Palavras Domesticadas

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sábado, 25 de março de 2017

Files of Killimanjaro, de Miles Davis É Lançado no Brasil (1972)

Files of Killimanjaro é uma das muitas obras-primas criadas por Miles Davis. Lançado em 1968, o disco só sairia no Brasil em 1972. Antes tarde do que nunca, para quem apreciava a obra do grande trompetista americano que revolucionou o jazz, e não tinha acesso à discografia de Miles. Na ocasião o jornal Rolling Stone nº 8 (maio de 1972) trazia uma matéria sobre o disco, em artigo assinado por Luiz Fernando, e numa frase em destaque dizia: "Files of Killimanjaro, LP de transição de Miles Davis, foi agora lançado entre nós. Quando virão In A Silent Way, Bitches Brew ou Live/Evil?". Segue abaixo a matéria:
"A viagem que Miles Davis vem fazendo é uma das mais fascinantes de ser acompanhada. Sua criatividade abre as portas da percepção para uma nova visão da  música.  Miles já curtiu quase todas: considera o rock uma merda, mas afirma que seria capaz de reunir o melhor grupo e sair tocando por aí. 'Jazz também é uma merda; uma típica expressão de brancos; eu sempre estive metido na coisa e nunca tive ouvido essa palavra... até que li numa revista'.
A transa da sua nova música começa em 70 com Bitches Brew que foi entendida pelo jovem curtidor de rock e olhada com desconfiança pelo seu antigo público. É grande a disparidade entre Porgy e Bess (grande sucesso que exemplifica outro polo de sua carreira) e Bitches Brew, e não é apenas o som que mudou. A complexa parafernália eletrônica oferece a mesma visualização de um moderno conjunto de rock. Seus antigos admiradores costumam lhe perguntar porque ele não toca da mesma maneira que antes, ao que Miles revida - quem pode me dizer como eu costumava tocar?
Davis não faz parte do estereótipo do típico músico negro de jazz: não nasceu pobre, nem foi criado em gueto. Cresceu em East St. Louis (Illinois), onde sua família era bem estabelecida entre a classe média local. Apesar de sua condição econômica passou por todas as  humilhações que sofrem os negros americanos. Sua franqueza quando fala sobre o assunto já lhe causou o piche de racista. 'Pra que um grupo tenha swing você tem que colocar um negro tocando. Buddy Rich é uma exceção, mas quantos existem iguais a ele?'
Aos 18 anos convenceu o pai a mandá-lo para Nova York (Julliard School) ao invés da escolha de sua mãe, que queria vê-lo estudando na Fisk University.
Passou a primeira semana na cidade caçando 'Byrd' (Charlie Parker). 'Durante mais de um ano eu o seguia por todos os cantos. Ia com ele toda noite para a Rua 52, onde se apresentava'. Charlie costumava lhe dizer 'não tenha medo, vá em frente e toque'. Passava noites escrevendo os acordes em caixas de fósforos e tocava o dia inteiro ao invés de ir pra escola. Um ano depois largou a Julliard School. 'Toda aquela porcaria que estavam me ensinando não servia para nada'. Entrou para o grupo de Charlie Byrd.
Em 49 Miles foi um pioneiro em tonalidades e harmonias do chamado cool jazz. A série de 78 reunida pela Capitol, Birth of Cool é um exemplo disto.  Nenhum de seus discos - quase trinta - pode ser considerado fora de moda.
Depois o jazz se perdeu no marasmo do clássico, moderno etc. Miles pinta no Festival de Newport tocando Walkin, um blues que iria influenciar em pouco tempo toda uma geração de músicos em todas as  partes do mundo. Era o fim da escola cool.
Durante quatro anos Miles esteve engajado na heroína. 'Estava cansado e doente.A gente pode ficar cansado de qualquer coisa, inclusive de ter medo. Fiquei olhando o teto por doze dias, delirando. Depois resolvi cair fora'. Tocou numa série de pequenos grupos, quintetos, sextetos, apresentando-se em pequenos clubes sem direito de escolher seus acompanhantes.
Depois desse período Miles começa a ensaiar com um grupo de jovens músicos (Gerry Mulligan) no porão da casa de Gil Evans em Nova York. 'Gil gostava da maneira como eu tocava, e eu de como ele escrevia'. Fizeram alguns álbuns para a Columbia.
Musicalmente Miles tinha voltado em parte ao pop de Parker, mas com grande flexibilidade, sofisticação e lirismo. Um disco fim-de-papo é Kind of Blue (com Coltrane) principalmente no desbunde dos Flamenco Sketches. Em Files of Killimanjaro e em In a Silent Way, Miles começa a indicar as novas direções da música. O boxe lhe devolveu a força, tornou-o ágil e bonito. - 'Para tocar bem, um músico tem que estar em boa forma física. Vocês nunca notaram que minha maneira de tocar vem das pernas?'
Depois de Bitches Brew Miles gravou um disco ao vivo no Filmore, a trilha do filme Jack Jackson e Live/Evil (as palavras se completam se você escrever qualquer uma de trás pra frente) que saiu no fim do ano passado. Este último, que tem uma parte ao vivo, pode repetir o sucesso de Bitches Brew.
Embora o rótulo de acomodado não possa ser aplicado a Miles Davis,  a verdade é que ele está mais seguro no caminho que escolheu.  As roupas - já foi eleito um dos mais bem vestidos do ano - os carros, e a vida louca que levava, segundo ele, faziam parte de uma necessidade de satisfazer seu ego. Hoje já não está mais preocupado com isto. Na sua apresentação depois de sua excursão pela Europa comprou metade da lotação para distribuir entre jovens negros. 'Não sou uma pantera, mas entendo a lógica do pensamento deles' - disse ele. "

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