Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Fluminense FM, a Maldita

Em 1982 entrava no ar a Fluminense FM, uma rádio que mudou o panorama da rádio convencional. A Fluminense foi responsável pela divulgação de várias bandas que estavam surgindo naquele início dos anos 80, e ajudou a trazer o rock para a mídia convencional, e transformar aquele período num dos mais férteis para o surgimento de novas bandas. A Flu FM trouxe uma série de inovações, como divulgação de fitas demo de bandas principiantes e um novo tipo de locução, feito somente por locutoras, uma novidade na época. Uma revista especial sobre aquele período, chamada Guia Rock Nacional Anos 80, trazia uma matéria sobre a rádio:
"A rádio Fluminense FM, 94,9 MHz, já existia desde 1972, transmitindo a partir de Niterói. No início, sua programação era voltada ao hipismo, com a transmissão das corridas de cavalo no Hipódromo da Gávea. Entre uma corrida e outra, tocava música.
A transformação radical que se deu em 1982 se deve a dois jornalistas: Luiz Antonio Mello, repórter da Rádio JB, e Samuel Wainer Filho, repórter do Jornal do Brasil. Eles criaram o projeto de um programa, o Rock Alive, e levaram até a direção da Fluminense, mas Ephrem Amora, um dos diretores, descartou a ideia, isso num primeiro momento, porque poucos dias depois da primeira reunião com Mello e Wainer, Ephrem os chamou com uma proposta mais ousada: em vez de duas horas de programação roqueira, a Fluminense FM se dispunha a radicalizar a virar a primeira rádio brasileira dedicada 24 horas ao rock.
Para Luiz Antonio Mello, um jovem de apenas 26 anos, a proposta era tentadora. Já para seu companheiro Samuca, o Samuel Wainer, o projeto não servia. Ele queria uma rádio que também contemplasse o jornalismo. Sozinho, Mello assume a responsabilidade e, com carta branca da direção, parte para formar uma equipe. Sergio Vasconcellos e Amaury Santos pedem ao operador para gravar uma última vinheta. Com o microfone aberto, gritaram: Fluminense FM, a Maldita!. Estava criado o slogan que a rádio carregaria para sua história.
Além de ser uma rádio voltada para o rock, outra novidade trazida pela Fluminense FM era a locução feminina, algo quer não se ouvia, ou melhor, se ouvia muito pouco, nas rádios brasileiras. Selma Boiron foi quem iniciou a programação às 6 horas da manhã naquele 1º de março. O time feminino ainda tinha Selma Vieira, Monika Venerabile, Liliane Yusim, Edna Mayo e Cristina Carvalho. Com linguagem descontraída, mas sem cair para a galhofa, a Fluminense FM começou a cair no gosto não só da molecada, mas também de gente mais velha, que lá podia ouvir desde os grandes clássicos do rock mundial, até bandas novas que estavam surgindo no Brasil.
Na grade de programação havia espaço para tudo: Rock Alive, o programa criado por Luiz Antonio Mello e Samuel Wainer, era apresentado por Maurício Valadares (que além de radialista era fotógrafo) e Liliane Yusim. Apesar do nome, era um dos mais variados da emissora. Tocava de tudo, de rock a samba. Foi no Rock Alive que muitas bandas que se iniciavam nos anos 80 tiveram sua primeira execução, caso do Paralamas do Sucesso, que teve sua fita demo, com a canção Vital e Sua Moto, tocada no programa.
Time de locutoras da Fluminense FM
Além dos Paralamas do Sucesso, outros grupos tiveram vez no Rock Alive, como Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Picassos Falsos entre outros. Módulo Especial era um bloco de meia hora em que só se tocava um artista. Guitarras era dedicado ao punk e ao heavy metal. Espaço Aberto trazia o rock nacional e MPB. Rush era mais suave, hora de ouvir rock progressivo. Com uma programação variada, a Maldita iniciava uma revolução no meio radiofônico e não tardou para conquistar um número expressivo de ouvintes.
Outro fato que marcou a vida da Fluminense FM foi a parceria entre a emissora e o Circo Voador, que abria espaço para os jovens músicos do efervescente rock tupiniquim. A mistura era perfeita: o Circo abria seu espaço para as novas bandas se apresentarem ao vivo e a Fluminense oferecia suas ondas para que esses mesmos grupos pudessem ser ouvidos no rádio. O fruto da união foi lançado em 1983, pela WEA, que procurava alguém para rivalizar com a Blitz, da concorrente EMI. Era o disco Rock Voador, uma coletânea das fitas demo que eram recebidas pela Fluminense.
