva adiante o legado do pai famoso. Segue abaixo a matéria;
"Filhos que seguem os passos dos pais não são novidade. É errado pensar quer encontrarão facilidades em suas carreiras artísticas por honra e graça dos laços de família. Pelo contrário: há casos em que o passado dos pais tem um peso e uma importância tão grande que chega a ser sufocante para o rebento iniciante. Ao menos a princípio haverá sempre uma nuvem carregada de expectativas altas, irreais até, sobrevoando o herdeiro. Certas vezes, o próprio destino se encarregará de atrapalhar as coisas um pouco mais. Julian, por exemplo, herdou a mesma tonalidade anasalada da voz do pai, John Lennon (que por sua vez, já arrastava o fardo de ter sido um ex-beatle), convidando a comparações sempre desvantajosas para o Lennon mais jovem. Jason literalmente sucedeu o pai, John Bonhan, no antigo posto, durante a reunião-de-uma-noite-só que o Led Zeppelin promoveu no dia 14 de maio, para a festa comemorativa dos 40 anos da Atlantic Records. Apesar de ambos - Julian e Jason - terem méritos próprios e características só deles, ainda precisarão passar por muitas provações e julgamentos até conseguirem de ser apenas Filho de...
A situação de Davd Ziggy Marley é especialmente delicada. Ele herdou não apenas o mesmo sobrenome e a mesma voz do pai - uma semelhança que chega a ser desconcertante - mas também um legado político/social/cultural, igualmente involuntário, que não é dos menores. Antes de ser morto por um câncer, em 1981, Bob Marley era o principal líder de seu país, a Jamaica. Ele não apenas disseminara o reggae no mundo inteiro como nenhum outro artista antes dele., fazendo com que a música de seu país se tornasse o mais popular gênero do Terceiro Mundo. Bob também unira as facções antagônicas da Jamaica de uma forma sequer sonhada pelo mais astuto candidato a um cargo público. Bob simbolizava tanto a força adquirida pelo reggae como música internacional quanto o esforço do Terceiro Mundo para alcançar sua autonomia. Além disso, ele era  a principal voz do rastafarianismo e da retomada das raízes africanas pelo povo da Jamaica. Se assim o desejasse, poderia ser eleito presidente. Mas o fato de ter permanecido músico, acima de tudo, torna sua trajetória mais espetacular ainda. Depois de Bob Marley, nenhum outro artista jamaicano conseguiu recuperar o terreno e o prestígio perdido pelo reggae através dos últimos anos. E ninguém conseguiu unir a Jamaica da mesma maneira unânime. E é aí que entra em cena Ziggy, um garoto de 19 anos que desde 1979 lidera a banda Melody Makers, formada com os irmãos Shain, Cedella e Stephen. Agora, após dois discos pouco conhecidos e fracassados comercialmente, Ziggy e os Melody Makers parecem próximos de um enorme sucesso, via o recém-lançado elepê 'Consious Party'.
Produzido por Chris Frantz e Tina Weymouth - a seção rítmica do Talking Heads - 'Consious Party' não deixa de soar como o disco que Bob provavelmente faria, nos dias de hoje, caso ainda estivesse vivo. A sonoridade e  os valores de produção têm uma modernidade à toda prova, mas nunca sobrepujam a tradição de raiz. Mas a extrema juventude e  o pan-culturalismo do álbum distanciam Ziggy do pai. Ao mesmo tempo, o que se poderia chamar de A Herança Marley - e aqui estamos falando com sua própria geração, em primeiro lugar, quando criam faixas como 'Tomorrow People', 'Consious Party' e 'Les and Molly'. Eles estariam, por assim dizer, fazendo um trabalho de base, a apresentação do reggae - como música de tradição, união e redenção - a gerações que porventura ainda não tenham sido apresentadas a ele. E é como contemporâneos dessas novas gerações que eles confrontam os mais velhos com 'We Propose' e 'Dreams of Home' - um tema profundamente espiritual que trata da volta dos jamaicanos à Mãe África, com um arranjo preparado pelo veterano Hugh Masekela.
E a utilização de músicos não-jamaicanos dá frsecor maior ao reggae juvenil de Ziggy e os MM: Jerry Harrison,, também dos Talking Heads, mais o clarinetista Lenny Picket e Keith Richards, dos (ex?)  Rolliing Stones. Não por acaso 'Consious  Party' está tendo uma aceitação maciça nos Estados Unidos, abastecida por uma turnê igualmente vitoriosa de costa a costa. É o disco de reggae mais acessível aos não-iniciados em longos anos. Com seis semanas de lançamento, no final de maio o álbum era o vigésimo sétimo mais vendido no país, de acordo com  a listagem da revista Billboard. Num show recente em Los Angeles, Ziggy superou a lotação do artista que se apresentara dias antes dele no mesmo lugar, o megabadalado Terence Trend D'Arby.
Quanto à capacidade de restaurar a união na Jamaica, talvez nem o próprio Ziggy deseje algo além de uma carreira como músico. Pedir dele a repetição dos triunfos do pai seria como desejar que a tal nuvem de expectativas despeje um toró sobre um garoto que pode estar apenas querendo ser um entertrainer. E ainda é cedo demais para se fazer qualquer tipo de previsão sobre o futuro dos Melody Makers. E é tal o descompromisso de Ziggy com o que se poderia chamar de Causa Séria que ele não teve pudores de posar como modelo numa recente matéria de moda para a revista Rolling Stone. "


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Caetano Veloso e o Rock - Jornal do Brasil (1997)

Em 1997 Caetano Veloso lançou o livro Verdade Tropical. Na ocasião, em sua edição de 26/10, o caderno cultural do Jornal do Brasil (chamado Caderno B) fez uma edição especial somente falando do recém-lançado livro. Dentre os vários depoimentos e matérias, um deles fala sobre a relação de Caetano com o rock. O jornalista cultural Jamari França destaca o que Caetano fala sobre sua relação com o rock ao longo do livro. A matéria é intitulada "A rejeição e o desafio do rock, de Elvis a Raul":
"Caetano Veloso tem uma relação conflituada com o rock ao longo das 524 páginas de Verdade Tropical. Demonstra uma estranheza inicial em relação ao rock pela estrutura musical primária, se comparada ao universo do jazz e da bossa nova de João Gilberto, a quem chama de 'mestre supremo'. Mais adiante, tem sua atenção despertada para a Jovem Guarda através da irmã, Maria Bethânia, que lhe apontou a 'vitalidade' de Roberto, Erasmo & Cia.
O fascínio chegou ao ponto de ele transformar uma música concebida como marchinha, Alegria, Alegria, num rock tocado pela primeira vez com o grupo argentino radicado em São Paulo The Beat Boys no reduto sagrado da MPB tradicional, o festival da TV Record. Fala Caetano: (...) 'Enquanto o meu currículo era anunciado pelos apresentadores, os Beat Boys (...) apareceram no palco para ligar seus instrumentos e tomar posição, surpreendendo a plateia com seus cabelos longos, roupas cor-de-rosa e guitarras elétricas de madeira maciça. Iniciou-se uma vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara furiosa antes que meu nome fosse anunciado, o que assustou locutores, diretores, produtores e público. (...) O curto silêncio que se seguiu ao meu surgimento foi interrompido pela voz da apresentadora dizendo meu nome e, quase sem intervalo, pelas guitarras e bateria, que atacaram a introdução. Os três acordes perfeitos, executados por instrumentos elétricos, se impuseram, e o silêncio da plateia, conquistado pelo susto da minha entrada não foi mais ameaçado; o que seria uma tumultuosa vaia se transformou em atenção redobrada. E a canção caiu no gosto dos ouvintes, que terminaram aplaudindo com entusiasmo.' Caetano hoje queixa-se de não ter-se livrado de Alegria, Alegria como Chico Buarque se livrou de A Banda. Não devia fazer isso: Alegria é a sua Satisfaction.
Caetano acabou tendo uma preferência escancarada por Roberto e Erasmo, os principais nomes do que se chamava na época de iê-iê-iê, nome inspirado no coro de um dos sucessos dos Beatles, She Loves You (yeah yeah yeah). E os tropicalistas tiveram completa adoração pelos Mutantes. 'Os Mutantes, ainda semi-amadores pareciam não copiadores dos Beatles mas seus pares criativos na mesma linha. Quando (o maestro Rogério) Duprat os apresentou a Gil, este comentou comigo assustado: 'São meninos ainda e tocam maravilhosamente bem, sabem de tudo, parece mentira.' A banda de Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Batista foi das primeiras formações brasileiras a colocar diversos gêneros musicais no caldeirão dos experimentalismos.
Um conterrâneo de Caetano, Raul Seixas, foi na mesma linha, mas a postura de rocker dos anos 50 lhe tirou a credibilidade diante de Caetano: 'No fim da primeira metade da década de 60, enquanto Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Alcivando Luz, Djalma Correia, Tom Zé e eu ensaiávamos uma antologia de clássicos da Música Popular Brasileira dos anos 30 aos 50, algumas obras-primas da bossa nova e algumas canções inéditas compostas por nós mesmos para apresentar na inauguração do Teatro Vila Velha, (...) Raul Seixas ensaiava covers de rocks americanos para cantar no Cine Teatro Roma. (...) Ao contrário de Erasmo, Raul tinha ambições estéticas cuja natureza não facilitava uma receptividade por parte das gravadoras: ele só veio a tornar-se nacionalmente conhecido como cantor e compositor depois da onda do neo-rock'n roll inglês e, sobretudo, depois do Tropicalismo.' Caetano diz que ele e sua turma tinham uma aceitação maior junto aos formadores de opinião, provocando ressentimentos em Raul, que era bem aceito pelos jovens mas rejeitado pelos intelectuais e Mr. Veloso reivindica a preparação do terreno para Mr. Seixas: 'Raul sabia de nós tanto quanto nós dele. Possivelmente mais. E se suas queixas quanto à nossa atitude esnobe eram fundadas e justificadas, ele próprio deixava ressurgir o tom agressivamente irreverente com que ele e sua turma se referiam à 'turma a bossa nova' (...) Nós éramos os inventores do Tropicalismo (que) tinha trazido o rock'n roll pra o convívio das coisas respeitáveis, o que fora decisivo para que Raul pusesse em prática suas ideias (...). 'É bom lembrar que essa hostilidade aconteceu nos anos 60, depois houve uma aproximação e cumplicidade entre tropicalistas e Raul.
Quando ouviu as  primeiras manifestações do rock, Caetano rejeitou-as como muito primárias - ele diz que, se dependesse dele, Elvis Presley jamais seria uma estrela -, adotando uma postura intelectual underground, numa espécie de versão tropical dos beatnicks. Em termos musicais, ele cita alguns músicos que Jack Kerouac, por exemplo, menciona como favoritos no livro On The Road, como Thelonius Monk, Miles Davis, Chet Baker e Billie Holiday.
Nos anos 70, Caetano anuncia que seu som era frequentado por alguns biscoitos finos da música internacional, como o revolucionário e anárquico grupo Mothers of Invention, liderado por Frank Zappa, o então pouco conhecido bluesman John Lee Hooker, que só nos anos 90 conseguiria sucesso de massa, o grupo The Doors, liderado pelo devastador Jim Morrison. Claro que não faltava a admiração pelos  Beatles, especialmente por músicas como Strawberry Fields Forever, apontadas como modelos a seguir."

