Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 29 de março de 2017

Sérgio Ricardo - Quem Quebrou Meu Violão (1991)

O compositor e cantor Sérgio Ricardo é autor de uma bela e rica obra musical, mas sempre é lembrado por ter quebrado seu violão e o atirado contra o público que o vaiava no Festival da Record em 1967. Esse episódio sempre ficará marcado na carreira desse grande compositor. Em 1991 Sérgio lançou um livro contando um pouco de sua vida e carreira, fazendo revelações e desabafos. O título é Quem Quebrou Meu Violão, logicamente uma referência ao episódio que infelizmente mais marcou sua carreira.
O jornal O Globo fez uma resenha do livro, assinada por Paulo César Coutinho, autor e diretor de teatro, e traz ainda uma pequena entrevista com Sérgio Ricardo, feita por Cláudio Henrique:
"Sérgio Ricardo foi uma figura pública marcante no cenário artístico do país. Exerceu múltiplas atividades: músico, cineasta, ator e militante político. Sua presença marcou a lembrança de toda uma geração. Esse autor e sua extensa obra foram porta-vozes dos ideais reformistas de um setor da classe média. E é assim que ele emerge nesse seu livro autobiográfico. Sérgio Ricardo logrou a questionável proeza de manter-se imutável. O autor conserva ainda o mesmo discurso que o tornou famoso. Seu relato ganha, assim, o interesse histórico de uma visita ao museu de ideias. Entra-se na máquina do tempo, com um guia vestido a caráter com a ideologia da época.
'Chega de Saudade', o recente best-seller memorialista de Ruy Castro, irritou Sérgio Ricardo. Ele chama seu antigo companheiro de 'um tal de Ruy Castro, vulgo cacique Boca de Hiena, cheio de saudade de uma farsa'. E dispara: 'Três décadas depois do surgimento da bossa nova vem um arqueólogo de araque remexer as cinzas de um vulcão extinto'. Mas, pelo fato de Sérgio Ricardo ter decidido fazer sua própria arqueologia, talvez o vulcão não esteja tão extinto assim. A sua visão de alguns temas pode causar perplexidade ao leitor contemporâneo. Ele estranha, por exemplo, a presença de Roberto Carlos no Festival Internacional da Canção: 'Eu não podia entender sua participação num festival que se propunha, a rigor, a revelar trabalhos de vanguarda. Não me constava que Roberto Carlos estivesse engajado nisso.' É curioso. Sérgio Ricardo julgava-se de vanguarda? O autor continua falando de Roberto Carlos e não resiste a uma patrulhada: 'Lançou seu iate na Guanabara, se intitulou majestade de um reino falso, num castelo de cartas marcadas'.
Os tropicalistas não merecem melhor juízo. Assim o autor se refere ao movimento; 'Meteram-se em indumentárias extravagantes, cultuaram os Stones, os Beatles, sua instrumentação, mensagens, jeito de cantar e de se expressar, importaram a contracultura, escancaravam as mãos para a entrada da cultura externa, que se instituía contra seu próprio povo'. Se isso era verdade, por que esse mesmo poder instituído perseguiu, prendeu e exilou os ídolos que lhe eram convenientes? É impressionante a injustiça que Sérgio Ricardo comete com Gil e Caetano e, depois de todos esses anos, a total ausência de perspectiva histórica da dimensão revolucionária do tropicalismo para a arte no Brasil.
Sérgio Ricardo viajou aos Estados Unidos, num momento de grande efervescência naquele país. É frustrante seu contato com a cultura americana: 'Sua filosofia semeava a futura aparição dos hippies e o surgimento dos Beatles. Era o inconformismo com os padrões estabelecidos da moral e dos costumes, revelando apenas sua rebeldia, sem qualquer proposta de transformação política'. Será que Woodstock, a liberação sexual e os protestos pacifistas que contribuíram para o fim da guerra do Vietnam não foram transformações políticas? O autor julgou ter captado a filosofia que germinava na América, em aspectos epidérmicos, na cópia superficial que tanto condenava: 'Resolvi deixar a barba crescer como aqueles beatniks, para sentir o barato deles. Andava com minha roupa mais surrada'. E o antiimperialismo de Sérgio Ricardo era tanto que ele recusou a aprender  inglês.
Em Nova York, Sérgio quis filmar as desgraças de um retirante. Seria a versão CPC de 'A rainha e o plebeu'? No Brasil, filmou 'O menino da calça branca'. Recebeu críticas do cineasta Ruy Guerra: 'Não havia cabimento, segundo ele, fazer-se um filme sobre a favela, usando um branco, teria sido mais próprio usar um menino preto para contrastar com a calça branca'. Mas Sérgio 'aproximou-se' dos favelados: 'Acabei comprando um barraco no morro do Vidigal... Alternava minhas idas e vindas a ele, procurando me enturmar... 'lá em cima, liderou a resistência dos favelados à remoção, virando nome de rua na favela - 'Tirei-os da apatia', orgulha-se.
Após o célebre episódio em que quebrou o violão no palco, comenta que saiu 'escoltado pela polícia para não ser linchado por um bando do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que vinha tomar as dores da plateia'. Que estranha situação! O CCC, que sempre espancou as plateias, resolveu defendê-las? A polícia, que sempre acobertou o CCC, resolveu enfrentá-lo? O idílio com João Gilberto incluía 'caminhadas pelo calçadão de Copacabana, até o raiar do dia e até o despertar da minha consciência'. O autor atribui a João Gilberto tê-lo convertido ao seu marxismo conservador. Conta que o lavava para casa. Após o café da manhã, iam dormir. Sérgio revela: 'Entre minha cama e a dele, ficavam o piano, o violão, as estantes e o violino'.
É importante constatar que a rigidez sectária de Sérgio Ricardo tem raízes no no primarismo político. Em 64, diz, 'finalmente estava em marcha o surgimento de um novo Brasil... Logo depois era dado o golpe militar'. É a ingenuidade conciliatória da visão nacional-popular que, historicamente, mostrou-se suicida. É o panfletarismo doutrinário do CPC da UNE. Culturalmente tão atrasado e autoritário como a direita. Em suma, o livro lembra a música do ídolo João Gilberto 'já temos um passado, um violão guardado'. Ou será um violão quebrado?

Nesta entrevista , o cantor Sérgio Ricardo defende seu livro e critica a bossa nova.
O Globo - Quem quebrou o seu violão?
Sérgio - Quebrar o violão no festival da Record foi um ato histórico porque representou uma reação coletiva das pessoas. Naquele momento de nossa História, três anos após o golpe militar, o povo brasileiro estava mesmo querendo quebrar os seus violões. Quando vaiava a minha música, o público se manifestava, não contra os jurados mas contra a ditadura, representada na eleição de quem ganharia o festival. Os músicos eram apenas marionetes, um joguete dos meios de comunicação. E estamos cada vez mais no fundo do poço.
O Globo - Que caminhos a cultura brasileira deveria ter tomado?
Sérgio - Os caminhos normais, ou seja, a arte seria usada como instrumento de conscientização das pessoas. A música brasileira não só deixou de evoluir como involuiu. Tanto assim que os brasileiros hoje têm preconceitos com nossa música popular, como o maracatu, o baião. Só existem festivais de rock, quando nossa música é muito mais interessante. Não é à toa que os nossos melhores músicos fixaram residência fora do país e que os estrangeiros vêm aqui para beber nessa fonte. Somos 'chupados' na cultura da mesma forma como em nossas pedras preciosas.
O Globo - O livro 'Chega de Saudade', de Ruy Castro, é discriminatório quanto à MPB?
Sérgio - Este livro apenas ajuda na deterioração da nossa cultura. Ele informa errado e ignora artistas como Cartola e Nelson Cavaquinho ao informar que a bossa nova foi o  primeiro grande movimento da MPB. Ora, a bossa nova nem sequer existiu. Não foi um movimento, mas um fã-clube. Um grupo que se reunia num apartamento para imitar João Gilberto. Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto, por exemplo, têm um trabalho que vai muito além da bossa nova. Ruy Castro fez um livro romanceado a partir de fontes como Ronaldo Bôscoli, que é o galã da história.
O Globo - E qual seria a saída para a música brasileira agora? Novos festivais?
Sérgio - Os festivais de música revelam novos valores, mas interessam basicamente às televisões. Toda a música, aliás, está atrelada a interesses internacionais. Pelo menos 99% do que há de melhor em música brasileira está nas gavetas dos compositores. Quem já ouviu falar em Guinga, Filó? Sai até uma coisinha aqui, outra ali, mas eu quero vê-los aparecendo no 'Fantástico.'. "




terça-feira, 28 de março de 2017

Diana Pequeno - Revista Música (1981)

