Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 29 de março de 2017

Sérgio Ricardo - Quem Quebrou Meu Violão (1991)

O compositor e cantor Sérgio Ricardo é autor de uma bela e rica obra musical, mas sempre é lembrado por ter quebrado seu violão e o atirado contra o público que o vaiava no Festival da Record em 1967. Esse episódio sempre ficará marcado na carreira desse grande compositor. Em 1991 Sérgio lançou um livro contando um pouco de sua vida e carreira, fazendo revelações e desabafos. O título é Quem Quebrou Meu Violão, logicamente uma referência ao episódio que infelizmente mais marcou sua carreira.
O jornal O Globo fez uma resenha do livro, assinada por Paulo César Coutinho, autor e diretor de teatro, e traz ainda uma pequena entrevista com Sérgio Ricardo, feita por Cláudio Henrique:
"Sérgio Ricardo foi uma figura pública marcante no cenário artístico do país. Exerceu múltiplas atividades: músico, cineasta, ator e militante político. Sua presença marcou a lembrança de toda uma geração. Esse autor e sua extensa obra foram porta-vozes dos ideais reformistas de um setor da classe média. E é assim que ele emerge nesse seu livro autobiográfico. Sérgio Ricardo logrou a questionável proeza de manter-se imutável. O autor conserva ainda o mesmo discurso que o tornou famoso. Seu relato ganha, assim, o interesse histórico de uma visita ao museu de ideias. Entra-se na máquina do tempo, com um guia vestido a caráter com a ideologia da época.
'Chega de Saudade', o recente best-seller memorialista de Ruy Castro, irritou Sérgio Ricardo. Ele chama seu antigo companheiro de 'um tal de Ruy Castro, vulgo cacique Boca de Hiena, cheio de saudade de uma farsa'. E dispara: 'Três décadas depois do surgimento da bossa nova vem um arqueólogo de araque remexer as cinzas de um vulcão extinto'. Mas, pelo fato de Sérgio Ricardo ter decidido fazer sua própria arqueologia, talvez o vulcão não esteja tão extinto assim. A sua visão de alguns temas pode causar perplexidade ao leitor contemporâneo. Ele estranha, por exemplo, a presença de Roberto Carlos no Festival Internacional da Canção: 'Eu não podia entender sua participação num festival que se propunha, a rigor, a revelar trabalhos de vanguarda. Não me constava que Roberto Carlos estivesse engajado nisso.' É curioso. Sérgio Ricardo julgava-se de vanguarda? O autor continua falando de Roberto Carlos e não resiste a uma patrulhada: 'Lançou seu iate na Guanabara, se intitulou majestade de um reino falso, num castelo de cartas marcadas'.
Os tropicalistas não merecem melhor juízo. Assim o autor se refere ao movimento; 'Meteram-se em indumentárias extravagantes, cultuaram os Stones, os Beatles, sua instrumentação, mensagens, jeito de cantar e de se expressar, importaram a contracultura, escancaravam as mãos para a entrada da cultura externa, que se instituía contra seu próprio povo'. Se isso era verdade, por que esse mesmo poder instituído perseguiu, prendeu e exilou os ídolos que lhe eram convenientes? É impressionante a injustiça que Sérgio Ricardo comete com Gil e Caetano e, depois de todos esses anos, a total ausência de perspectiva histórica da dimensão revolucionária do tropicalismo para a arte no Brasil.
Sérgio Ricardo viajou aos Estados Unidos, num momento de grande efervescência naquele país. É frustrante seu contato com a cultura americana: 'Sua filosofia semeava a futura aparição dos hippies e o surgimento dos Beatles. Era o inconformismo com os padrões estabelecidos da moral e dos costumes, revelando apenas sua rebeldia, sem qualquer proposta de transformação política'. Será que Woodstock, a liberação sexual e os protestos pacifistas que contribuíram para o fim da guerra do Vietnam não foram transformações políticas? O autor julgou ter captado a filosofia que germinava na América, em aspectos epidérmicos, na cópia superficial que tanto condenava: 'Resolvi deixar a barba crescer como aqueles beatniks, para sentir o barato deles. Andava com minha roupa mais surrada'. E o antiimperialismo de Sérgio Ricardo era tanto que ele recusou a aprender  inglês.
Em Nova York, Sérgio quis filmar as desgraças de um retirante. Seria a versão CPC de 'A rainha e o plebeu'? No Brasil, filmou 'O menino da calça branca'. Recebeu críticas do cineasta Ruy Guerra: 'Não havia cabimento, segundo ele, fazer-se um filme sobre a favela, usando um branco, teria sido mais próprio usar um menino preto para contrastar com a calça branca'. Mas Sérgio 'aproximou-se' dos favelados: 'Acabei comprando um barraco no morro do Vidigal... Alternava minhas idas e vindas a ele, procurando me enturmar... 'lá em cima, liderou a resistência dos favelados à remoção, virando nome de rua na favela - 'Tirei-os da apatia', orgulha-se.
Após o célebre episódio em que quebrou o violão no palco, comenta que saiu 'escoltado pela polícia para não ser linchado por um bando do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que vinha tomar as dores da plateia'. Que estranha situação! O CCC, que sempre espancou as plateias, resolveu defendê-las? A polícia, que sempre acobertou o CCC, resolveu enfrentá-lo? O idílio com João Gilberto incluía 'caminhadas pelo calçadão de Copacabana, até o raiar do dia e até o despertar da minha consciência'. O autor atribui a João Gilberto tê-lo convertido ao seu marxismo conservador. Conta que o lavava para casa. Após o café da manhã, iam dormir. Sérgio revela: 'Entre minha cama e a dele, ficavam o piano, o violão, as estantes e o violino'.
É importante constatar que a rigidez sectária de Sérgio Ricardo tem raízes no no primarismo político. Em 64, diz, 'finalmente estava em marcha o surgimento de um novo Brasil... Logo depois era dado o golpe militar'. É a ingenuidade conciliatória da visão nacional-popular que, historicamente, mostrou-se suicida. É o panfletarismo doutrinário do CPC da UNE. Culturalmente tão atrasado e autoritário como a direita. Em suma, o livro lembra a música do ídolo João Gilberto 'já temos um passado, um violão guardado'. Ou será um violão quebrado?