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Tom Zé Lança Estudando o Samba (1976)

O disco "Estudando o Samba", de 1976, é um marco na carreira de Tom Zé, não somente pela qualidade do trabalho, mas por ter sido responsável, muitos anos depois, pela retomada da carreira do compositor, a partir do momento em que David Byrne, ex-líder da banda Talking Heads numa passagem pelo Brasil, através desse disco descobre a obra de Tom Zé, e impulsiona sua carreira no exterior. O que talvez tenha mais chamado a atenção de Byrne no disco de Tom Zé, sejam as experimentações sonoras, fora dos padrões. Um fator que significou um diferencial para um ouvido atento e aberto às novas formas sonoras que os ex-Talking Heads também gostava de fazer em sua banda. O interessante é que o disco de Tom Zé fugia ao que Byrne procurava. Sabe-se que ele visitou sebos no Rio, procurando discos de samba. Um vendedor, ao separar os discos do gênero, ao ver um disco com  a palavra "samba" no título, achou que era mais um disco típicode samba, mas na realidade, pouca coisa do gênero se encontra na obra, não sendo, portanto, um trabalho adequado para quem, como Byrne, queria conhecer mais profundamente o ritmo musical mais tipicamente brasileiro.
Em sua edição de maio de 1976, o jornal Hit Pop, que vinha encartado na revista Pop, trazia uma entrevista com Tom Zé, falando de seu lançamento, cuja matéria ganhou o título de "Tom Zé, o Operário da Linguagem":
"O mercado de discos é o ferro bruto; a inteligência e a criatividade são quentes como uma fornalha; o artista é o martelo, que molda o ferro, que lhe dá novas formas. Com essa imagem, o compositor baiano/paulista Tom Zé deixa clara sua posição de músico sempre disposto a ampliar as fronteiras de sua arte. Como faz em seu novo LP, Estudando o Samba.
Na contracapa de seu novo LP, Estudando o Samba, Tom Zé faz um desabafo típico dos artistas que, por razões alheias à qualidade e novidade de sua música, não encontram a resposta adequada do público comprador de discos: 'Se esse LP não circular, terei de abandonar o lado de pesquisa do meu trabalho'. Na verdade, abandonar a pesquisa musical parece uma decisão tão drástica quanto impossível para Tom Zé, esse baiano fantasiado de paulista, de fala mansa e adjetivos certeiros, que desde o tempo da Tropicália vem realizando uma revolução quase silenciosa dentro da música popular brasileira.
Para explicar sua atuação na MPB, Tom Zé dispensa as definições tradicionais de 'músico', 'cantor', ou 'compositor'. Tom Zé se considera um operário da linguagem, envolvido no trabalho árduo e persistente de lapidar a língua portuguesa através da música. Uma tarefa quase sempre mal recompensada, que luta ainda com o humor mutável e o critério sem lógica dos programadores de rádio.
Pop - Você se diz um operário da linguagem. O que significa exatamente isso?
Tom Zé - O operário da linguagem é aquele que tem como matéria-prima a língua falada e escrita. É interessante notar que a figura do operário da linguagem só foi possível depois do advento da bossa nova. Quando João Gilberto surgiu, muita gente o chamava de bicha por causa da voz, suave, de timbre normal. Antes de João Gilberto, os cantores tinham que ter voz entre o grave e o super-grave. A música e a interpretação eram duras, rígidas. O cantor tinha que transmitir, com a voz, uma imagem de machão. Senão, não dava pé. A bossa nova veio modificar isso, através do uso acentuado de síncopes e outras sutilezas musicais, até então proibidas.
Pop - E dentro desse panorama histórico do cantor brasileiro, como você situaria sua voz?
Tom Zé - Eu nunca me considerei cantor, no verdadeiro sentido da palavra. Mas ultimamente tenho recebido força dos amigos para trabalhar também como intérprete. Acabo de receber um convite da TV Globo, por exemplo, para interpretar duas valsas na trilha sonora de uma novela chamada Xeque-Mate. São duas valsas antigas, Nancy e Dama de Vermelho, que inclusive já foram gravadas por Francisco Alves, o Rei da Voz. Topei a parada, mesmo sabendo a terrível profanação que vai ser.
Pop - Até mesmo no título, Estudando o Samba, seu novo disco sugere um trabalho de pesquisa. Como você desenvolveu esse trabalho? O que ele significa para você? 
Tom Zé - O disco é um trabalho integrado de ritmos, cores e funções. Creio que posso compará-lo a uma linha de montagem, que funciona assim: o mercado de discos, o sistema, seria o ferro bruto, duro e rígido; a inteligência e a criação são quentes como a fornalha e o artista é o martelo que reformula os moldes, trabalha e transforma o ferro em novos moldes.
Além disso, nos arranjos, utilizei diversos instrumentos inéditos, como liquidificadores, apitos e máquinas de escrever. Tudo formando um grande móbile, de peças independentes mas indivisíveis.
Pop - Como você faz para viver de música, já que seus discos têm sempre vendagens modestas?
Tom Zé - Trabalho é que não falta. Apenas eu não me prendo a nenhum esquema de empresário ou promotor. Sabe quem é meu empresário? São os estudantes universitários, que me telefonam e pedem que eu vá às escolas, tocar para o pessoal. E eu vou. Agora, tem o meu amigo Corisco, cabeça pensante da Editora Musiclave, que tem feito comigo um trabalho de arregimentação. Ele acredita que pode me encaminhar para o consumo internacional. O Corisco é um inventor de modelos, que já resolveu inclusive o problema de edição das músicas do Jorge Ben. "

domingo, 22 de janeiro de 2017

Chico Buarque - Primeiro Show (1966)