 Diana Pequeno foi uma das muitas cantoras surgidas  no Brasil no fim dos anos 70. Com um trabalho regionalista, baseado principalmente numa vertente que foi batizada de "new caatinga", por falar de coisas do agreste e do sertão, Diana foi conquistando seu público. A partir de seu terceiro disco, seu trabalho foi se urbanizando, e abandonando aos poucos a temática agreste. E é justamente essa mudança que significou para muitos  uma indefinição do trabalho da cantora.
Nessa matéria publicada em 1981 na revista Música, a diversificação que o trabalho de Diana vinha experimentando é analisada por Angelo Iacocca:
"A tendência de Diana estar sempre procurando um novo caminho, vem gerando algumas dúvidas quanto à consolidação de sua carreira. As mudanças, com muita frequência, nem sempre são sinônimo de criatividade. Evidentemente seu sucesso comercial não está sendo abalado - pelo menos por enquanto - devido ao bom momento que ela atravessa:  das cantoras que surgiram nos últimos cinco anos, Diana é uma das poucas a manter boa posição no mercado, tanto em vendas quanto em afluência de público aos seus shows.
Seu último disco, Sinal de Amor, representou o grande impulso em direção a uma nova fase, desta vez desgarrada de todas as influências anteriores, principalmente da corrente musical que vinha da caatinga, e que marcou profundamente o início de sua carreira. Mas devemos levar em conta sua vivência inteiramente urbana, é que o contato com a música de Elomar ocorreu em Salvador e não na caatinga.
Mas, se esta nova opção de Diana foi benéfica como libertação, inclusive de compromissos ideológicos, musicalmente decepcionou aqueles seu seguidores que queriam ver conservada a simplicidade que marcou os dois discos anteriores, não muito pela temática, agora um tanto urbanizada, mas principalmente pela instrumentação, eletrificada em excesso.
E ao transpor este trabalho para o palco em seu show, também chamado 'Sinal de Amor', Diana escolheu uma autêntica banda de rock 'Cheiro de Vida', mais preocupada em mostrar seus malabarismos eletrônicos, do que tentar acompanhar a voz forte, sufocada pelo som estridente das guitarras, porém muito valorizada quando o acompanhamento fica a cargo do rabequeiro e violonista Zé Gomes, ou quando ela se acompanha ao violão. É verdade que o público aderiu ao som da banda, pois qualquer som 'pauleira' é um convite à dança... Mas qual o papel de Diana  Pequeno nisso tudo? Não acredito que ela pretenda ser uma nova revelação do gênero, principalmente se a intenção for a de adaptar músicas folclóricas, como 'Regina', para o rock. A não ser que mude radicalmente.
Para seu próximo disco, Diana Pequeno pretende realizar um seu grande projeto: gravar textos de poemas brasileiros musicados por ela. Depois da tentativa mal sucedida com poemas de Cecília Meireles (os poemas já estavam gravados, mas os herdeiros exigiram uma quantia exorbitante, que a gravadora não quis pagar), agora parece que tudo vai dar certo, já que com o poeta escolhido, Mário Quintana, não existirão tais problemas. Eles tornaram-se amigos em Canela, no Rio Grande do Sul, onde a ideia da gravação nasceu.
Portanto, para o próximo disco de Diana, o poeta Mário Quintana terá presença garantida (o desejo da cantora era fazer um LP inteiro com seus poemas, mas ela mesma reconhece que é difícil). Alguns poemas já estão musicados, entre eles 'De Repente' e 'Noturno'. Com esse disco Diana acredita poder divulgar a obra do poeta que já está com 76 anos.
Quintana passou a ser valorizado somente a partir de 1970; mesmo assim ainda não é conhecido em todo o Brasil.
Quanto ao seu próximo disco, Diana diz que pretende ser mais individual, desenvolvendo um trabalho com pessoas que sintam a música como ela, e desenvolver novas ideias, inclusive gravar composições suas, o que não tem feito até agora justamente por não ter explorado sua individualidade. "

segunda-feira, 27 de março de 2017

Jards Macalé Lança Seu Primeiro Disco (1972)

Em 1972 Jards Macalé lançava seu primeiro disco, que levava seu nome. Apesar de já atuar na música há um bom tempo, participado de festivais, como o FIC de 69, apresentando Gothan City, ter composições suas gravadas por outros intérpretes e lançado compactos, Macalé só lançaria seu primeiro LP naquele ano. O disco, que virou um clássico, foi muito bem recebido pela crítica menos tradicionalista e careta, como mostra essa resenha escrita por Maurício Kubrusly, no jornal O Estado de São Paulo:
"Este é o primeiro LP de Macalé, um músico excelente que precisou esperar mais de dez anos por esta oportunidade. Para os poucos que acompanharam sua atividade por todo esse tempo, o nível deste disco não representa uma surpresa, ao contrário, só confirma a seriedade do trabalho desenvolvido desde o início até a maturidade de agora.
Já se disse, em relação ao século XIX, que a música de câmara representa o ponto máximo da criação - uma peça para um quarteto de cordas, por exemplo, exigiria do compositor domínio técnico, inventividade e equilíbrio em grau muito superior ao necessário para a elaboração de uma partitura para orquestra, onde os recursos são muito maiores. O disco de Macalé sugere um paralelo com esta observação, pois representa o que poderia ser classificado como 'música popular de câmara'. (para que fique claro o sentido desta comparação é preciso abandonar preconceitos que geram separações como 'erudito-popular'). 
Esta 'música popular de câmara', que nada tem de hermética ou inacessível, surge a partir do momento em que Macalé deixa de lado toda a magia dos recursos eletrônicos, tão ao gosto da música pop de hoje. O LP foi realizado apenas por três músicos: o próprio Macalé (violão e vocal), Lanny Gordin (violão e guitarra) e Tuti Moreno (bateria). Esse limitação, a priori funciona como um desafio para cada um dos três músicos. E eles respondem com atuações de uma riqueza pouco comum, em todos os momentos do disco. O desempenho desse trio, também responsável pelos arranjos, resulta num LP com tratamento adequado a cada faixa e unidade no conjunto, contenção rigorosa no uso de cada recurso e equilíbrio absoluto até em cada emprego - surpreendente - das pausas.
O trabalho de Macalé como compositor já tinha sido divulgado no trabalho de outros intérpretes, mais recentemente por Gal Costa e Maria Bethania. Aqui estão músicas mais novas, como Revendo Amigos, ao lado de outras já gravadas, como Movimento dos  Barcos - todas com a força e originalidade que caracterizam as composições de Macalé e seus parceiros. E estes, apesar da exploração nos efeitos conseguidos com o jogo de palavras com sons semelhantes, também são excelentes. As letras quase todas marcadas por verbos no presente, contém versos muito bonitos, rompendo completamente com as limitações da métrica e da rima.
Como todo intérprete, Macalé nada fica devendo ao compositor. (Todo o disco é marcado pela 'postura' de Jards Macalé, seca e agressiva, identificada já na foto da capa, a mesma pose das apresentações em público). Explora sua voz rouca de maneira minuciosa, adaptando-a ao clima criado para cada interpretação, explorando cada verso, o som de cada sílaba.
É um disco que impõe uma audição atenta, cuidadosa, para a apreensão por toda a beleza que existe atrás da real secura e da aparente simplicidade deste trabalho. Por tudo isto, Jards Macalé é um LP magnífico, para ser colocado no mesmo nível dos melhores já lançados em 1972, um ano fértil para a música popular no Brasil - também porque, de Nelson Cavaquinho a Macalé, muitos estão conseguindo agora 'uma primeira oportunidade'. "

domingo, 26 de março de 2017

Raul Seixas - Navegante dos Infernos e das Luzes (1975)