O destaque do disco foi o Kid Abelha e Os Abóboras Selvagens, com  as canções Distração e Vida de Cachorro É Chata Pra Cachorro. Também faziam parte da coletânea Sangue da Cidade (Brilhar a  Minha Estrela e Feito Louco), Malu Vianna (Saio do Ar e Vê Se Me Esquece), Celso Blues Boy (Brilho na Noite e Caminhando), Papel de Mil (Numa Noite Qualquer e Novo Amor) e Maurício Mello e Cia Mágica (Grão de Poeira e Tenho Que Viver).
A Fluminense FM também foi uma das primeiras rádios a levar a sério a comunicação com o ouvinte. A tal interatividade, tão usada hoje pelos diversos meios de comunicação, já era uma marca da emissora, isso em tempos em que internet era apenas uma tecnologia que engatinhava. As promoções da Fluminense eram uma das suas marcas registradas, pela criatividade e pela resposta dos ouvintes. Numa delas a rádio prometeu que daria camisetas da banda Adam and The Ants. Para levar o brinde, a pessoa teria de ir  até o Arpoador levando... formigas! Isso mesmo, formigas. Quem apostava no fracasso da promoção se deu mal. Centenas de ouvintes chegavam com potes de vidro com formigas dentro. Até o Ibama apareceu na praia para multar os desalmados capturadores do inseto.
Numa outra, sem o que sortear, um funcionário teve a brilhante ideia de entregar a prêmio o macaco do seu carro. Essa proximidade da emissora com seus ouvintes rendeu muitas histórias. Uma das mais saborosas aconteceu numa madrugada. Um sujeito ligou para a Fluminense querendo recitar uma poesia. Sem saber que atitude tomar, o operador de serviço ligou para a casa de Luiz Antonio Mello, que autorizou a entrada do ouvinte no ar. Uma hora depois o sujeito terminou a recita. Era ninguém menos que Renato Russo o autor da façanha, mas só ficaria famoso algum tempo depois. Mas a maior contribuição dos ouvintes da Fluminense FM aconteceu em 1984, quando Roberto Medina, o idealizador do Rock in Rio, pediu à rádio que fizesse uma pesquisa com a audiência para saber que bandas deveriam estar no evento, que aconteceria no ano seguinte. A lista tinha AC/DC, Queen, Yes, Iron Maiden e Scorpions, todas contratadas.
Ingresso para o show de 10 anos da Fluminense
Em 1985, com a saída de Luiz Antonio Mello e a concorrência da outras rádios, que começaram a incluir o rock em suas programações, a Fluminense começa a decair. Mesmo com a debandada de ouvintes, seguiu tocando rock até o início dos anos 90. Em 1990 abandona o estilo e começa a incluir na programação músicas com apelo mais popular, coisas como New Kids On The Block, banda de adolescentes americanos que fazia música pop. A reação dos ouvintes fieis é enorme e no ano seguinte, 1991, retoma a audiência que a havia colocado no topo e volta a tocar rock. Mas a essa altura, muita gente boa tinha deixado a rádio, inclusive seu criador, Luiz Fernando Mello, que havia voltado para tentar reerguer a emissora. Em 1994, a emissora paulista Jovem Pan assume o controle da Fluminense FM e decreta o fim do rock na 'Maldita', passando a tocar dance music. "

domingo, 28 de janeiro de 2018

Arnaldo Antunes - Entrevista ao Jornal Rock Press (1996)

Arnaldo Antunes é um poeta, letrista, cantor e performer dos mais destacados de sua geração, aquela que surgiu nos anos 80, quando o rock brasileiro ganhou grande projeção na mídia. Após deixar os Titãs, uma das melhores e mais criativas bandas daquele período, Arnaldo partiu para a carreira-solo. Em 1996 lançava mais um disco, denominado "O Silêncio", e concedeu essa entrevista a Tatiana Tavares, do jornal Rock Press:
"Ele é um dos principais poetas de sua geração. Juntamente com Júlio Barroso (Gang 90), Cazuza e Renato Russo, ajudou a construir um rock respeitável, com letras inteligentes, falando de temas pouco abordados na música pop dos 80. Arnaldo Antunes fez sua carreira nos Titãs mas há cerca de quatro anos partiu para um trabalho solo, em busca de novas experiências. Muitas vezes considerado maldito por seu envolvimento com drogas e por por nunca ter tido papas na língua, ele recomeçou a caminhar na estrada do showbizz, passando por todas as dificuldades e incompreensões por parte de público e mídia, pouco acostumados a ideias e padrões diferentes dos habituais.
Em 93, Arnaldo lançou o projeto 'Nome', composto por um CD, uma fita de vídeo e um livro de poesias. As três linguagens se complementavam e o jogo entre letras e palavras, característica forte em sua música até hoje, predominava. Dois anos depois, Ninguém, o segundo álbum, vinha um pouco mais pop, mas sem deixar para trás o experimentalismo e a estranheza do disco anterior.