Em 1966 Chico Buarque faria seu primeiro show, chamado "Meu Refrão", na boate Arpège, no Rio. Na época Chico vinha de um sucesso retumbante, por conta de "A Banda", e já começava a despontar como uma grande revelação de nossa música. Em sua edição de 17 de abril de 2005, o jornal O Globo trouxe uma matéria sobre o show, por ter sido encontrada uma fita com o áudio do mesmo. A matéria é assinada  por  Hugo Sukman, e é intitulada "Quem É Chico Buarque de Hollanda?": 
" 'Quem é Chico Buarque de Hollanda?', pergunta, que dali a algumas semanas e para todo o sempre soaria completamente despropositada na boca de um brasileiro comum, foi a que o cineasta Antonio Carlos Fontoura fez assim que desembarcou em São Paulo, naquele dia de julho de 1966. É que ele ouvira no rádio, prestes a embarcar no Rio, um samba cantado por Alaíde Costa que lhe impressionara profundamente: 'Carnaval, desengano/Deixei a dor em casa me esperando...'.
O título do samba, o locutor foi claro, era 'Sonho de um Carnaval'. O autor: 'Chico Buarque de Hollanda!' Do Rio esse tal de Chico não era, bem sabia Fontoura, tão enfronhado no meio artístico local. Como a carioca Alaíde já era radicada em São Paulo, Chico deveria ser de lá, por isso Fontoura consultou amigos paulistas.
-É um estudante de arquitetura que faz música, filho do Sérgio Buarque de Hollanda - disse um deles.
Fontoura ligou para a casa do autor de 'Raízes do Brasil' para falar com seu filho  Chico.
- Naquele dia mesmo, Chico foi ao meu hotel, sentou à minha frente com o violão e cantou 18 músicas, entre as quais 'Olê Olá', 'Pedro Pedreiro', 'A Rita'. Meu queixo caiu - recorda-se, hoje, Fontoura.
De volta ao Rio, o cineasta está no camarim do Teatro Opinião, onde sua mulher, a atriz e cantora Odete Lara, e seu amigo Hugo Carvana participam da encenação da peça 'Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come', insistindo:
-Temos que produzir um show do Chico no Rio... - dizia talvez sem se dar conta da estranheza de um cineasta iniciante propor a dois atores a produção de um show de um compositor desconhecido.
Carvana foi enviado a São Paulo para finalmente acertar a vinda de Chico para o Rio.
-Ele marcou comigo no escritório de seu empresário na época, o Marcos Lázaro, na TV Record. Chegou atrasado, pedindo desculpas, dizendo que estava de ressaca. Mas me levou para conversar no botequim em frente. E bebemos muito conhaque. Pensei: Esse aí é profissa... - recorda-se Carvana o início de uma amizade que dura até hoje. - Ele topou e marcamos um novo encontro, desta vez no Rio, com Fontoura e a Odete. O Chico chegou ao Opinião dias depois, entrou pela porta dos artistas e ficou esperando terminar a peça. Naquela noite mesmo, fomos conversar sobre o projeto do show no velho bar Zeppelin, em Ipanema. Fomos Fontoura e Odete, minha mulher Marta e eu, Chico e a Marieta Severo, que também trabalhava na peça e conheceu Chico naquela noite.
Quando, na semana passada, um pequeno grupo de pessoas reuniu-se na casa do músico carioca Felipe Radicetti, no Humaitá, para ouvir o CD que ele enfim conseguiu fazer da velha fita de rolo que achou em seus guardados, ninguém sabia dessas histórias por trás da gravação. Apenas ouviam, encantados, a íntegra do show 'Meu Refrão', que estreou em setembro de 1966 na boate Arpège, no Leme, com Chico Buarque, Odete Lara e MPB-4.
O show seria marcante por tantos motivos. É o primeiro de Chico (então com apenas 22 anos) que em São Paulo se apresentava, mas em TV e em shows universitários. Marca seu encontro com o MPB-4, grupo que o acompanharia pelos nove anos seguintes. Marca sua mudança para o Rio, sua cidade natal, mas onde quase ninguém o conhecia (só poucos do meio musical e quem ia muito pra São Paulo), e onde se casaria (com Marieta, que Carvana lhe apresentara logo no primeiro dia) e onde ficaria para sempre. Seria, por fim, o último momento em que, antes do estouro de 'A Banda', Chico não seria tratado como um fenômeno, quase um mito.
- Antes de começar a temporada, Chico já dizia que num dia tal não poderia fazer o show, pois teria que ir a São Paulo participar de um festival - lembra-se Carvana - Era 'A Banda', que nós vimos pela TV, torcemos... Depois, em uma, digamos, jogada de marketing (risos), incluímos a música no repertório e mudamos o nome do show para 'A Banda'.
- Mas já era sucesso - lembra Fontoura. Chico conquistou a cidade em uma semana.
A gravação a qual o Globo teve acesso, inédita até semana passada, é dos dias seguintes à volta de Chico vitorioso com 'A Banda'. O público é delirante durante todo o tempo.
Mas o show em si, para além da dimensão histórica, é um impressionante retrato do artista quando jovem. Traz, no repertório, os sambas do primeiro disco de Chico, que seria lançado no fim  de 1966, e do segundo, 'Chico Buarque de Hollanda Vol.2', de 1967.
Do segundo disco, o MPB-4 canta a pouco conhecida 'Fica' (já bem no clima da época, dos versos 'Diz que eu sou subversivo/Um elemento ativo/Feroz e nocivo ao bem estar comum'), Odete Lara canta 'Será que Cristina Volta?' (na verdade parodiando para 'Será que Chiquinho volta?', como uma resposta a 'Odete levou meu sorriso...', Chico trocando 'A Rita', por 'Odete') e Chico e Odete lançam o dueto 'Noite dos Mascarados', feito para o show para o lugar 'Tamandaré', samba em que Chico ironizava a nota de cinco cruzeiros, que não valia nada e tinha a efígie do Almirante Tamandaré, patrono da Marinha, fora censurada (o primeiro da longa série de entreveros entre Chico e Censura).
Do primeiro disco, há desde os sucessos óbvios - 'Meu Refrão', 'Olê, Olá' (apelidado na época de 'Samba do padre' pelo verso 'Seu padre toca o sino...'), 'Pedro Pedreiro' - até grandes sambas de Chico inexplicavelmente esquecidos, como 'Você Não Ouviu' e 'Amanhã Ninguém Sabe', ou da canção 'Ela e Sua Janela', intricada melodia que Odete Lara desfia.
Mais obscura ainda é 'Malandro Quando Morre', samba da pré-história de Chico só gravado pelo MPB-4 e que tem nessa velha fita o único registro conhecido feito pelo autor.
- A intenção do show era revelar a obra do compositor - diz Fontoura. - Nós alugamos o Arpège, uma boate decadente que pertencia ao (organista) Waldir Calmon, e reformamos. O artista plástico Antonio Dias, sobre quem eu fiz um filme ('Ver Ouvir'), decorou a boate e fez o cenário. Ganhamos tanto dinheiro que todo dia eu saía do Arpège e ia comer caviar e beber vodka num restaurante russo no Posto 6, o Doubianski.
- Bebi o lucro do show e paguei a bebida para os amigos - confessa Carvana. - Tanto que depois me internei no Sanatório Botafogo para desintoxicar.
Ninguém sabia que o show fora registrado. Alguém gravou-o da cozinha. A fita de rolo, de ótima quaklidade, foi passada a Radicetti (que além de compositor  é organista) por um amigo organista que já morreu. Pode, tecnicamente, virar precioso disco. Os arranjos de Magro são ótimos, tem Raul de Barros no trombone, o niteroiense Balu na flauta, Miltinho e Chico nos violões.
Chico ainda não ouviu. O pessoal do MPB-4, já.
- Éramos inexperientes, mas bem ensaiados. O resultado é bonito - atesta Magro.
No mínimo, a gravação pergunta e responde 'quem é Chico Buarque de Hollanda?' "

sábado, 21 de janeiro de 2017

Alceu Valença - Jornal de Música (1975)