Em 1975 Raul Seixas estava na melhor fase de sua careira, já tinha lançado dois discos de grande repercussão e sucesso - Krig Ha, Bandolo (1973) e Gita (1974), e se preparava para lançar Novo Aeon, outro grande disco de sua carreira. Sua parceria com Paulo Coelho seguia firme, com ótimas composições, que além de trazer um teor filosófico, e às vezes social e anarquista, continha uma veia popular, que atingia as massas, e fazia seus discos alcançarem altas vendagens.
Na época, o crítico e jornalista Nelson Motta, em sua coluna diária no jornal O Globo falava de Raul e sua trajetória, em uma matéria intitulada "O Navegador dos Infernos e das Luzes":
"Nunca duvidei do talento desse astonishing Raul Seixas, embora algumas vezes não tenha entendido o que ele queria dizer; talvez porque ele não tenha sabido explicar ou eu não tenha sabido entender.  Mas nos píncaros dos delírios da Sociedade Alternativa foram poucos os que sacaram exatamente o que Raul pretendia mostrar e demonstrar. Mas sempre foram muitos, milhares, os que se encantaram com suas músicas. Nos subúrbios, nos programas de auditório, nos pedidos dos ouvintes, nas vitrolas 'inteligentes', nas cabeças doidas, nos selos da cocotagem-rock e nos pilares da MPB.
Crítico feroz, artista popular, anárquico, polêmico, dividido e dividindo, Raul Seixas emergiu de Raulzito, que no entanto são a mesma pessoa, 'que para aprender o jogo dos ratos/ transou com Deus e com o Lobisomem'.
Uma explosão com 'Let Me Sing'. Uma maneira diferente de dizer as coisas. Um humor crítico, uma interpretação teatral. Raul Seixas: 'eu sou eu/ Nicuri é o diabo'.
Mas logo muitos se preocuparam: 'Raul Seixas é indiscutivelmente um sucesso. Mas será Raul Seixas importante na música brasileira?'
Só Raul Seixas não deve ter pensado se era ou não importante na música brasileira, senão não teria tido tempo para fazer o festival demolidor que foi o seu primeiro LP. Literalmente uma pedrada em milhares de frágeis vidraças. 'Al Capone', 'Ouro de Tolo' (obra-prima popular), 'Dentadura Postiça'; uma torrente-quente-irreverente, um grito de guerra na linguagem do homem marcado - Krig Ha Bandolo!
Seu primeiro álbum era demolidor, pulverizava sonhos, desnudava.; com humor, ritmo, leveza e irreverência.
Já com o segundo - 'Gita' - surgido em plena efervescência alternativa, as músicas se colocavam de forma diversa diante dos escombros provocados pelas bombas incendiárias do primeiro trabalho - muito mais num sentido de indicar caminhos e opções de vida através de uma visão do homem feita quase em forma de pregação.
A diferença entre o primeiro disco e o segundo é a que existe entre um panfleto forte e incendiário e uma pregação cheia de promessas de grandeza. Um palavrão rabiscado na porta de um banheiro/ o homem rei do universo.
Talvez ainda existam mais coisas a serem destruídas que caminhos a construir, sobretudo em áreas definitivamente bloqueadas da sensibilidade popular, dos sonhos e mitos que castigam e enlouquecem.
É ótimo ouvir alguém dizer que 'eu que não vou me sentar no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar...' É ótimo ouvir alguém denunciar que um certo tipo de sonho só leva à frustração e amesquinhamento das aventuras do viver. É ótimo saber que houve muita gente que entendeu o que ele quis dizer e seguiu os conselhos dados a Al Capone: 'vê se te orienta!'
É encantador testemunhar um artista que conviveu e convive com o sucesso, ter total desprezo pelo êxito e encarar uma longa e certamente dolorida viagem aos infernos por sua livre vontade de conhecer seus lados escuros e viver de perto os mesmos sonhos de Raul Seixas - um moleque cósmico.
 Seu terceiro Lp está para sair. Ouvi alguma coisa dele ao violão e alguma coisa da fita não definitiva. A impressão mais forte é estar diante de um trabalho extraordinário, destinado a provocar fartas (e certamente equivocadas) polêmicas; um trabalho vivo e intenso. Literalmente vivido.
Raul enfrentou por sua conta e risco e por sua coragem ou loucura o mergulhar nos seus próprios abismos, vivendo o seu real e a sua fantasia com fidelidade e energia total, navegando certamente em mundos estranhos, provando o vinho e o vinagre da vida, conhecendo as sombras e as luzes que imaginava ou duvidava.
Seu novo disco parece ser isto: o diário de bordo de uma viagem longa e dolorosa com o próprio corpo, com a cabeça fazendo a navegação sem radar, em pleno nevoeiro, nos mares de fogo, nas chuvas de prata.
Agora Raul Seixas não apedreja, não doutrina. Ele agora conta, depõe na primeira pessoa, revela e revela-se, vai contar ao pé das lareiras eletrônicas as suas saisons en enter e suas ressurreições. Para ouvintes atônitos com a visão que ele tem de um dos auto-martírios prediletos da humanidade: o egoísmo.
O disco de Raul Seixas pode colaborar decisivamente para ajudar muita gente e desamarrar bodes turrões que teimam em atrapalhar a vida e a alegria das pessoas. Como as supra-citadas (e cheias de culpa) nações de 'egoísmo' que a civilização judaico-cristã legou. O disco talvez pudesse se chamar 'Teoremas - demonstrados e vividos pelo autor'.
Raul discute o tormento do ciúme de forma totalmente diversa da que os séculos ensinam, para espanto dos que buscam o sofrimento nas alegrias do amor. Para estupor dos que temem, para desespero dos que têm medo, para inveja dos que fazem o medo de perder maior que a alegria de amar. Otelos do Brasil, uni-vos, porque Raul Seixas vem aí com 'A Maçã', onde talvez pela primeira vez em sua geração, um compositor discute e depõe de forma tão aberta em relação ao ciúme, um dos pulmões das sensibilidades e dos valores nativos.
'Quando Freud explica, o Diabo dá o toque', adverte Raul no 'Rock do Diabo' e talvez aí esteja um dos seus momentos mais claros: em vez de colocar a psicanálise como panaceia universal ele prefere achar que Dr Freud tem sua grande importância mas as grandes soluções surgem quando os demônios são conhecidos, enfrentados ou adotados. Entre a explicação da angústia e suas fontes existem os abismos do medo de enfrentar a cachoeira que leva aos lados escuros - pela simples certeza que é de lá que pode surgir a luz, uma verdadeira e clara luz, uma verdadeira e clara luz do auto-conhecimento através da vivência real dos seus fantasmas. Isto foi o que Raul Seixas fez.
Dezenas de vezes ouvi dizer: 'Raul Seixas está louquíssimo. Intransável.' Muitos me disseram - 'Raul Seixas pirou de vez.' 'Raul Seixas acabou'.
But he is well, alive e leavinh the Hell, como um Rimbaud baiano iê iê balada romântica roquenrrow. Como um dos mais instigantes e inquietos criadores de sua geração. Zelosos guardiães da cultura brasileira, corcoveai; Raulzito vem aí, mais vivo do que nunca, pronto para - mais uma vez - fazer delirar a patuleia e as inteligentzias patrícias.
Que - ao som de Raul Seixas - vão se desfazer de seus líquidos venenosos num mesmo e comum turbilhão de espuma, tal como no poema de Vinícius..."


sábado, 25 de março de 2017

Files of Killimanjaro, de Miles Davis É Lançado no Brasil (1972)

Files of Killimanjaro é uma das muitas obras-primas criadas por Miles Davis. Lançado em 1968, o disco só sairia no Brasil em 1972. Antes tarde do que nunca, para quem apreciava a obra do grande trompetista americano que revolucionou o jazz, e não tinha acesso à discografia de Miles. Na ocasião o jornal Rolling Stone nº 8 (maio de 1972) trazia uma matéria sobre o disco, em artigo assinado por Luiz Fernando, e numa frase em destaque dizia: "Files of Killimanjaro, LP de transição de Miles Davis, foi agora lançado entre nós. Quando virão In A Silent Way, Bitches Brew ou Live/Evil?". Segue abaixo a matéria:
"A viagem que Miles Davis vem fazendo é uma das mais fascinantes de ser acompanhada. Sua criatividade abre as portas da percepção para uma nova visão da  música.  Miles já curtiu quase todas: considera o rock uma merda, mas afirma que seria capaz de reunir o melhor grupo e sair tocando por aí. 'Jazz também é uma merda; uma típica expressão de brancos; eu sempre estive metido na coisa e nunca tive ouvido essa palavra... até que li numa revista'.
A transa da sua nova música começa em 70 com Bitches Brew que foi entendida pelo jovem curtidor de rock e olhada com desconfiança pelo seu antigo público. É grande a disparidade entre Porgy e Bess (grande sucesso que exemplifica outro polo de sua carreira) e Bitches Brew, e não é apenas o som que mudou. A complexa parafernália eletrônica oferece a mesma visualização de um moderno conjunto de rock. Seus antigos admiradores costumam lhe perguntar porque ele não toca da mesma maneira que antes, ao que Miles revida - quem pode me dizer como eu costumava tocar?
Davis não faz parte do estereótipo do típico músico negro de jazz: não nasceu pobre, nem foi criado em gueto. Cresceu em East St. Louis (Illinois), onde sua família era bem estabelecida entre a classe média local. Apesar de sua condição econômica passou por todas as  humilhações que sofrem os negros americanos. Sua franqueza quando fala sobre o assunto já lhe causou o piche de racista. 'Pra que um grupo tenha swing você tem que colocar um negro tocando. Buddy Rich é uma exceção, mas quantos existem iguais a ele?'
Aos 18 anos convenceu o pai a mandá-lo para Nova York (Julliard School) ao invés da escolha de sua mãe, que queria vê-lo estudando na Fisk University.
Passou a primeira semana na cidade caçando 'Byrd' (Charlie Parker). 'Durante mais de um ano eu o seguia por todos os cantos. Ia com ele toda noite para a Rua 52, onde se apresentava'. Charlie costumava lhe dizer 'não tenha medo, vá em frente e toque'. Passava noites escrevendo os acordes em caixas de fósforos e tocava o dia inteiro ao invés de ir pra escola. Um ano depois largou a Julliard School. 'Toda aquela porcaria que estavam me ensinando não servia para nada'. Entrou para o grupo de Charlie Byrd.
Em 49 Miles foi um pioneiro em tonalidades e harmonias do chamado cool jazz. A série de 78 reunida pela Capitol, Birth of Cool é um exemplo disto.  Nenhum de seus discos - quase trinta - pode ser considerado fora de moda.
Depois o jazz se perdeu no marasmo do clássico, moderno etc. Miles pinta no Festival de Newport tocando Walkin, um blues que iria influenciar em pouco tempo toda uma geração de músicos em todas as  partes do mundo. Era o fim da escola cool.
Durante quatro anos Miles esteve engajado na heroína. 'Estava cansado e doente.A gente pode ficar cansado de qualquer coisa, inclusive de ter medo. Fiquei olhando o teto por doze dias, delirando. Depois resolvi cair fora'. Tocou numa série de pequenos grupos, quintetos, sextetos, apresentando-se em pequenos clubes sem direito de escolher seus acompanhantes.
Depois desse período Miles começa a ensaiar com um grupo de jovens músicos (Gerry Mulligan) no porão da casa de Gil Evans em Nova York. 'Gil gostava da maneira como eu tocava, e eu de como ele escrevia'. Fizeram alguns álbuns para a Columbia.
Musicalmente Miles tinha voltado em parte ao pop de Parker, mas com grande flexibilidade, sofisticação e lirismo. Um disco fim-de-papo é Kind of Blue (com Coltrane) principalmente no desbunde dos Flamenco Sketches. Em Files of Killimanjaro e em In a Silent Way, Miles começa a indicar as novas direções da música. O boxe lhe devolveu a força, tornou-o ágil e bonito. - 'Para tocar bem, um músico tem que estar em boa forma física. Vocês nunca notaram que minha maneira de tocar vem das pernas?'
Depois de Bitches Brew Miles gravou um disco ao vivo no Filmore, a trilha do filme Jack Jackson e Live/Evil (as palavras se completam se você escrever qualquer uma de trás pra frente) que saiu no fim do ano passado. Este último, que tem uma parte ao vivo, pode repetir o sucesso de Bitches Brew.
Embora o rótulo de acomodado não possa ser aplicado a Miles Davis,  a verdade é que ele está mais seguro no caminho que escolheu.  As roupas - já foi eleito um dos mais bem vestidos do ano - os carros, e a vida louca que levava, segundo ele, faziam parte de uma necessidade de satisfazer seu ego. Hoje já não está mais preocupado com isto. Na sua apresentação depois de sua excursão pela Europa comprou metade da lotação para distribuir entre jovens negros. 'Não sou uma pantera, mas entendo a lógica do pensamento deles' - disse ele. "