Este ano, Arnaldo lançou O Silêncio, seu melhor trabalho, cheio de referências e misturas de estilos. As novas parcerias também estão presentes com Carlinhos Brown (na faixa-título e em 'Desce'), e Chico Science & Nação Zumbi, que participam de 'Inclassificáveis', que teve o grupo como uma espécie de inspiração.
Rock Press: Como você saiu dos Titãs, em 92, para o tipo de trabalho que faz hoje?
Arnaldo Antunes: É difícil definir isso. Sem dúvida, muitas coisas que eu faço hoje não poderiam ser feitas nos Titãs por falta de espaço, mas tem muitas outras coisas que se encaixariam perfeitamente. Meu trabalho atual continua tendo, por exemplo, o dado do rock'n roll fortemente presente, mas talvez mais contaminado por outras informações sonoras. Eu não sinto uma ruptura entre essas duas fases. Continuo sendo a mesma pessoa, então é normal que haja semelhanças e diferenças entre elas, já que hoje meu conhecimento musical se aprimora cada vez mais e apresenta um trabalho mais maduro.
Em comparação que as pessoas costumam fazer, dizendo que o que eu faço é mais experimental, também não é exatamente verdadeiro. Os Titãs também tinham o seu lado de experimentar, mas éramos oito, e hoje sou um só, e, é claro, as coisas ficam mais com a minha cara. Acho que todo trabalho artístico que se preze tem que fazer experiências de ritmos, de timbres, de letras... As pessoas costumam opor muito o pop e o experimentalismo, como se um único trabalho não tivesse lugar para as duas coisas. Não há demarcações rígidas. Estou interessado em misturar tudo isso e fazer um trabalho que, dentro do que chamamos de cultura pop, passa a ser assimilado por muita gente. Quero mais é poder ser visto e ouvido por um número cada vez maior de pessoas. Não concordo que exista nenhum tipo de dificuldade no acesso ao que eu faço. Acho que é um tipo de música que pode perfeitamente tocar no rádio e seguir todos os padrões normais e comerciais.
RP: Como você define seu último álbum, O Silêncio?
Arnaldo: A maioria dos críticos andou dizendo que é um trabalho mais pop, muito diferente dos anteriores. Não vejo dessa forma. Não me interessa repetir fórmulas já testadas, quero produzir um trabalho que tenha sua novidade. Acho que a principal característica é um maior amadurecimento com a banda, com a qual estou trabalhando há quase quatro anos, e isso dá uma maior unidade sonora ao disco. Todas essas referências que aparecem misturadas nos meus álbuns fazem parte da minha vida, de tudo que acumulei.
Sempre ouvi, com a mesma intensidade, Rolling Stones e Caetano Veloso, por exemplo. Nunca fui muito sectário quanto a gêneros e isso se reflete na minha música. Acho muito legal trabalhar com o atrito entre informações de universos musicais diferentes. Sempre agi assim como ouvinte e não vejo porquê não funcionar da mesma forma como criador.
RP: Na faixa  'Inclassificáveis', você fala da dificuldade de se classificar raças e crenças em um país enorme como o  Brasil. Essa dificuldade de separar em classes, rotular, também se estende à música?
Arnaldo: Sem dúvida está ligado à estética também. Esses rótulos não chegam a me irritar, mas acho que é muito redutor em relação ao que o trabalho realmente significa.
Principalmente a mídia tem muita necessidade de dar um nome para as coisas e, muitas vezes, esses nomes não comportam a totalidade do que está sendo proposto, é um nome artificial e que acaba soando esquisito.
RP: Por que o nome 'Silêncio' e que tipo de definição você daria para o seu trabalho?
Arnaldo:  Acho que posso definir da maneira mais ampla possível, dizendo que é um trabalho de música popular brasileira moderna. Na faixa-título, que é uma parceria minha e do Carlinhos Brown, significa o princípio de tudo. Vai retrocedendo no tempo com intervalos cada vez maiores e chega nesse silêncio, que é o vazio absoluto ('Antes de existir computador, existia tevê/ antes de existir tevê, existia luz elétrica/ antes de existir luz elétrica , existia bicicleta/ antes de existir bicicleta, existia enciclopédia/ antes de existir enciclopédia, existia alfabeto/ antes de existir alfabeto, existia a voz/ antes de existir a voz, existia o silêncio')
Agora, o silêncio, de maneira geral, serve muito como matéria-prima para quem trabalha com música, que não usa apenas o som, mas sim, os espaços entre os sons também. Acho que todos trabalham o tempo todo com ele. Quando a gente está falando, as pausas têm significados. E quantas vezes um silêncio fala muito mais do que dezenas de palavras? Ele está sempre permeando a matéria e interagindo com ela e as coisas que o cercam.