1975 foi um ano marcante para Alceu Valença. Após participar do festival Abertura da Rede Globo, com sua composição Vou Danado pra Catende, Alceu se lançava para o mercado de música de forma mais contundente. Após lançar um disco em dupla com Geraldo Azevedo, em 1972, e seu primeiro álbum-solo, Molhado de Suor, no ano anterior, Alceu investiu pesado em seu primeiro grande show, com produção e uma banda de primeira, em cuja formação se incluía Zé Ramalho e o pessoal da banda recifense Ave Sangria. A gravação desse show acabaria resultando no ótimo disco Vivo!. Sua postura e sua figura lembravam um astro do rock, mas sua música trazia toques regionais, das coisas que sempre ouvia quando criança em sua cidade, São Bento do Una/PE.
Em setembro de 1975, o Jornal de Música trazia uma matéria com o novo astro nordestino que começava a ganhar espaço na música brasileira, com sua síntese de música elétrica e nordestina, sem perder suas raízes. A matéria , assinada por Ana Maria Bahiana, é intitulada "O Taumaturgo Crazy do Nordeste":
"Eu não diria que Alceu Valença parece um hippie. Muito menos um astro de rock. Há alguma coisa tão mambembe, tão imprevista, tão improvisada em sua figura, em sua roupa de palco, que nem as botas de cano longo conseguem rockificar. Talvez seja a camisa cáqui, nada jeans, muito miveste, baratex. Talvez sejam as fitinhas coloridas presas na roupa, sem muita lógica, bonitas, parecem bentinhos de porta de igreja. O cabelo grande, sim, e a barba. Eu diria mais um taumaturgo crazy do Nordeste.
Alceu está resfolegando e molhado de suor depois do  show. É desgastante, esse show. Ele pula o tempo todo, corre pelo palco, faz equilibrismos, dança. Pergunto onde ele tirou essas ideias. 'Menina, sabe que tem gente que pensa que eu tou doido quando faço isso? Mas não tou não. Eu faço sabendo mesmo, sentindo cada coisa.  Foi tudo coisas que eu vi, que eu curto desde garoto. Isso de correr assim pelo palco, agitando os braços, isso não é novo não, não é nem de rock. Tinha um cantor palhaço, que se apresentava lá em São Bento do Una (Pernambuco, onde ele nasceu), que fazia isso mesmo. E mesmo Jackson do Pandeiro e Almira, lembra? Tinha aquela coisa de xaxado, mas já não era só xaxado, era uma estilização, vamos dizer assim, uma curtição em cima do xaxado mesmo.' A pergunta e a resposta - levantam o básico da música de Alceu. Aquilo que eu mesma chamei de 'circo eletrônico', de 'cantador de feira alucinado'. A síntese, afinal, a maldita e penosa síntese entre rock, eletricidade e música brasileira. Como foi isso, Alceu?
'Você se espanta porque na minha música está completo, não é? Pois é isso mesmo. Não foi algo que eu fiz deliberadamente. Eu simplesmente fui deixando entrar nos meus ouvidos, deixando acumular... Eu vivi com muita intensidade o repente, o rojão, os cantadores. Circo então nem se fala, adorava circo, aqueles bem caindo aos pedaços que chegavam lá em São Bento. Apesar de minha família ser até mais de classe média - meu pai é político, foi deputado na época da redemocratização de 46 -, lá numa cidadezinha como São Bento do Una não dá pra ter uma distância muito grande não.
Eu vivia no meio dos cantadores, ouvindo os improvisos. Porque é uma maravilha, não é? É puro exercício de estética, de retórica, puro exercício mental. Essas coisas meio bíblicas que estão saindo agora nas minhas letras, isso é deles, dos cantadores. Eles é que têm todo esse lado incrível de pôr citações da Bíblia, da mitologia, quimeras, dragões, Vênus, Apolo, o Gonzaga muito, demais, e já era  outra coisa, uma estilização da coisa. E Ângela Maria, Caubi Peixoto, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas. Eram as coisas que tocavam nos auto-falantes da praça de São Bento. Depois fui para o Recife, e lá já tomei contato com outra coisa, que é a música de litoral, os maracatus, as cirandas. Isso que eu anuncio como fado, a 'Borboleta', na verdade é uma ciranda do Recife, só que eu dou destaque ao lado português que existe dentro da ciranda, esse pseudo-fado. Nessa época eu comecei a ouvir rock, Elvis Presley, Ray Charles. Não fui atrás, de propósito. A coisa foi chegando e entrando no meu ouvido. E eu senti muito, porque achei muito parecido com as coisas que eu já conhecia e gostava, o rojão. Aquela choradeira do Elvis, por exemplo, aquele oh-oh-oh-oh, puxa, eu disse, isso é arretado igual violeiro, choradeira de violeiro, sabe como é? E depois, o Ray Charles, aquele blues em que as mulheres respondem lá atrás, bem alto, aquilo é igual cantoria, também. Então você vê como foi? As coisas foram chegando e se completando sozinhas, na minha cabeça. Inclusive hoje eu não gosto do que se faz muito no rock, não. Gosto de eletricidade, do baixo bem marcado, e isso eu uso. Gosto de Dylan, também é bonito. Mas parei muito de ouvir.'
Quando eu conversei com o Alceu, ele andava preocupado com  as cadeiras vazias do seu show, no Teatro Tereza Rachel. Preocupado por causa dele, é claro, mas muito por causa dos músicos, que já haviam enfrentado barras-pesadas demais por causa dele. Alceu estava com um pouco de medo, mesmo. Hoje ele deve estar mais: o show encheu tanto de gente que simplesmente não conseguia encerrar a temporada. Mas a pergunta ainda cabe: como anda a barra pro lado dos novos, dos estreantes? Abertura, o festival, abriu alguma coisa?
'Abriu nada. Só em termos de ficar conhecido. Isso eu fiquei. Mas não ajudou muito a gente prosseguir, não. As mesmas coisas: mil promessas que não se cumprem. Falta grana pra aparelhagem, pra pagar  o pessoal. A gente tem que se virar sozinho, e a barra pesa demais. Teve uma hora, quando a gente saiu do Recife pro sul, por conta própria, que a situação ficou muito preta. O grupo, que é muito unido, ficou até contra mim, entrou numa que eu estava usando eles. Quem não tinha família ficou no aperto mesmo, sem dinheiro nem pra comer. Aí a gente chega no Rio, no sul, e descobre que não tem aparelhagem direita, que não teve divulgação. Por isso é que eu já pensei em criar galinha. Mas criar galinha mesmo, que lá em São Bento do Una tem muita galinha dando sopa.' "

sábado, 14 de janeiro de 2017

Raul Seixas, Produtor de Discos - Revista ShowBizz Especial (1999)

Antes de se tornar um cantor e compositor de sucesso, Raul Seixas atuou como produtor de artistas da gravadora CBS, de uma linha mais popular. Raul não só produzia, como compunha para vários desses artistas, assinando como Raulzito. Artistas como Jerry Adriani, Leno e Lílian, Zé Roberto, Renato e Seus Blue Caps, entre outros, gravaram músicas de Raul naquele período. Em agosto de 1999 a revista ShowBizz lançou uma edição especial sobre Raul, intitulada "Raul Seixas, o Guru da Sociedade Alternativa", falando de vários aspectos de sua carreira, inclusive esta, de produtor. Segue abaixo a matéria:
"Antes de se consagrar como cantor, Raul Seixas fez seu nome como produtor e compositor pra vários artistas.
Trabalhando para a gravadora CBS (atual Sony) de 1969 a 1973, ele cumpria exatamente a mesma função de, por exemplo, George Martin para a EMI nos anos 50 e 60 ou Liminha para para a Warner nos anos 70 e 80 - ou seja, foi produtor fixo da gravadora, mero 'operário da alegria', cuidando dos discos de vários artistas do elenco.
Aliando a versatilidade à necessidade, com uma filha para criar, Raul se desdobrou não só como produtor da CBS, mas também como compositor, inclusive para artistas de outros selos. Ele afirmou ter composto cerca de oitenta músicas nesse período, todas bem comerciais. Algumas são bastante efêmeras, o que é normal em qualquer compositor tão produtivo. Muitas delas, porém, tornaram-se clássicos brega: 'Se Ainda Existe Amor' (lançada por Balthazar e regravada nos anos 90 por Jayne), 'Ainda Queima e Esperança' (Diana) e 'Playboy' (Renato & Seus Blue Caps), só para citar algumas.
Quem muito contribuiu pra a estreia de Raul como produtor foi Jerry Adriani, que o conheceu durante uma temporada de shows no Norte/Nordeste. A banda que iria acompanhá-lo não apareceu e na hora do aperto alguém sugeriu Os Panteras, que deram conta do recado, a ponto de Jerry convidá-los para ir ao Rio de Janeiro.
Salvo engano, Jerry foi o primeiro artista a gravar uma música de Raul, justamente um de seus maiores sucessos, 'Tudo Que É Bom Dura Pouco', em 1969. Jerry se deu tão bem com Raul que pediu a Evandro Ribeiro, diretor  da CBS, que o deixasse produzir seus discos. 'Ele ficou meio cabreiro, mas acabou topando. Produziu três LPs meus e é autor de um dos maiores sucessos da minha carreira, 'Doce, Doce Amor'. '
Capa da revista
Os três integrantes do grupo Azymuth também têm apenas elogios para Raul. Ivan Conti, Alex Malheiros e José Roberto Bertrami trabalharam em discos de Raul na PolyGram, nos anos 70. 'Ele era profissionalíssimo, muito responsável, sabia o que queria', dizem. Já a falecida Miriam Batucada, de quem Raul produziu na CBS um compacto com dois sambas, costumava ser menos lisonjeira: 'Raul acabou com minha carreira, samba não era a praia dele. Mas como ele mesmo se autodestruiu, a gente perdoa'. Odair José foi outro artista que teve alguns de seus primeiros discos produzidos por Raul na CBS. 'Ele almoçava com a gente', conta, 'e estava sempre com uma maleta 007, de onde tirava uma porção de comprimidos, dizendo 'este é pra crescer cabelo, este é pra fazer parar de nascer cabelo'...'
Se samba não era o forte de Raul, o forró estava mais próximo de suas origens. Em 1971, ele chegou a escrever o texto da contracapa do LP Pau de Sebo Volume 5, incluindo forrozeiros arretados como Marinês e Coronel Ludgero, com produção do grande e saudoso sanfoneiro Abdias. Nos anos 70, a Rede Globo costumava chamar compositores ilustres (Roberto Carlos, Marcos Valle) para compor as trilhas sonoras de suas telenovelas. Raul foi convidado pra criar a trilha de O Rebu e dessa experiência resultou um dos seus maiores hits, 'Como Vovó Já Dizia'. 