quinta-feira, 23 de março de 2017

Rita Lee Fala de Sua Paixão Pelos Beatles (2001))

Rita Lee nunca escondeu sua grande admiração pelos Beatles, admiração essa que se iniciou em sua adolescência. Em 2001, inclusive, ela lançou um CD chamado "Aqui, Ali, Em Qualquer Lugar", com versões em português e em inglês de músicas dos Beatles. A revista da MTV nº 5, de novembro daquele ano trazia um testo de Rita sobre sua paixão musical pelo quarteto de Liverpool, num texto intitulado "Meu nome é Rita Lee e eu sou beatleólatra":
"Em 1962 minha irmã mais velha se casou com um inglês e foi passar a lua-de-mel em Londres. Na volta ganhei de presente o primeiro single dos 4 Fabs com Love Me Do e PS I Love You. Foi assim que comecei no vício.
De 1963 a 1970 eu bebi, comi, fumei e respirei Beatles. Vivia desenhando a silhueta dos 4 por todos os cantos, mas caprichei legal nos retratos de cada um deles a lápis sobre os papéis de melhor qualidade que consegui descolar: os que embrulhavam o pão que meu pai comprava toas as manhãs. Minha família tinha esperanças de que um dia aquele vício seria substituído por alguma faculdade, um marido ou até mesmo por outros heróis, como já havia acontecido antes com James Dean e Elvis. Quando os Beatles lançavam um disco eu economizava todos os meus tostões para poder comprar três: o primeiro para guardar, o segundo para guardar e o terceiro para deliciar meus ouvidos e minha alma.
Resumindo o meu coté de fã xiita, apenas fui uma daquelas trocentas meninas do planeta que deram plantão na frente da Apple debaixo de sol, chuva e neve. Um belo dia tive a sorte de testemunhar os 4 saindo de lá e, enquanto a polícia pastoreava a multidão gritalhona, eu voei pra lamber a maçaneta da porta. Aconteceu que nesse desvio de percurso fui parar bem na frente da garagem dos fundos da Apple, no sentido contrário de onde estava a multidão, e dessa maneira fui privilegiada com um close único do Rolls-Royce branco saindo. E o melhor de tudo: ganhei um aceno e um sorriso exclusivo de Lennon! Para quem nunca conseguiu assistir a um show ao vivo dos Beatles guardo essa cena absolutamente intacta no resto de memória que ainda me resta. Na escola, eu fazia parte de um quarteto de meninas chamado Teenage Singers - eu tocava bateria e cantava. Por volta de 1965/1966 entrei numas de aprender baixo para um dia eventualmente impressionar Paul. E foi assim que num festival de colégios convenci um rapaz dentuço meio parecido com Sal Mineo a me ensinar o ofício. Se chamava Arnaldo e era o baixista do Wooden Faces, uns garotos que só tocavam músicas instrumentais e não conheciam nada de Beatles. Desse encontro resultou uma fusão Teenage Singers/Wooden Faces, que depois de algumas formações acabou virando um trio absolutamente beatlemaníaco: Os Mutantes.
Quando os Beatles se separaram, comecei a sentir os efeitos da abstinência do vício, e para curar o cold turkey me mudei para a casa do inimigo, dizendo a mim mesma: 'Welcome the Rolling Stones!' De vingança pela traição dos 4 terem se casado com outras que não eu, recolhi toda a minha beatlerabília num baú e estoquei na garagem de casa. Devo ter ficado uns dez anos de mal dos Beatles, entre a época das Cilibrinas do Eden e Tutti Frutti. Confesso que fiz esculhambações públicas dizendo que preferia o lado bad boys dos Stones, a teatralidade de Bowie e a porra-loucura do Iggy Pop. Eu me recusei a botar Beatles na vitrola (vitrola!) até para meus dois filhos mais velhos. Em agosto de 1980 faleceu minha irmã Mary Lee, a mesma que havia me apresentado aos caras. Em dezembro do mesmo ano, lá se foi Lennon. Naquela noite tive uma overdose braba de Beatles, desenterrei o baú da garagem e chorei tudo o que tinha direito. Aos poucos comecei a incluir algumas músicas deles nos meus shows, o vício estava sob controle, 'um tapinha não dói', já dizia eu. Eu me lembro que, nos áureos tempos beatleolíticos quando ouvia alguma versão em português do repertório deles, sentia calafrios de pavor. E ai de quem fizesse um cover que não fosse absolutamente igual. Por outro lado rolavam versões pornô-light de algumas letras deles e cada 'conja' (gíria da época que significava grupo, banda) tinha a sua... 'Feche os olhos e sinta 2 metros e 30' era a mais conhecida, mas haviam outras mais apimentadinhas como a de Yesterday: 'Ontem dei minha bunda pra você comer, mas você não quis comer meu cu, oh! Ontem dei prum jaburu!' E os filmes dos 4 Fabs? Minha  outra irmã Virginia Lee  e eu chegávamos da escola e mãos à obra preparar marmitas para varar as sessões. Éramos  sempre as primeiras da fila de entrada e as últimas da fila de saída. O lance era decorar as falas dos personagens, detalhes dos cenários e figurinos, tintin por tintin, para depois sabatinar qualquer fã que encontrássemos pela frente. As perguntas eram mais ou menos assim: 'Qual é o diálogo entre Ringo e George na cena do vagão do trem? Que objeto está no chão do lado esquerdo e  o que está escrito na etiqueta da mala em que John está sentado?' Quando estreou Yellow Submarine tomei um ácido durante o Canal 100. A lisergia bateu na hora em que a tripulação partia para a viagem, daí que eu entrei na tela e embarquei junto. No meu tempo a pedrinha de um puríssimo Sunshine durava 12 horas, portanto naquele dia dormi literalmente no cinema, mas acordei a tempo de pegar a primeira sessão do dia seguinte para repetir o mesmo visual. Bem, já que não posso dizer que os Beatles foram, meus primeiros namorados, digo que sem dúvida são a grande paixão musical da minha vida, dessas que a gente ama, briga, faz as pazes e vive feliz para sempre. Um vício bom demais paras vez ou outra dar uma recaída bonita!"

segunda-feira, 20 de março de 2017

Se Eu Quiser Falar com Gil (2000)