Nesta entrevista , o cantor Sérgio Ricardo defende seu livro e critica a bossa nova.
O Globo - Quem quebrou o seu violão?
Sérgio - Quebrar o violão no festival da Record foi um ato histórico porque representou uma reação coletiva das pessoas. Naquele momento de nossa História, três anos após o golpe militar, o povo brasileiro estava mesmo querendo quebrar os seus violões. Quando vaiava a minha música, o público se manifestava, não contra os jurados mas contra a ditadura, representada na eleição de quem ganharia o festival. Os músicos eram apenas marionetes, um joguete dos meios de comunicação. E estamos cada vez mais no fundo do poço.
O Globo - Que caminhos a cultura brasileira deveria ter tomado?
Sérgio - Os caminhos normais, ou seja, a arte seria usada como instrumento de conscientização das pessoas. A música brasileira não só deixou de evoluir como involuiu. Tanto assim que os brasileiros hoje têm preconceitos com nossa música popular, como o maracatu, o baião. Só existem festivais de rock, quando nossa música é muito mais interessante. Não é à toa que os nossos melhores músicos fixaram residência fora do país e que os estrangeiros vêm aqui para beber nessa fonte. Somos 'chupados' na cultura da mesma forma como em nossas pedras preciosas.
O Globo - O livro 'Chega de Saudade', de Ruy Castro, é discriminatório quanto à MPB?
Sérgio - Este livro apenas ajuda na deterioração da nossa cultura. Ele informa errado e ignora artistas como Cartola e Nelson Cavaquinho ao informar que a bossa nova foi o  primeiro grande movimento da MPB. Ora, a bossa nova nem sequer existiu. Não foi um movimento, mas um fã-clube. Um grupo que se reunia num apartamento para imitar João Gilberto. Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto, por exemplo, têm um trabalho que vai muito além da bossa nova. Ruy Castro fez um livro romanceado a partir de fontes como Ronaldo Bôscoli, que é o galã da história.
O Globo - E qual seria a saída para a música brasileira agora? Novos festivais?
Sérgio - Os festivais de música revelam novos valores, mas interessam basicamente às televisões. Toda a música, aliás, está atrelada a interesses internacionais. Pelo menos 99% do que há de melhor em música brasileira está nas gavetas dos compositores. Quem já ouviu falar em Guinga, Filó? Sai até uma coisinha aqui, outra ali, mas eu quero vê-los aparecendo no 'Fantástico.'. "




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