 O Raul que Raul não cantou - aqui algumas das canções que o Maluco Beleza fez para outros intérpretes:
"Ainda Queima a Esperança' (com Mauro Motta) - Diana (CBS, 1971)
'Bruxa Amarela' (com Paulo Coelho) - Rita Lee e Tutti-Frutti (Som Livre, 1976)
'O Crivo' (com Waldir Serrão, radialista baiano conhecido como Big Ben; a parceria com Raul não foi creditada  no disco) - Waldir Serrão (RCA, 1976)
'Darling' (com Mauro Motta) - Renato e Seus Blue Caps (CBS, 1972)
'Doce, Doce Amor' (com Mauro Motta) - Jerry Adriani (CBS, 1972)
'O Mundo Dá Muitas Voltas' (com Leno) - Wanderley Cardoso (Copacabana, 1971)
'Objeto Voador' (primeira versão de 'S.O.S.') - Leno e Lilian (CBS, 1970)
'Planos de Papel' - Alcione (Som Livre, 1974)
'Se Ainda Existe Amor' (com Mauro Motta e Sandra Syomara) - Balthazar (Polyfar, 1975)
'Se Ela Não Serve Pra Você, Também Não Serve Pra Mim' - Ed Wilson (CBS, 1969)
'Se o Rádio Não Toca' -Fábio (Som Livre, 1974)
'Sha-La-La (Quanto Eu Te Adoro)' - Leno (CBS, 1970)
'Tenho Muito o Que Fazer' - Alípio Martins (RCA, 1971) "

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Xangai Lança Disco - O Globo (1990)

Conheci o compositor Xangai por volta de 1973, quando ele, um jovem e desconhecido cantor e compositor baiano costumava se apresentar em um programa dominical na extinta TV Tupi. Seu canto trazia a influência dos cantadores do interior do sertão baiano, e anos mais tarde, Xangai seria um dos representantes da música de raízes das caatingas, assim como Elomar e outros. Dono de um estilo bem próprio de compor e de cantar, Xangai é respeitado pela autenticidade de sua obra, e por cantar e falar de forma simples a linguagem do povo do agreste, mantendo viva a tradição do canto dos violeiros.
Em 1990, Xangai participou do Projeto Seis e Meia, que acontecia no Teatro João Caetano, e aproveitando a ocasião, lançou mais um disco, "Eugênio Avelino", seu nome de batismo. Na ocasião o jornal O Globo fez uma matéria com Xangai, assinada por Mauro Ferreira, falando um pouco da vida do compositor, e seu novo trabalho:
"Ele aprendeu a cantar aboiando com os vaqueiros. Quando criança, abria o peito ainda pouco desenvolvido e cantava em terça com os peões do sertão de Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia. A vozinha, típica de uma criança de 6 anos, parecia com a de Tetê Espíndola, como hoje recorda, brincalhão, esse cantador, em cuja certidão de nascimento consta o nome de Eugênio Avelino, usado por ele para dar título ao seu novo LP. Mas todos o conhecem mesmo por Xangai, apelido adquirido quando foi trabalhar na sorveteria homônima do pai, em Nanuque, cidade do interior mineiro. Cantador e violeiro, Xangai é a atual atração do projeto 'Seis e Meia' do Teatro João Caetano. O trovador fica em cartaz até sexta, dia 28, com o show 'Um cantador na praça'.
A praça, no caso, é a Tiradentes, onde Xangai está mostrando que preserva a tradição dos sons nordestinos ouvidos por ele no auto falante de Vitória da Conquista, onde foi criado, ao lado dos nove irmãos. Já é 'mal' de família. O avô de Xangai, o véio Avelino, é considerado o maior sanfoneiro que o sertão de Vitória da Conquista já teve. Atualmente com 106 anos, o véio é tido como um mestre no pé de bode, apelido da tradicional sanfona de oito baixos. Mas seu filho, Jany, pai de Xangai, também não fica atrás. É ele quem, a bordo de sua sanfona, abre e encerra o LP 'Eugênio Avelino', o sexto e independente trabalho-solo de Xangai (no Rio, o disco pode ser encontrado na loja In-dependente, localizada na Avenida Bartolomeu Mitre, no Leblon).
Aos 42 anos, Xangai diz ter como proposta cantar os sons de sua terra, longe dos modismos fonográficos. Mas sabe que, para isso, não pode depender das multinacionais do disco. Tanto que quase todos os seus LPs foram lançados de forma independente ou por pequenas gravadoras como a Kuarup. O primeiro deles, 'Acontecivento', até saiu pela CBS, em 1976, mas Xangai não teve a mesma sorte de seus conterrâneos nordestinos Fagner, Elba Ramalho e Zé Ramalho, cujos LPs foram lançados com injeções de marketing.
Atualmente em meio à turnê de lançamento de 'Eugênio Avelino', Xangai vive com o pé na estrada. Embora cigano, o trovador tem sua 'pousada'. Aliás, duas. Uma é a casa que mantém em Salvador. A outra é uma pequena roça em Vitória da Conquista. O local de pernoite muda de acordo com a agenda, mas o visual simples é sempre o mesmo. Dele, faz parte o inseparável chapéu de vaqueiro cantador, do qual Xangai não esconde o orgulho.
- O meu chapéu foi desenhado especialmente para mim. É o meu chapéu de espadachim, de Quixote, em defesa da cultura brasileira.
A brincadeira soa com um ranço nacionalista. Xangai deixa transparecer a sua postura radical contra toda música cuja essência não é puramente brasileira. O trovador é capaz de fazer inflamados discursos sobre a pasteurização da atual MPB. Além disso, não hesita em batizar o moderno som sertanejo de música 'breganeja' e em disparar sua metralhadora contra o rock nacional:
- Sou radicalmente contra esses meninos de Ipanema que botam um brinquinho na orelha e dizem que não podem viver sem o rock. Eles são uns 'fuleiros' que não sabem dar quatro acordes. Onde já se viu nego fazer rock no Brasil? Deixa  pro Mick Jagger, pro George Harrison e pro Bob Dylan.
É o desabafo de um cantador que gosta de tomar cerveja na praia, degustar uma carne de sol, e que, marotamente, diz admirar mulher. 'Sou um apreciador da vida', diz. Da vida e de coerência do seu trabalho. Com a mesma convicção com que defende o trabalho de seus amigos cantadores ('Gosto muito dos meus amigos'), Xangai diz não ter ganância por dinheiro.
- Poderia estar muito rico se tivesse bajulado os diretores da CBS, mas eu tenho a missão de cantar a minha origem, os sonhos da minha terra.
Essa coerência foi a responsável pela decisão de Xangai de abandonar o curso de Economia. Ele  diz ter aprendido a cantar por necessidade, mas não parece nem um pouco arrependido da escolha da profissão.
Ainda bem. Assim, o cantador ficou nas praças. "

sábado, 7 de janeiro de 2017

Rolling Stones: Zero em Comportamento - Rock, a História e a Glória (1975)