Escolhido pelo jornal O Globo como a personalidade da cultura do ano 2000, Gilberto Gil foi entrevistado pelo jornal em matéria publicada em 24/12/00 e assinada por João Máximo. Na época Gil estava envolvido com a trilha do filme "Eu tu eles", uma espécie de resgate à influência de um de seus primeiros ídolos, Luiz Gonzaga. Na época dividiu o palco com Milton Nascimento, Maria Bethânia e Moraes Moreira. Também pensava em levar adiante um projeto antigo, que viria à luz anos depois, um CD em homenagem a Bob Marley, que ele exalta na entrevista. Gil vivia um momento de grandes e variados projetos, que ele cita, além de sua visão sobre a religiosidade:
"Gilberto Gil não esquece a  luz das estrelas e da lua varando o teto de telhas transparentes de seu quarto em Ituaçu, interior da Bahia, onde passou a infância. Ele considera aquela claridade - carregada de uma energia meio transcendental - um de seus primeiros alumbramentos. Ou seja, os primeiros sinais que o levaram a se transformar no homem introspectivo de hoje.
- Através daquelas telhas eu apreciava a noite, via o eclipse, esperava Papai Noel - lembra.
- Toda a ideia que passei a ter de luz, das candeias à lâmpada de Aladim, decorrem daqueles primeiros alumbramentos. A partir deles me relacionei com outras luzes, interiorizei-me, estabeleci uma ligação entre o homem e a transcendência. Tenho, por isso, um gosto pela religiosidade, pela necessidade do homem de se encontrar explicado no conjunto da natureza, no cosmos. E também para além dos sentidos.
Se é introspectivo o homem, são extrovertidos o compositor, o cantor, o poeta. Os mesmos que tiveram um ano também iluminado, senão repleto de alumbramentos. Vários foram os caminhos que levaram O Globo à escolha de Gilberto Gil como personalidade da cultura no ano 2000. Do disco que gravou para ser encartado no luxuoso livro que lhe dedicou o artista Bené Fonteles (Gil, voz, violão, em 15 canções) ao réveillon que ele e Maria  Bethânia vão animar no Farol da Barra, revivendo o show que os dois fizeram juntos em setembro. Entre um fato e outro, houve a comemoração (com Moraes Moreira) dos 50 anos do trio elétrico em Salvador, o reencontro com a sanfona e a música de mestre Luiz Gonzaga na trilha do filme 'Eu tu eles', o disco e o show com Milton Nascimento, a visão de sua obra pelos olhos de artistas plásticos e a certeza de que poderá retomar em breve o projeto de um CD dedicado a canções de Bob Marley.
Num momento de introspecção e reavaliação de sua carreira, o tributo a Bob Marley é um projeto fundamental para Gilberto Gil:
- São canções de um dos artistas que mais me marcaram como músico e como ser humano - ressalta Gil atendo-se mais ao futuro do que ao já feito. - Bob Marly deixou em mim um resíduo colorido e perfumado que quero preservar. Nos últimos dez anos, tenho pensado muito nele, dos últimos representantes da questão diáspora negra, do papel do negro no mundo. Tenho vontade de retribuir a Bob essa grandeza. Pra isso, já conversei com Rita Marley, sua viúva, sobre minha ida até a Jamaica. Para completar a ponte Rio-Salvador-Kingston.
O projeto, porém não deve ser para agora. Gil - que não tem férias formais há muito tempo - já está com a agenda cheia para 2001: excursão com Milton no primeiro semestre (Uruguai, Argentina, Nordeste, EUA e Europa) e nova edição do festival Percpan (em Salvador, São Paulo, Rio, Marselha e Nova York). Fora aqueles convites que nunca recusa, como se sentindo obrigado a ajudar a quem quer que se interesse por sua arte.
Embora em entrevista recente tenha se definido como um ser errático, com 'gosto pela discussão política e social da arte', Gil não é de se envolver em polêmicas, muito menos em criá-las. E nas raras vezes em que se envolve, o faz com a serenidade, quase doçura de um sábio.
- Sim, acho que fui me tornando mais doce com o passar dos anos, mais tolerante sobre a existência daquilo que nega seus olhares, minhas afirmações - observa. - Já nasci avesso às brigas. A espada não é meu instrumento. Não acho que seja essencial meu ponto de vista prevalecer. Não tenho necessidade de ganhar as guerras, nunca fui um guerreiro. E cada vez mais aceito os diferentes modos de pensar a realidade.
Gil acredita que suas canções, em grande parte, destinam-se a pensar nisso, 'no fio tênue que separa o homem com o pé no chão e o homem com os olhos no céu'. Nisso, o poeta e o músico são uma entidade só. Há no autor das canções - o compositor e  o letrista - um ímpeto pra que os dois se integrem:
- Às vezes, é a música que toma a frente e soluciona melhor esse diálogo . Outras vezes são palavras que fazem a aproximação. Mas o sentimento vem sempre antes de tudo. Aquilo que a gente pensa é invariavelmente antecedido do que a gente sente.
Ainda as diferenças entre letra e música;
- A palavra é fragmentada, a música não. A palavra segue por vários caminhos, ao passo que a música é pitagórica, um conjunto de sons organizados. Mas tanto uma como outra desembocam no caos sonoro, no mantra. A vida toda minha música tem tributado esse lado caótico, o som da natureza, a queda das águas, a reverberação do trovão, o canto dos pássaros, o soprar do vento. É a música natural, matemática. A palavra entra no meio. De repente, você emite um uivo e aquilo significa algo, cai num lugarzinho qualquer onde a palavra mora. Tudo acaba caindo no verbo.
A religiosidade em Gil é exercida de um modo próprio, o menino de formação católica se convertendo no homem que descobriu o candomblé - mais precisamente, o terreiro de Egun - pelas mãos de Mestre Didi e Juanita. Os búzios disseram que ele é Xangô. E no entanto os espíritos são difíceis de serem compreendidos por seu pensamento lógico.
- A reencarnação? De fato, um pensamento lógico como o meu não atende bem esse fenômeno da migração das almas para os corpos. Os que escolhem esse caminho devem ter vivências a respeito. Eu não tive. Respeito essas visões, embora minha mente cartesiana as rejeite. Como diz Patrick Drouot (físico francês, estudioso de vidas passadas), é preciso estar livre da mente racional, deixar que o sentimento oceânico o invada, para poder aceitar. Houve tempo em que simplesmente rejeitava a ideia de reencarnação. Hoje, não. Mas não é um acreditar, é um concordar.
Novamente Gil se concentra no verbo, chamando a atenção para o cuidado que as filosofias religiosas têm com  a palavra. Concorda com Fernando Pessoa - 'tudo vale a pena se alma não é pequena' - e acredita que o fato de ter vivido tudo o que já viveu, inclusive os êxitos deste ano, seja obra do destino.
- As coisas só acontecem porque você se impulsiona. Seus sonhos, seus mitos, em tudo há conformidade. Ou seja, 'conforme a idade', tudo o que o tempo e o espaço impulsionam. Em resumo, os espelhamentos: o mundo em mim, eu no mundo.
Voltando às suas luzes, Gil crê que o mundo seja uma permanente continuação do embate entre as trevas e a luz, a intuição e a razão.
- Do embate contra o sentimento gravitacional que nos prende ao chão e nos escraviza a impulsos rastejantes como a inveja, o ódio, a ira, o tributo ao pequeno ego. Alguns homens especiais que venceram esse embate? Einstein, Gandhi, Mandella, Martin Luther King... E, naturalmente, Dorival Caymmi."


domingo, 19 de março de 2017

João Donato Lança Songbook - Jornal do Brasil (1997)

João Donato é um dos músicos mais importantes e respeitados do país. Compositor e arranjador dos mais versáteis, sua obra é bastante extensa e rica. Por isso não poderia ficar de fora do projeto dos songbooks criado pelo produtor Almir Chediak na década de 90. Por ter iniciado sua carreira ainda na época da Bossa Nova, e depois ter feito carreira nos Estados Unidos, onde tocou com diversos músicos de peso, sua obra autoral é bastante extensa. Ao retornar ao Brasil, no início dos anos 70, Donato passou a compor com Gil, Caetano, PauloCésar Pinheiro, Marcos Valle e outros nomes importantes da música brasileira. A extensão de sua obra exigiu a gravação de 3 cds, reunindo nomes como Ivan Lins, Chico Buarque, Caetano Veloso, João Nogueira, Gilberto Gil, Marcos Valle, Rita Lee, e muitos outros.
O Jornal do Brasil de 06/07/97 trazia uma matéria sobre o lançamento, assinada por Tárik de Souza, e intitulada "João Donato, operação resgate":
"...e a fossa quase casou com a bossa. Poderia ter sido o casamento de transição do samba canção de fossa com a bossa nova modernista, crivada de suingue. 'Namorei Dolores Duran mas na hora de casar minha família não deixou porque ela era quatro anos mais velha e cantora de boate', rebobina o pianista e compositor João Donato. Na época, esse precursor da bossa que frequentou ao mesmo tempo os fã-clubes de Dick Farney (com Frank Sinatra) e Lúcio Alves (com Dick Haymes) desdenhava das canções, só pensava em assinar temas instrumentais, como os jazzistas . 'Acho que foi isso que atrasou minha careira, me deixou no limbo', lamenta o pianista que começou no acordeon, mas também teve uma passagem cintilante pelo trombone.
Demitido em março da gravadora EMI, onde lançou o último disco, ele atravessa uma fase financeira dura e joga toda a sua fé na série onde três songbooks (e mais um livro reunindo 60 músicas) que a Lumiar, de Almir Chediak, está produzindo com sua obra para lançar em outubro. 'É minha oportunidade de voltar a subir no ranking', brinca, lembrando o salto fulminante do tenista Gustavo Kuerten. Das gravações, iniciadas há dois anos e agora transformadas em operação resgate, participam os maiores ases da MPB.
O adjetivo gênio há muito tempo aureola João Donato acompanhado de outra qualificação, a de maldito. 'A nossa turma, o Johnny Alf, o João Gilberto, o Tom Jobim, achavam muito chato aquela música brasileira anterior, aquele negócio de tornei-me um ébrio, virei um molambo, nós queríamos mudar', lembra ele. Os primeiros tempos foram muito mais duros que agora, quando suas músicas estão espalhadas por discos de astros como Gal Costa, Gilberto Gil, Nana Caymmi, Caetano Veloso e Adriana Calcanhoto.
Ainda na década de 50, o duo formado por ele (piano) e João Gilberto (violão e vocal) foi contratado por um hotel de São Lourenço para uma temporada de uma semana. 'Depois do primeiro show, o dono nos chamou e disse que a gente não precisava se preocupar. Pagava todo o combinado desde que o show fosse suspenso. E aí ficamos lá uma semana, por conta do hotel, tomando água mineral e tendo piriri por causa daquela mistura de fontes sulfurosa, alcalina, etc', diverte-se.
Mesmo na diversidade de ofertas das mais de 30 boates (na época apelidadas inferninhos) da Copacabana pré-bossa, o pianista Donato não conseguia dar canja. 'Achavam meu estilo muito complicado, diferente de tudo, ninguém entendia', reclama. Um convite do violonista Nanai para passar quatro semanas se apresentando num cassino em Lake Tahoe, em 1959, foram emendados depois com 12 anos nos Estados Unidos, onde seu talento finalmente foi reconhecido. 'Escreveram na contracapa de meu disco com  o saxofonista Bud Shank (Bud Shank and his brazilian friends) que eu era o Cole Porter brasileiro. Tomei um susto', ri.
De volta ao Brasil, o cantor Agostinho dos Santos cobrou-lhe músicas com letras para que pudesse gravar alguma coisa sua. 'E eu namorei a Dolores Duran e nunca pensei em pedir a ela que letrasse algumas das minhas composições', lamenta. Compara-se a Johnny Mandel, famoso depois que acertou algumas baladas e diz que fazia pouco da canção. 'Meu negócio era o piano trio', prega este discípulo do erudito Debussy e do jazzista Stan Kenton que gravou clássicos do ramo instrumental como o disco Muito à Vontade.
'O Tom Jobim ficou famoso como compositor, o João Gilberto como cantor e eu como pianista', discrimina ele, que começou a mudar essa imagem no disco Quem É Quem, em 1973, onde contou com parcerias de Paulo César Pinheiro, João Carlos Pádua, Geraldo Carneiro, Lisias Enio e Marcos Valle. No songbook, eles se juntam à pioneira Minha Saudade (na voz de Gilberto Gil), letrada por ninguém menos que João Gilberto (escalado para cantar A Paz).
E há mais: Chico Buarque em Brisa do Mar, Luiz Melodia em Coisas Distantes, Gal Costa em Simples Carinho, Daniela Mercury e Guinga em A Rã, Caetano Veloso em O Fundo e Emilinha Borba na inédita Os Caminhos (com Abel Silva). 'João ficou muito emocionado com esta participação. Ele é fã da Emilinha', entrega o produtor Almir Chediak. Mais uma prova de que os biscoitos finos podem conviver com cantores de massa."

terça-feira, 14 de março de 2017

The Who - Um Grito de Rebeldia na Vanguarda do Rock Inglês (1975)

A banda inglesa The Who faz parte da história do rock de uma forma decisiva. Sem dúvida, uma das melhores bandas surgidas na fase áurea do rock - anos 60/70, o The Who é anunciado como uma das atrações do próximo Rock In Rio. É lógico que não se pode comparar a banda atual com a formação original, com os falecidos Keith Moon e John Entwistle, uma das mais poderosas cozinhas de uma banda de rock. Mas não se pode deixar de levar em conta que Pete Townshend e Roger Daltrey, guitarra e voz dessa verdadeira instituição do rock estarão no palco, mesmo com o peso da idade e sem a companhia de seus parceiros dos áureos tempos. Mas não se pode ignorar o peso que representa o nome The Who, e resta torcer para que a dupla original e os dois substitutos ainda mantenham acesa a chama de uma das bandas mais eletrizantes de todos os tempos.
A matéria que transcrevo abaixo é da fase áurea da banda, publicada em maio de 1975, pela revista Pop, com texto de Valdir Zwestsch:
"No início de sua carreira, no começo dos anos 60, o conjunto inglês The Who era conhecido principalmente pelo potente volume de som, pela energia inesgotável dos músicos e pela violência destrutiva de seus shows. Invariavelmente, o baterista Keith Moon quebrava as baquetas, o cantor Roger Daltrey inutilizava de quatro a cinco microfones por noite e  o guitarrista Pete Townshend encerrava o espetáculo batendo furiosamente com sua guitarra sobre caixas de som e amplificadores até destruí-la completamente. Como num ritual, alguns pedaços do instrumento eram jogados ao público. Os outros, Pete recolhia cuidadosamente e pendurava na parede de seu apartamento, como troféus de uma batalha.
Pete Townshend
Essa violência, que levava os ouvintes ao delírio, não era gratuita. Na verdade, era uma manifestação quase sempre espontânea do inquieto gênio criador de Pete Townshend, o líder e autor das canções do grupo. E refletia uma sólida compreensão do momento em que eles viviam.
Mas violência, ritmo, técnica e barulho não bastam para fazer de músicos um grande grupo de rock. Por trás disso deve haver, principalmente, muita sensibilidade. E aí está o grande trunfo do Who: o conjunto, em termos musicais, está acima de qualquer suspeita.
Pete Townshend é um dos maiores compositores da música pop contemporânea. Com imaginação fértil e inesgotável, com inteligência extraordinariamente analítica e com aguda percepção dos dramas humanos, Pete consegue, em suas letras, uma dosagem equilibrada de rudeza e ternura que mexe nas entranhas de cada um dos ouvintes. Seu tema preferido é o ser humano, que ele retrata através de personagens marginalizados pela sociedade. Logo após vem o interesse pela tecnologia e o terror/fascínio que exercer sobre as pessoas.
Roger Daltrey
Mas, o mais importante, é que Pete consegue colocar essa visão intelectual sobre a música sem jamais comprometer sua espontaneidade. Assim, com a participação vigorosa das personalidades dos outros três elementos - o vocalista Roger Daltrey, o baterista Keith Moon e o baixista John Entwistle - , o Who mostra uma música viva, que mexe com o corpo e com  a cabeça.
O Who deu o primeiro grande exemplo disso em 1968, quando lançou Tommy, primeira ópera-rock da história, considerada até hoje como uma das grandes obras-primas da música popular. Em Tommy, Pete e o Who contam a história de um garoto cego, surdo e mudo que só consegue liberar os sentidos quando joga flipperama. Na verdade, a história de Tommy é praticamente a história de todos os jovens ingleses dos anos 60. E valeu para o Who, além de muito dinheiro, da gravação de um álbum com a Sinfônica de Londres e de um filme de Ken Russel (lançado recentemente nos Estados Unidos e Europa), a consagração definitiva.
John Entwistle
No ano passado, o grupo voltou a atacar com outra ópera-rock escrita por Pete: Quadrophenia. A ideia não foi muito bem recebida pela crítica e pelo público: 'Seria uma tentativa vulgar de repetir a fórmula de Tommy?' Mas, quando o disco foi lançado, todo mundo teve que reconhecer: Quadrophenia, contando a história de Jimmy, um cara que cresceu ao som do rock dos anos 60, era outra obra-prima indiscutível.
Assim, foi mais uma vez provada a genialidade de Pete Townshend e a vitalidade do Who, grupo que sobrevive há mais de uma década com os mesmos elementos. No começo do ano, todos os quatro estavam envolvidos em projetos individuais. Mas aguardavam com ansiedade o momento em que Pete terminasse de escrever novas músicas, para chamá-los a um estúdio de gravação. De onde deverá sair uma nova obra-prima. "



segunda-feira, 13 de março de 2017

Gal Costa - A Musa do Desbunde, no Festival da Ilha de Whigt (1970)