A revista Rock, a História e a Glória é uma das melhores publicações musicais lançadas no Brasil. Integrada por um ótimo time de críticos e jornalistas, a revista além de trazer textos biográficos de bandas e artistas de rock, trazia matérias não necessariamente sobre rock, e análises históricas musicais e comportamentais. Dentre os colaboradores da revista, o conhecido 'guru da contracultura brasileira', Luiz Carlos Maciel sempre trazia um texto abrangendo determinada cena, destacando algum artista ou banda de rock. 
Em sua edição nº 13 (1975), Maciel na seção "Rock a História" analisa a trajetória dos Rolling Stones, num texto intitulado "Rolling Stones: zero em comportamento":
"Pode-se ver o fenômeno do surgimento do pop inglês, nos anos sessenta como um dos resultados imprevistos da democratização do ensino no país, obtida pelos trabalhistas britânicos, depois da Segunda Guerra. Com a tendência socializante que se impôs, dentro das novas condições sociais e econômicas da Inglaterra, a Nova Legislação Inglesa sobre a Educação colocava o sistema educacional britânico, altamente sofisticado e aristocrático - e, até então, privilégio dos jovens das classes superiores ao alcance de jovens das classes sociais mais baixas. O choque cultural provocado por esse encontro inesperado entre jovens modestos e humildes e a cultura ocidental, no que tinha de mais avançado, passou a agitar o tradicionalmente tranquilo panorama cultural britânico, a partir dos anos cinquenta, pelo menos.
O primeiro momento foi de tomada de consciência social, econômica e política; a primeira reação foi de irritação e revolta. Pobres mas instruídos, os jovens das primeiras gerações proletárias inglesas bem educadas, experimentaram uma nítida e ardente revolta em face das injustiças sociais e de outros aparentes absurdos da vida coletiva britânica, em especial o excessivo conservadorismo - revolta que foi expressa literariamente nas obras dos escritores que ficaram conhecidos pelo rótulo de Angry Young Men, os jovens irados.
Se os primeiros sinais surgiram na literatura, as lições desse encontro brutal entre  o jovem sonhador e a realidade nos seus ângulos mais negativos, foram apreendidas pela música. As denúncias vigorosas dos Angry Young Men haviam destruído as ilusões: o  sistema era injusto e nada podia ser feito em relação a isto. Era preciso, agora, descobrir a alternativa, saber o que fazer. E o que os jovens ingleses descobriram para fazer foi o rock.
E se a irritação inicial parecia conduzir à luta - à luta política, por exemplo - ela esbarrou na indiferença e na complascência. Isso sempre acontece porque, afinal de contas, as forças que contestam e que se pretendem revolucionárias, são na verdade dois polos de uma mesma realidade - ou melhor:  - de uma mesma maneira de ver a realidade, as duas faces da mesma moeda. Cada polo supõe o outro; cada face depende da outra. E a sobrevivência de ambos depende dessa combinação tácita e misteriosa entre eles segundo a qual um se alimenta das agressões do outro. O ciclo vital da política é um círculo vicioso. Política significa: a ilusão do poder, a luta pela ilusão e  o olvido do real em nome dessa ilusão. Não oferece saída, por definição. Fazer política é enganar a si próprio.
Os jovens ingleses perceberam isso, chegaram a esse nível de consciência antes dos de outros países ocidentais - e foi por isso que, durante a explosão juvenil de 1968, quando o arquétipo do jovem rebelde se manifestou com extrema violência em todo o ocidente, principalmente através das tranquilas, sem maiores perturbações, foram inglesas.
Pois os seus jovens rebeldes não estavam organizando diretórios acadêmicos, uniões, federações, etc., nem se ocupavam de política, nada disso: antes, haviam simplesmente abandonado as aulas e estavam nas ruas, cantando rock. Como diz Mick Jagger, em Street Fighting Man, um verdadeiro hino guerreiro do jovem rebelde dos sessenta, o que mais um rapaz pobre podia fazer na sonolenta  cidade de Londres, senão cantar numa banda de rock'n roll?
De todos os conjuntos que criaram o rock contemporâneo nos sessenta, os Rolling Stones são o que melhor, com mais força e autenticidade, expressam esse novo espírito: eles são os garotos mal comportados que fizeram gazeta e ficaram na rua. Em vez de ativismo político, preferiram a molecagem; em vez da seriedade revolucionária, a brincadeira do rock; em vez da cultura, a experiência direta da marginalidade.
Todas as celebradas características dos Stones - seu anarquismo, seu sexismo chauvinista  a até mesmo o seu satanismo (à parte, é claro, de uma obra-prima indiscutível, 'Simpathy for the devil', é  de uma noite de muita má sorte em Atamont) decorre diretamente dessa opção simples a de ir transar e viver na rua; a de abandonar o lar e a escola, pais e professores, regras estabelecidas e cultura oficial, pela rua.
Pois é nas ruas que a luz escura deste mundo se revela. Sem proteções e disfarces de convenções, instituições, etc, fora das grades protetoras da civilização organizada, as ruas mostram os aspectos sombrios da realidade humana. O jovem rebelde, em luta contra o poder paterno - e o rock, no fundo é isso: a insurreição dos adolescentes machos, dos filhos homens, contra o pai dominador - vai encontrar na rua todo esse underground proibido e reprimido: marginais, sexo, drogas, barra pesada, etc. E são exatamente esses alguns dos temas dominantes na obra dos Stones. Pois é na rua o reino de Exu - 'O Povo da Rua' como dizem os macumbeiros - e essa é a verdadeira origem do famoso satanismo dos Stones. Tudo acontece simplesmente porque os meninos mataram a aula e ficaram na rua.
Milhões de adolescentes de todo o ocidente se identificaram ardentemente com os Stones e a visão violenta e juvenil, romântica e sarcástica, que eles têm da vida. Para os muitos jovens, a graça da vida está frequentemente apenas nos extremos: a exaltada fruição orgiástica, por um lado; a rebordosa dolorida e cheia de angústia, por outro.
Em outras palavras: a festa da meia-noite e o duro despertar, ao meio-dia. A arte dos Stones é feita dessa visão. Anjos da meia-noite, eles parecem promover, com seu rock, a festa final de uma cultura. "

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Odair José Lança Ópera-Rock (1977)

Odair José foi, nos anos 70, um dos grandes vendedores de discos do Brasil. Apesar do preconceito por parte de setores mais elitistas, o trabalho popular de Odair era olhado com respeito por uma parcela do público consumidor da boa música que era produzida no Brasil no período. Alguns colegas artistas, como Caetano Veloso, não poupavam elogios ao trabalho de Odair, a ponto do compositor baiano tê-lo convidado a dividir o palco em seu show no evento Phono 73, causando estranheza em parte de seu público.
Para surpresa de  muitos, em 1977, Odair José resolve lançar uma ópera-rock, chamada "O Filho de José e Maria". Odair, numa atitude ousada resolvia sair de sua zona de conforto, num período em que ainda era um bom vendedor de discos, e contrariando sua gravadora, resolve se aventurar numa área não habitual de seu público, após sete discos lançados. A revista Música nº 13, de 1977 trazia uma matéria sobre a nova aventura e Odair:
"Acompanhado por seus músicos, duas vozes femininas, cenário (apenas um estandarte) de Rodrigo Argolo, que também é o responsável pelos figurinos, grandes efeitos de luz, Odair José já apresentou sua ópera-rock, 'O Filho de José e Maria' em várias cidades - Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Campina Grande e Belo Horizonte. Esse é o seu primeiro trabalho com o empresário Guilherme Araújo.
'Sempre tive vontade de fazer um trabalho popular', comenta Guilherme. 'Ligado a artistas da chamada elite eu não sabia se devia fazer um novo trabalho mais ligado ao samba ou à música romântica. Foi quando conheci Odair José, vi o que ele estava compondo e gostei.'
Com seu novo contrato, Guilherme, que participou ativamente do tropicalismo, tendo sido responsável durante alguns anos pelo trabalho do chamado grupo baiano, lança agora, se não um movimento, um novo rótulo na praça - o rock-cordel, nome escolhido para o novo trabalho de Odair José. E o que é esse trabalho? Uma história, contada através de 18 músicas, que mais se aproxima da linguagem utilizada nos dramas levados ainda hoje nos picadeiros de circos em cidadezinhas do interior, do que o pomposo e desgastado nome - ópera-rock - escolhido pelo próprio Odair José para designar esse espetáculo que ele começou a mostrar em teatros e estádios do Norte e Nordeste.
A história tem o nome de 'O Filho de José e Maria', e teve sua estreia nacional no dia 17 de junho, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, e já foi lançada (não totalmente, apenas 12 músicas) no primeiro elepê de Odair José em sua nova gravadora, a RCA, e ainda não tem marcada a sua apresentação nos chamados grandes centros, Rio e São Paulo. E o que ela conta? Segundo seu autor, é a história de um jovem que sai de casa e procura encontrar o amor, o sentido da vida e da própria morte. Autobiografia? Ele diz que não, embora tenha muita coisa para contar sobre sua vida, sua chegada ao Rio, noites passadas em bancos de praças e areia da praia, guitarrista de inferninhos da Lapa, morador da Casa do Estudante (ele foi fazer o que na época era chamado de Artigo 99, o científico em um ano), frequentador do extinto restaurante Calabouço.
Nascido em Morrinhos, cidade a 100 quilômetros de Goiânia, na infância chegou a formar com um amigo uma dupla caipira. Aos 16 anos, foi retirado de dentro de um ônibus que seguia para São Paulo, 'onde eu queria tentar fazer o meu trabalho', pelo seu irmão mais velho. No ano seguinte, 66, conseguiu permissão da família para 'tentar a sorte no Rio de Janeiro, como músico'. Mas só em 1970 conseguiria gravar seu primeiro disco, tendo nesses quatro anos feito de tudo para viver. E como integrante da 'Grande Orquestra de Bob Lane', o guitarrista Odair José viajou pela América do Sul, foi para a Europa - na Espanha o grupo fazia apresentações antes das touradas - e conseguiu, finalmente, realizar seu grande sonho: conhecer Londres, a cidade onde pretende morar, a partir de 1979.
Com sete elepês gravados, 3 milhões de discos vendidos, ele diz que entre suas frustrações inclui o fato de 'não ser um cara dotado de genialidade, pois eu gostaria de fazer as letras que o Chico Buarque faz'. E, aos 28 anos, separado da mulher, a cantora Diana, pai de uma filha, Odair reconhece que 'a solidão é uma coisa que me incomoda muito'.
'Mas eu sou uma pessoa muito sonhadora', acrescenta. 'Criei um mundo para mim, nele tudo é possível, nada é proibido. Nesse mundo, tudo que eu faço é bom, mesmo os meus defeitos. Não gosto de viver em gaiola, de perder a minha liberdade, por isso pretendo continuar só, até quando, não sei. Quando vejo um pássaro preso numa gaiola, tenho vontade de soltá-lo, de deixá-lo voar ao menos durante dois minutos, pois para o voo é que ele foi feito.
Com imagens simples como essa, Odair José vai falando do que gosta, do sucesso, do trabalho de outros artistas,de suas ambições. Apartamentos? Não tem muitos.
'Nunca pretendi ser um Sérgio Dourado', observa. 'Cheguei a comprar um apartamento na Delfim Moreira, Rio, mas logo vendi, as prestações eram muito caras. E para quê continuar morando nele, se eu não poderia realizar minhas vontades, comprar meus instrumentos, aparelhagem de som? Sei que o sucesso é uma coisa perigosa. Mas, ao mesmo tempo, ele é uma coisa incrível, sabe? Ele se torna perigoso se você não tiver uma consciência de sua posição diante da vida. Eu sempre acreditei em mim, então eu o recebi como uma coisa gratuita, mas sim como algo conquistado. Agora, o perigo é ainda maior, se o cara começa a misturar o que ele é realmente com aquilo que as pessoas pensam que ele é, ou o que ele faz. É preciso ter a consciência de que as pessoas gostam do que você faz e não de você pessoa, igual a todas as outras.'
Seus planos incluem, como um velho sonho, a criação de uma gravadora própria, 'onde eu possa fazer meu trabalho e dar chance a bons músicos'. Até o final do ano, Odair José pretende também lançar um novo disco, acompanhado por uma banda que ainda está formando. O disco terá o título de 'Os Fora da Lei', 'porque pretendo fazer um trabalho muito aberto, no campo musical, gravando samba, rock, caribe'. Em 78 ele não quer gravar, talvez apenas soltar o disco com a gravação ao vivo de 'O Filho de José e Maria'.
'Quero também voltar a estudar música. Durante seis anos estudei piano e gostaria de ser um bom músico. O primeiro instrumento que toquei foi um cavaquinho, que ganhei de presente do meu pai, quando eu tinha sete anos. Sei que não sou aceito em várias áreas e por diversas pessoas. Tudo isso porque a elite sempre escolhe e até cria os artistas que ela quer ter para o seu próprio consumo. Por isso foi que houve aquela vaia na Phono 73, quando cantei junto com Caetano. A elite se sentiu ameaçada pela minha presença, ela foi contra o encontro de um cantor como Caetano - o cantor e o compositor que ela sempre quis só pra ela - comigo, um cantor popular, do povão. Mas isso tudo é uma coisa que eu sei e da qual não guardo raiva, porque o que e interessa é colocar para fora, através das minhas músicas, essa coisa que fala dentro de mim.' "