Gal Costa foi a musa do desbunde brasileiro dos anos 70. Cantora de voz privilegiada e porta-voz do Tropicalismo durante o exílio de Gil e Caetano, Gal viveu intensamente toda aquela efervescência cultural e comportamental que acontecia no Brasil. Gal em 1970 visitou os dois baianos em Londres, e teve a oportunidade de participar de forma direta de um dos grandes eventos contraculturais dos anos 70: o antológico Festival da Ilha de Whight, na Inglaterra.
Um fascículo da série "Os Grandes da MPB", dedicado à cantora fala desse contato e participação dos baianos tropicalistas nesse grande evento:
"Gal Costa foi, sem dúvida a musa do exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Porta-voz literal dos baianos que viajaram para o exílio em julho de 1969 e que só voltariam ao Brasil no verão de 1972. Caso de Gilberto Gil, já que Caetano Veloso obteve permissão pra vir, em 1971, ver os pais e participar de um programa da TV Tupi ao lado de João Gilberto, que bateu pé pela presença de Caetano e Gal.
Gal Costa, além de gravar as músicas que os compositores baianos fizeram em Londres, como 'London, London' e 'Mini-Mistério', também viajou para Londres, onde passou uma temporada dando apoio moral aos amigos. Entre os fatos marcantes dessa viagem encontra-se a ida dos baianos e agregados ao Festival da Ilha de Wight.
Anunciado como o último dos festivais, realizado em agosto de 1970, reuniu a nata dos roqueiros da época, os grandes como Jimi Hendrix, The Who, Jim Morrison e The Doors, Jethro Tull, Miles Davis e Joan Baez, entre outros, o show que encerraria uma época, um modo de ser todo especial cristalizada na frase de John Lennon: 'The dream is over'.
Mote que seria aproveitado por Gilberto Gil para escrever uma de suas grandes músicas, 'O Sonho Acabou'. Voltando à Ilha de Wight, o certo é que todos os 'desbundados' do mundo foram pra lá; inclusive a brasileirada que se encontrava em Londres, cidade-meca dos anos 70.
Gil, Gal e Caetano
São vários os relatos da época, mas dois merecem atenção especial: primeiro o de Gal Costa, que participou, junto com Caetano Veloso e Gilberto Gil, além de outros brasileiros, de uma apresentação para os novos. A cantora, em depoimento à jornalista e fotógrafa Mariza Alves Lima, autora de Marginália - Arte e Cultura na Idade da Pedrada, afirmava o seguinte:
'Eu daqui para a frente quero sentar, pegar no violão e fazer tudo em termos de música... A viagem à Europa me deu uma grande abertura. Ficamos cinco dias em Portugal e depois seguimos para a Ilha de Wight, para assistir ao Festival. Foi uma semana de acampamentos em duas barracas enormes, quinze pessoas cantando, tocando e curtindo. Além dos brasileiros que foram comigo, incorporaram-se ao grupo Gilberto Gil e Sandra, Guilherme Araujo, Antônio Bivar, Zé Vicente, entre tantos outros, que agora para mim fica difícil enumerar. O som improvisado que fazíamos na barraca, um misto de vozes, batuque em tambores e reco-reco foi gravado pelo grupo em fita. A gravação entusiasmou os organizadores do festival e, graças a isso, fomos convidados para abrir o segundo dia de apresentação dos conjuntos desconhecidos'.
Gal Costa diz em seu depoimento que ficou impressionada mesmo foi com Miles Davis, 'simplesmente genial nas duas apresentações que assisti, o conjunto Ten Years After, o The Who, absolutamente incrível e Jimi Hendrix'. Nunca vi - continua Gal - ninguém com tanto charme.
Outro relato de época delicioso é o do escritor e teatrólogo Antônio Bivar, autor de Verdes Vales do Fim do Mundo, um registro de sua estada na Europa durante o começo dos anos 70. Ele também foi ao Festival junto com o amigo José Vicente e ficaram acampados nas tais barracas debaixo de um sol de rachar, assegura.
No dia de apresentação do chamado grupo brasileiro para uma plateia de 200 mil pessoas, Antonio Bivar descreve que '... Gil com a guitarra deu o sinal de partida e nós fomos com  a cara e a coragem no acompanhamento. David na flauta tranversa e Nik Turner no sax, Gustavo da 'Bolha' nos atabaques, Nigel e Marcos do Meyer nos bongôs, Bruno, o suiço, no baixo, Caetano no violão... Gal Costa que tinha vindo do Brasil para o festival, tocava um reco-reco. E eu outro. Gil cantou em português, inglês, africano... Caetano cantou 'London, London' em inglês para um público atento que prestou atenção na letra O show brasileiro durou perto de quarenta minutos e terminou com Gil cantando 'Aquele Abraço'.
No palco - continua Bivar - muita gente chorou de emoção e a plateia, mesmo não entendendo a letra, sentiu a brasilança do grupo e a aplaudiu de pé, pedindo mais, mais, mais! Nos bastidores de talentos assediavam Claudio Prado. Os homens da CBS estavam eufóricos para contratar todo o grupo. Mas Guilherme Araujo chegou de Londres para dar um não definitivo. Sendo empresário de Gil e Caetano, Guilherme achava que seus contratados deviam continuar suas carreiras individuais. E não se tocou mais no assunto, finaliza Bivar. "

quinta-feira, 9 de março de 2017

Chico Buarque na Calçada da Fama (2004)

Chico Buarque, um dos artistas que mais combateram o regime militar instalado no Brasil em 1964, não poderia deixar de ser homenageado por sua obra e seu posicionamento político naquele período tão conturbado pelo qual o Brasil passava. Por isso, quando se lembrava dos 40 anos do início daquele período, e como uma forma de homenagear de quem ousou combater e desafiar a ditadura imposta pelos militares, Chico deixou suas mãos na "calçada da fama", um monumento de cimento fresco criado no bar Toca do Vinícius, em Ipanema, onde ele pousou as mãos, deixando sua marca. Isso aconteceu no dia 1º de abril de 2004. Na verdade, a data não foi uma escolha, e sim uma coincidência, mas que ganhou um significado especial. Em sua edição de 04/04/04, o jornal o Globo trouxe uma matéria sobre o evento, assinada por Cesar Tartaglia, e intitulada "Com as duas mãos na fama, Chico ri por último":
"Quinta-feira passada, primeiro de abril, com uma deferência devida a ídolos do seu porte, Chico Buarque de Hollanda deixou registrada a marca de suas mãos num quadrado de cimento fresco. Junto a ela, o jamegão do compositor também em relevo, formando um conjunto que foi recebido como uma figurinha carimbada pelo dono da Toca do Vinícius, Carlos Alberto Afonso, onde o troféu reforçará o acervo da Calçada da Fama de Ipanema.
Chico deixou para  Carlos Alberto a escolha da data, mas sem querer produziu-se uma deliciosa coincidência. Naquele dia, a imprensa registrava as lembranças das quatro décadas do golpe de 64, ano zero de uma ditadura que tanto perseguiu o compositor. A crônica do movimento de 64 registra o dia 31 de março como o do início de tudo, mas foi já na madrugada de 1º de abril que as tropas começaram a marchar. Quarenta anos depois, ficou seguinte: o regime finou-se, seus patronos saíram de cena e Chico continua gozando a fama que nunca perdeu.
As mãos do artista se juntarão a uma galeria de placas da Toca, com registros semelhantes de Maria Bethânia (que iniciou a série em 1969, no finado Pizzaiollo, de cujo acervo de cimento a casa se tornou donatária), Vinícius de Moraes, Elizete Cardoso, Pixinguinha e outras cobras criadas da MPB. Elas farão parte de um conjunto de 32 peças, com projeto do arquiteto Paulo Casé, chamado Tótens da Fama. A ideia é montar um monumento em frente  à Toca do Vinícius. Se tudo correr bem, as placas, suspensas por pilares de vidro, serão inauguradas no próximo dia 26, nas comemorações do 110º aniversário de fundação de Ipanema.
O convite a Chico passaria por um prosaico evento de um projeto cultural do bairro, não fosse a curiosidade da data. Ela foi escolhida ao acaso, uma brecha na agenda do artista, particularmente apertada neste dias de lançamento do filme 'Benjamim'. Mas, embora ele certamente rejeite qualquer segunda intenção na fixação do  dia, não há como se furtar a saborear o gostinho de quem riu por último.
Vítima número1 dos maus bofes do regime, Chico teve sua obra, não poucas vezes, clivada ao gosto dos censores. A perseguição foi tamanha que, no auge dos anos de chumbo, ele teve de adotar um pseudônimo (Julinho da Adelaide), para ludibriar os guardiões do index da época.
Cinco, seis anos depois do golpe militar, amargando um exílio que parecia levar para as margens do brejo boa parte de quem ousava criar no país, o compositor cantava da Itália: 'Apesar de você/Amanhã há de ser/Outro dia(...)/Você vai se dar mal/Etecétera e tal/Laralá, laralalá...'.
Profético: decorridos 40 anos desde o golpe, produzindo como o finado regime não admitia, ele está onipresente na Calçada da Fama, nos cinemas, nas livrarias e nas rádios. Seus censores, no limbo. Pura coincidência o destino reservar tal homenagem ao maior dos nossos compositores para estes dias, quando a revolução volta a ser lembrada. Como previa a letra de 'Apesar de Você', hoje é outro dia, seus perseguidores se deram mal, etecétera e tal, e Chico riu por último.
Deixando suas mãos na placa
A mobilização de Carlos Alberto Afonso para capturar o valioso ícone começou domingo passado. Ele fizera algumas gestões, até que o próprio Chico telefonou-lhe no fim de semana. 'Quinta-feira ou segunda, pode ser?' Você acha que no campo fica longe?', perguntou o músico. Mesmo que fosse no fim do mundo, o fã, deferente, estaria lá, na hora acordada, com balde, cimento e uma boa dose de tietagem.
- Ele ainda me convidou para jogar na pelada. Não ia perder aquilo por nada. Cheguei junto com Chico no campo, ele de calção, chinelo e camisa pescando siri - delicia-se Carlos Alberto.
O campo em questão é o Centro Recreativo Vinicius de Moraes, um tapete verde mantido por Chico lá para os lados do Recreio, onde ele recebe os amigos para bater uma bola duas vezes por semana, com seu time, o Politheama. A pelada rolou macia, com craques da música (e não necessariamente do futebol) como o ex-MPB4 Ruy Faria e o compositor Carlinhos Vergueiro.
A um aviso da equipe da Toca do Vinicius, o músico deixa temporariamente o campo, vai em direção à arquibancada e tasca as mãos no cimento. depois assina a placa - e a galera fazia 'uhhhhh'. Chico brinca, voltando-se para uma plateia animada, divertida, tomando-a por torcedores.
- Estão vendo? Vocês não fizeram questão de ter meus pés no cimento. Pois agora estou gravando minhas mãos para a Calçada da Fama.
- Habemus placa - vibrou Carlos Alberto.
- Placam - consertou o homenageado, gastando cavalheirescamente o latim.
Chico volta a campo. Só faltava, para completar a festa, um gol do ídolo - e, como no mundo chicobuarqueano tudo é perfeito como o gramado do seu estádio particular, o compositor incorporou o craque. tomou uma bola na intermediária, driblou um adversário, avançou e soltou a bomba. Indefensável: não faltava mais o gol. E, para não fugir ao mote da tarde, de placa."