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Titãs Lançam Titanomaquia - 1993 (2ª Parte)

"Estamos em 1982, no 'Lira Paulistana', onde oito rapazes (idade média 21 anos) fazem uma apresentação para 30 pessoas. Agora já é 1984 e esses mesmos oito rapazes, que atendem pelo nome de Titãs, lançam seu primeiro álbum por uma das chamadas grandes gravadoras, a Warner Music. Eles decidiram 'gravar seu mundo no mundo da canção popular', uma mescla de amor/humor, cenas de terror e tensão, rock'n roll, brega, funk, punk, reggae. Uma mostra em Titãs, do que seria os Titãs sempre: descontração, mistura de ritmos, andamentos e letras densas ou despreocupadas, uma banda diferente. André Jung (bateria), Arnaldo Antunes e Branco Mello (voz), Marcelo Fromer (guitarra), Nando Reis e Paulo Miklos (baixo e voz), Sérgio Britto (teclado e voz) e Tony Bellotto (guitarra e voz), surgem no mercado em meio à chamada 'onda rock nacional', junto com Paralamas do Sucesso, Legião Urbana e Camisa de Vênus, entre outras. Um momento onde quase tudo (ou quase nada) se podia.
'Sonífera Ilha', 'uma canção romântica com letra estranha, feita a dez 'mãos', Branco, Marcelo, Barmack, Tony e Ciro (Pessoa), abre com a urgência enfatizada no telex que Britto inventou no teclado. O arranjo cria cenas de terror e tensão, enquanto Paulo Miklos 'caubvanamente' pede que a 'Sonífera Ilha' descanse seus olhos, sossegue sua boca e o encha de luz, descreve o realese da gravadora, alguns meses antes do lançamento do disco Titãs.  'Sonífera Ilha' tinha vocação ao sucesso, e, não é nada menos que o primeiro hit titânico.
'Marvin' também surge neste primeiro Titãs, a versão consagrada anos mais tarde, que Nando e Britto fizeram sobre o reggae 'Patches' de Dunbar e Jonhson. 'Go Back' também está no mesmo disco. 'Eu só quero saber do que pode dar certo, não tenho nada a perder'. Além da inesquecível 'Balada para John e Yoko' e 'Cristo Não É Biscoito'.
O ano entra entra nas ondas de 'Televisão', o visual da banda é surpreendente. A irreverência é marca registrada e Arnaldo Antunes de 'antena ligada' aparece no Chacrinha para divulgar 'Televisão', 'Insensível', e mais um hit: a clássica 'Massacre' também foi criada. O segundo Televisão foi produzido por Lulu Santos e marca a mudança na batera: sai Jung e entra Charles Gavin. 'Eles nasceram em Sampa, sua água batismal é portanto o processo produtivo hiperacelerado de signos culturais, São Paulo, caldeirão cultural fervente, pletora de subcultos, indústria de experiências, superescolha a mão, tudo em cima, famílias fragmentadas, 'psicodelicatessen', os Titãs não possuem pureza idílica anterior nenhuma para defender', afirma Waly Salomão sobre Televisão, onde 'tudo que a antena capta, meu coração captura'.
Vem então Cabeça Dinossauro, um estouro, um estorvo, um delírio, um disco de platina. 'Igreja', 'Polícia', 'Porrada', 'Tô Cansado', 'Família', 'O Que', 'AA UU', 'Homem Primata', 'Estado Violência', 'Bichos Escrotos'. 'Um disco urgente que merece ser devorado e deglutido, por ser algo selvagem como um pré-histórico dinossauro, ou então por ser humano, sensível e nos atingir na veia', definia Kid Vinil. O álbum mostra os Titãs dos palcos, seu lado visual, cru. A faixa título, 'Cabeça Dinossauro', a quem não sabe, tem um instrumental adaptado do 'Cerimonial para afastar maus espíritos', dos índios do Xingu. Cabeça Dinossauro tem muito rock, mas tem reggae e funk também; mas não tem balada.
Os Titãs estavam maduros, conheciam o sucesso e este talvez fosse  o momento mais difícil na evolução da banda: como superar Cabeça Dinossauro? Surge a encruzilhada: rock ou swing? Mas a ira titânica não se ameniza com o pseudo-estrelato e em 1987 sai 'Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas'. 'Eles demoliram os cinco pilares da ordem social, a polícia, o Estado, a família e o capitalismo selvagem. Chegou a hora de começarem a demolir as coisas por dentro', profetizou Paulo Leminski. 'Música feita pelos incompetentes para desacampados', já haviam dito os Titãs um dia. 'Corações e Mentes', 'Comida', 'Desordem' e 'Diversão', 'Malassombrada por citações de Roberto Carlos. em alta, o minimalismo e 'Nome aos Bois', uma lista de personagens, ditadores, tiranos assassinos, 'Pinochet, Mussolini, Plínio Salgado' e 'querem me curar do que eu não sofro'. Estava tudo concretizado e então, em 1987, foram eleitos melhor grupo, segunda melhor música do ano e melhor clip ('Lugar Nenhum'), melhor LP, melhor capa (Jesus Não Tem Dentes...) e segundo melhor letrista (Arnaldo Antunes).
Em julho de 1988, os Titãs participam do 22º Festival de Jazz de Montreux, onde gravam o 'ao vivo' Go Back, que inclui 'Marvin' e 'Go Back'. Alta sofisticação intelectual e tecnologia aliada à brutalidade. Titãs andando com desenvoltura por ambientes de eletrônica miséria. Ô Blesq  Blom, é a vez de Caeyano Veloso definir o sexto álbum titânico com suas 'Miséria', 'Faculdade', 'Trinta e Dois Dentes', e 'Racio Símio'. E 'Flores', o vídeo-clip, é a primeira produção brasileira a ser premiada no MTV Awards.
A carreira dos Titãs inclui a turnê de divulgação de Tudo ao Mesmo Tempo Agora por San Diego, Los Angeles e San Francisco. A banda marcou presença no Rock in Rio II, em 1991, e participou do Hollywood Rock em 1988 e 1992. Quando perguntado por que não participar do Festival em 93, a resposta foi: 'Nós já somos conhecidos, é preciso dar chance a quem está começando'. "

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Titãs Lançam Titanomaquia - 1993 (1ª Parte)

Os Titãs é, na minha opinião, uma das melhores bandas brasileiras de rock de todos os tempos. Já falei isso várias vezes. A partir do terceiro disco de sua carreira - Cabeça Dinosauro (1986), os Titãs deram uma guinada em sua carreira, depois de dois discos um tanto inexpressivos, se comparados aos ótimos lançamentos que se seguiriam. Em 1993, a banda sofreria sua primeira baixa, com  a saída de Arnaldo Antunes, um de seus principais membros. Naquele ano eles lançariam o seu disco mais pesado, Titanomaquia, com produção do renomado Jack Endino. Na ocasião a revista Rock in Book comentaria o lançamento do disco e de um vídeo em VHS com um documentário sobre o trabalho anterior - Tudo ao Mesmo Tempo Agora, em texto de Ayrton Mugnaini Jr.:
"Na onda de Titanomaquia, a Warner Mucic Vision lançou o vídeo Tudo ao Mesmo Tempo Agora, que mostra os bastidores das gravações do disco com o mesmo nome, lançado há dois anos pelos Titãs. Com meia hora de duração, possui boa fotografia em P&B e som estéreo.
Tudo ao Mesmo Tempo Agora, o disco, foi gravado entre  junho e julho de 1991, lançado em setembro, e em outubro os oito Titãs iam à estrada para 117 shows em todo o país. A turnê incluiu também shows por San Diego, Los Angeles e San Francisco. Não se tratava de apenas mais um lançamento de disco de uma grande banda nacional. Tudo ao Mesmo Tempo Agora marcou literalmente, a maior briga entre os Titãs e a crítica de rock.
A maioria das estações de rádio do país recusou-se a tocar a música 'Saia de Mim'. O baterista Charles Gavin e o guitarrista Tony Bellotto afirmaram que então viram se fechar pela primeira vez as portas desde Cabeça Dinossauro, em 1986. Sentiram novamente a insegurança de artista em início de carreira. O motivo da crise; - os palavrões inseridos em três das quinze faixas do LP. 'Os chefões de algumas rádios pediram para parar de tocar 'Saia de Mim'. Em outras, foram os ouvintes que ligaram. Qual a diferença entre ela e 'Bichos Escrotos'?, perguntou Gavin.
Tudo ao Mesmo Tempo Agora mostrou que os Titãs não haviam cedido ao pseudo-estrelato nacional. O álbum ousou, e além dos 'palavrões', mostrava uma tendência mais pesada, o que o diferenciava dos timbres claros dos três LPs anteriores produzidos por Liminha (o mesmo de Cabeça Dinossauro). 'Como é um disco mais radical na forma das letras e do som, acho que a crítica não compreendeu, ficou meio ofuscada e não teve clareza para analisar. Também houve um pouco de moralismo...' lembra Bellotto. Músicas como 'Eu Não Sei Fazer Música' e 'Já', foram deixadas de lado por causa dos palavrões de 'Isto Para Mim É Perfume' e 'Saia de Mim'. Mas os Titãs ressaltam 'o resultado ficou exatamente como queríamos'.
Capa de Tudo ao Mesmo Tempo Agora
Os shows paulistas, com abertura da banda trash feminina Volkana, marcaram o início da turnê de divulgação de Tudo ao Mesmo Tempo Agora. E os Titãs contaram com o auxílio de uma terceira guitarra (Luiz Carlini, do Tutt-Frutti) e covers: 'Hole in the Sky', do Black Sabbath, 'Fire', de Jimi Hendrix e 'Creating Hop', dos Ramones. 'As covers têm a ver com o espírito do show', declaravam os Titãs. O som mais pesado despertou curiosidades e especulações que foram rebatidas pelo tecladista e cantor Sérgio Britto: 'Fazemos o que nos dá prazer. Por coincidência, o som  acaba ficando com uma cara heavy'.
'Esses obstáculos têm sido estimulantes. Nunca quisemos manter nosso 'status'. E o Brasil é muito pequeno. Você vira um starzinho, um personagem meio ridículo', finaliza Bellotto.
Titanomaquia é a elevação dos Titãs, é urgente como a urgência de uma banda com dez anos de estrada. Remonta os tempos de Cabeça Dinossauro e soltam os 'Bichos Escrotos' como única salvação. Titanomaquia é rock, um desespero a quem esperava outras 'Comida' ou 'Marvin'.
'Quem aqui não tem medo de se achar ridículo?' Quem aqui, como eu, tem a idade de Cristo quando morreu?', grita o refrão de 'Será que É Isso que Eu Necessito?', faixa de trabalho do novo LP. Titanomaquia é o retrato de Tudo ao Mesmo Agora, porém mais agressivo, sem baladas. A atitude de uma banda que viu as portas se fecharem devido a uma falsa crise de moralismo no rock, por parte de 'críticos', ouvintes e 'mannagers'.
O vídeoclip de 'Será que É Isso que Eu Necessito', espanta qualquer pessimismo: foi eleito o melhor clip nacional na disputa do MTV Awards.
Arnaldo Antunes, ainda nos Titãs
Em Titanomaquia os Titãs são sete, embora fossem seis na lenda grega, ou seja, os seis filhos de Urano (personificação de Céu) e Géia (personificação da Terra): Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto e Rono, os quais pertenciam à primeira geração divina.
Titanomaquia pode ser apocalíptico, caótico, mas é exatamente o que queriam fazer Paulo Miklos (voz, sintetizador e sampler), Sérgio Britto (voz, mini-moog e órgão), Branco Mello (voz), Nando Reis (baixo e voz), Charles Gavin (bateria e percussão) e os guitarristas Toni Bellotto e Marcelo Fromer. 'Nem Sempre se Pode Ser Deus' começa a apresentar o dedo de Jack Endino (produção), embora mantendo a personalidade da banda. 'Disneylândia' nos remete à poesia 'Opuloso', à crítica social escancarada, às mesmas que se engole diariamente e 'crianças iraquianas fugidas da guerra não obtêm visto no consulado americano do Egito para entrarem na Disneylândia'. 'Disneylândia', 'Hereditário' e 'De Olhos Fechados' contaram com a participação de Arnaldo Antunes na composição. Branco Mello eleva em 'Estados Alterados da Mente' as melhores características do rock nacional. 'Agonizando' é meio suja, bem hardcore, possui mudanças de andamentos; Sérgio Britto impõe a voz ora como uma ordem, ora como desabafo e as guitarras finais ficaram para uma participação especial de Endino (também na guitarra rítmica e feed-back em 'Disneylândia').
Muda-se o lado e aumenta-se a tensão. 'Fazer o Quê?' tem como introdução o fragmento de Eurípedes, adaptado à moda titânica e com tendência de hit. 'Mesmo que ninguém escute. Mesmo que ninguém ouça. Mesmo que ninguém acredite, no que sai da minha boca....', 'A verdadeira Marry Poppins' é deliciosa. 'Dissertação do Papa Sobre o Crime Seguido de Orgia' (extraído do livro homônimo de Marquês e Sade) vem reafirmando o que os Titãs fazem desde Titãs. 'Taxidermia' não é o final do mundo, mas o final do disco, e você fica pedindo mais, mais..."

(continua)

domingo, 1 de janeiro de 2017

Walter Franco - Crítica do Disco "Ou Não" - Revista Pop (1973)

No fim de 1972, Walter Franco lançaria um dos discos mais experimentalistas da música brasileira, "Ou Não", mais conhecido como "o disco da mosca", por trazer uma foto do inseto na capa. Trata-se de um disco de difícil entendimento, repleto de ousadias e experimentações até hoje consideradas vanguardistas. Até Caetano Veloso, ao lançar o também experimental "Araçá Azul", buscou inspiração no álbum de Walter, fato reconhecido por ele em entrevistas. A faixa "Cabeça" já criara um imenso alvoroço ao ser apresentada no VII FIC (Festival Internacional da Canção), da TV Globo, em 1972, uma anti-música, quase sem melodia e uma letra de poesia com influência concretista, e um canto sussurrado e incompreensível para os menos atentos. Essa composição alavancou o nome de Walter Franco entre críticas ferozes e elogios pela audácia e criatividade. Ao ser lançado seu primeiro disco, a crítica especializada deve ter ficado confusa em analisar um disco tão fora dos padrões, pois seguia a veia experimental desenvolvida em sua polêmica composição "Cabeça".
Em sua edição nº 4, de fevereiro de 1973, a revista  Pop fala do disco de Walter, lançado pela gravadora Continental, na seção "Discos", em matéria por Tárik de Souza:
" Depois de receber vaias longas no VII FIC, como resposta a sua música de muitas perguntas, 'Cabeça' ('Que é que tem nessa cabeça, irmão?'), Walter Franco mostra o resto de seu corpo de trabalho. São dez faixas, ou não. A saber: há faixas e curtas interfaixas que funcionam como uma espécie de quebra da atmosfera do disco, partida em mil pedaços. Valendo-se de um texto de poucas palavras, sempre indócil ('nem tudo que se come/ se digere/ quem com ferro fere/ se consome'), e uma sólida teia instrumental, ele obtém resultados de contínuo suspense. Terminada a exaustiva 'Me Deixe Mudo' (cantada sob o ritmo da própria respiração do cantor), explode 'Xaxados e Perdidos', como o nome indica, algo diferente do que se espera de um xaxado comum. 'Doido de Fazer Dó' tem igual relação de independência com o que se entende por frevo, e, além disso é tão curto que impede o ouvinte de aderir a seu ritmo veloz. 'Mixturação', de certa forma, é uma espécie de chave do disco: sua montagem de evolução lenta dá a ideia da sugestão de imagens filmadas que comandou toda a gravação. Walter mudou sua discutida 'Cabeça', que reaparece no LP. Na nova versão ela perdeu o sintetizador eletrônico que fazia o fundo, para ganhar partes de outras músicas do próprio LP, mais informações acumuladas pelo compositor após a apresentação da concorrente (vitoriosa, na opinião do júri, destituído) no festival. Com o texto narrado, entoado ou engrolado em dezesseis canais, 'Cabeça' termina (e encera  o disco) num diálogo outra vez surpreendente, agora pela provocadora naturalidade: 'Que horas são? Onze e vinte e seis'. "