segunda-feira, 6 de março de 2017

Elis - Uma Mágoa de Tom, Que Era Mentira

Muitas vezes, uma história não esclarecida, um mal entendido, uma conversa atravessada geram mágoas e mal entendidos que podem durar anos ou uma vida inteira. Durante muitos anos Elis Regina guardou uma certa mágoa de Tom Jobim, que aconteceu no início de sua carreira por conta de uma conversa que chegou a seus ouvidos, que dizia que Tom a teria vetado de participar de um disco que ele estaria preparando, do qual o nome de Elis havia sido sugerido.
Esse depoimento foi retirado de uma entrevista de Elis ao jornalista Aramis Millarch em 2 de setembro de 1978, e publicado pelo jornal O Estado do Paraná em 21 de janeiro de 1983:
"Elis morava ainda em Porto Alegre, tinha gravado dois discos na CBS, quando lhe disseram que Vinícius de Moraes e Carlos Lyra haviam composto em parceria um musical - Pobre Menina Rica - que iria ser gravado em 1964 pela CBS. Eles buscavam a cantora que iria fazer a menina rica da história, e Carlinhos Lyra já estava escalado para ser o Mendigo Poeta que se apaixona pela menina.
- Me lembro que cheguei à rodoviária (do Rio) - lembrava ela - o Umberto Contardi (que era engenheiro de gravação da CBS) estava me esperando, me levou pra conversar:
- Estamos fazendo um disco assim e assim...
E eu:
- Graças a Deus, vou poder cantar um negócio que eu gosto.
E ele:
- É você quem vai fazer.
- Conheci o Antonio Carlos Jobim, Carlos Lyra, todo mundo. Tremia feito uma besta porque, de repente, você entra no Céu e conhece Deus! Fica morrendo de medo, né? Tudo no mesmo dia! Cheguei hoje, amanhã tem Tom, Vinícius, Carlinhos, e eu... estado de choque, né?
Mas, depois de tudo acertado, preferiram chamar outra cantora, a carioca Dulce Nunes, porque o sotaque sulista de Elis, na época, era muito forte e os produtores do musical - todo passado no Rio de Janeiro, estrelado por cariocas e com embalo de bossa-nova -, achavam que, certamente, não ia ficar bem com aquele sotaque.
- Me disse depois um simpático cidadão que eu não poderia fazer o disco porque o Tom não queria fazer arranjo para ser cantado com gosto de churrasco! Ah, é? Tá legal (...) Era porque eu tinha o sotaque forte, né? (...) Fiquei com esse troço entalado durante anos. Eu gosto  muito de conferir. Mas não era bem assim também, né?
Ele (o Tom) falou:
- É, é? Tanto é mentira que eu nem fiz o disco. Quem fez o disco?
Eu falei:
- É mesmo, rapaz!
Ele:
- Você é louca, fica 12 anos com a mágoa guardada, tá falando com o olho cheio de lágrima e não se dá conta de que eu nem fiz o disco?
E eu:
- Pois é, desculpe...
Elis e Tom gravariam um álbum juntos, Elis & Tom - que ela consideraria o seu melhor trabalho - em 1974.
Elis não participou da gravação do musical, mas o autor dos versos de Pobre Menina Rica ela iria conhecer um ano depois e acabou sendo sua primeira porta aberta para a gloriosa carreira que viria a acontecer logo em seguida."

quinta-feira, 2 de março de 2017

Cássia Eller - Revista Bizz (1991)

Cássia Eller (1962-2001) foi uma das grandes vozes surgidas na música brasileira nos últimos 30 anos. Seu timbre personalíssimo, sua interpretação visceral e sua presença de palco, fizeram dela um dos nomes mais respeitados e cultuados entre as cantoras brasileiras, em um país de tantas vozes marcantes. Apesar de sua grande timidez fora dos palcos, Cássia em cena era um furacão, uma força da natureza, com interpretações eletrizantes, entre o rock, o blues e a MPB, com a mesma desenvoltura. Sua morte precoce, aos 39 anos deixou uma grande lacuna na música brasileira.
Em 1991 Cássia ainda era uma iniciante, uma promessa já cumprida, que trazia uma nova luz ao cenário da música. A revista Bizz em sua edição de julho daquele ano, trazia uma matéria com Cássia, assinada por Luiz Henrique Romanholli, e intitulada "Quem é Eller":
" 'Eu sou uma pessoa que trabalha com música. Gosto de rock, de tango, de bolero, de tudo. Curto essa praia de estar cantando rock, embora não me considere roqueira. Mas não dá para saber uma coisa só. As informações vão ficando na cabeça. Neguinho não admite que gosta de Milton Nascimento, bossa nova, mas essas informações ficam gravadas.'
O leitor mais afoito deve estar olhando com desdém e pensando: 'Mais uma cantora de 'formação eclética' '? Calma, Brasil... A carioca Cássia Eller, 28 anos, escolhida pela crítica da Bizz como a revelação feminina na votação dos melhores de 90, tem motivos e moral para falar desse jeito. Primeiro, porque a sua vida itinerante (graças à carreira militar do pai) levou-a a para lugares díspares e distantes uns dos outros, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Santarém, Brasília e São Paulo. 'Eu gosto de cantar de tudo. O cara não escuta só jazz. Duvido. Todo mundo ouve até Xitãozinho e Xororó. É bom se mudar, conhecer outras coisas. No Brasil é tudo muito diferente de um lugar para outro.'
Segundo, porque, como bem demonstra o bom disco de estreia da Cássia, lançado no ano passado pela PolyGram, ela consegue juntar óleo e água. Sob seus arranjos e vozeirão bluezy, convivem pacificamente Marcus Miller, Renato Russo, Lennon, Frejat, Itamar Assumpção e Jorge Salomão. Cássia carimba sua griffe em cada canção que interpreta. 'Eu não vou muito pelo compositor. Vou mais pela música. Tem compositor que eu costumo gostar de alguma coisa. E tem uns que eu adoro e que às vezes falo 'nossa, que cagada que o cara fez'. Eu vou pela letra, pelo ritmo, pela música, por alguma coisa, já que a mensagem não vem só da letra.'
Talvez esse desprendimento seja o fator diferencial que destaca Eller de um hipotético 'boom de cantoras'. Com seu jeito moleque, ao mesmo tempo tímido e travesso, ela não parece muito preocupada em passar uma imagem determinada e nem vive ávida por sucesso; 'Tá ótimo do jeito que tá'. Cássia Eller não é nenhuma iniciante. Violonista autodidata desde os 15 anos, ela resolveu começar a cantar para valer em 81, ano em que foi morar em Brasília. 'Eu tocava violão e gostava de música. E tinha muita coisa que eu ouvia e achava que podia fazer melhor. Aí comecei a fazer coro. Cheguei a participar de uma temporada grande em My Fair Lady. Eu queria ser cantora lírica, mas não era muito disciplinada. Fiz quatro meses de aula, mas não deu certo. Eu gosto de gritar, berrar, e os professores proíbem porque força a voz aqui e acolá. De qualquer jeito, essa experiência valeu pra burro. E do canto lírico eu fui direto para uma banda de rock.'
Uma temporada em São Paulo, a convite do poeta Tavinho Paes - que pretendia produzir um LP da cantora para o selo SBK - rendeu encontros com Arrigo Barnabé, Itamar Asumpção e Bocato, que já frequentavam seu repertório nos tempos de Brasília. Rendeu também a fita demo que a levou ao Rio e à PolyGram, para as gravações do disco.
Outro encontro importante para Cássia foi com o guitarrista Victor Biglione. Virtuose das seis cordas, músico de estúdio bastante requisitado e figura cultuada no meio da música instrumental, Biglione convidou a cantora para realizar a seu lado um projeto antigo: uma série de shows que mostrassem um pouco da história do blues, através de composições de Duke Ellington, Jimi Hendrix e Willie Dixon, dentre outros bluesmen clássicos. Nos seis shows que a dupla fez no Rio, acompanhados por uma banda de primeira, Cássia deixou a plateia entre surpresa e extasiada. Além de ter dado um empurrão na carreira da cantora, o projeto pode ainda render um disco.
Seu segundo LP, de qualquer modo, já está a caminho. Enquanto percorre o país divulgando o primeiro disco, Cássia já vai colhendo algumas músicas para o repertório que deverá gravar no início do próximo ano. Quais músicas? Por enquanto ela prefere fazer mistério."