RP: Você já parou para se imaginar em um mundo de silêncio, sem televisão, luz elétrica, computador ou bicicleta?
Arnaldo: Eu só imagino o mundo com mais coisas do que ele tem hoje. Não quero tirar nada dele, quero colocar cada vez mais coisas. Imagino como poderá ser daqui a dez, 20, 50 anos. Quero teletransporte instantâneo, comunicação telepática, transmissão via satélite, sem precisar monitor, a imagem holográfica aqui. O que eu quero é viajar no tempo, quero mais, não menos.
RP: E o que você acha dessa geração criada na era da superinformação, da internet e da alta tecnologia?
Arnaldo: Acho que a tecnologia tem milhões de facetas que ainda estão sendo e virão a ser exploradas. Ela pode trabalhar em função da ecologia e da questão do meio ambiente, por exemplo, é através dela que poderemos tornar este planeta um lugar cada vez mais habitável e saudável para se viver.
Atualmente, é difícil se viver em um lugar superpopuloso, cheio de miséria, guerra e desigualdade para todos os lados. Sem dúvida, é preciso fazer alguma coisa por essas gerações que estão por vir.
Quanto à alienação, geralmente discutida pela mídia e pela grande maioria das pessoas, não acho que esteja ligada à superinformação ou excesso de tecnologia. Acho que a tendência é que os jovens fiquem cada vez mais inteligentes e preparados para resolver situações que antes não eram capazes. A gente não sabe no que isso vai dar, mas acredito que vá dar numa agilidade de pensamento e reflexo muito grande. Quando surgiu a televisão, muita gente dizia que era um veículo emburrecedor e é esse tipo de mentalidade que se vê de novo, em relação ao computador. Quando fiz 'Televisão' com os Titãs (incluída no segundo disco da banda), era sobre isto que estávamos falando.
RP: Seu primeiro álbum solo, Nome, de 93, vinha acompanhado por um livro e um vídeo, tinha toda esse linguagem da interatividade presente. Você se desinteressou por esse tipo de proposta?
Arnaldo: Não é questão de ter me desinteressado, mas realmente agora estou mais ligado à coisa musical mesmo. Tenho desejo de voltar a trabalhar com vídeo, continuo rabiscando meus poemas mas, neste momento, a prioridade é a parte musical.
RP: Como você analisa o mercado para quem está começando numa banda hoje, muito diferente de quando a geração de 80 começou?
Arnaldo: Começar sempre é difícil. Com os Titãs, por exemplo, nós ficamos dois anos só dando shows em todos os lugares onde uma banda iniciante poderia tocar. Trabalhamos muito antes de gravar o primeiro disco e mesmo depois de gravado batalhamos muito para conseguir espaço e chegar num estágio em que tivéssemos uma agenda de shows que fizesse com que pudéssemos sobreviver como banda. O que sinto é que neste momento, há um pouco menos de ousadia nas rádios, elas já arriscaram mais, as pessoas tinham mais coragem de tocar coisas diferentes. Há um certo marasmo, as coisas estão paradas, mas acho que isso é apenas uma fase, que pode mudar de repente.
RP: E o trabalho desta nova geração, você tem acompanhado?
Arnaldo: Acho que essa mistura de ritmos, que é o que a mídia evidencia como a principal característica desta geração, não é uma coisa nova, mas talvez tenha ficado mais clara agora com Raimundos, Chico Science, Mundo Livre e tantos outros. Na verdade, isso é uma característica da cultura brasileira. A gente convive com tudo isso, a Tropicália já falava nisso. Os próprios Titãs sempre tiveram a MPB, por exemplo, muito presente no trabalho, através de linhas melódicas e harmonias. Eu me sinto inteiramente à vontade em lidar com essas diferenças. Acho a cultura e a música brasileira coisas muito especiais. Essa miscigenação, essa falta de sectarismo não é vista em nenhuma outra parte do mundo. Acho essa promiscuidade muito saudável.
RP: Seu público de hoje é o mesmo que o acompanhava nos Titãs?
Arnaldo: Sinceramente, não sei responder a essa pergunta. Acho tão engraçado essas pessoas que saem definindo o público como o cara classe tal, com idade tal. Não tenho ideia de nada disso e nem me interessa. O que quero é ser ouvido por um número cada vez maior de pessoas, não vou perder tempo criando esses perfis. Desde que saí dos Titãs, sinto como se estivesse em início de carreira. Estou recomeçando e preciso reconquistar esse público que se interessa pelo meu trabalho. Na época em que lancei o Nome, foi difícil para algumas pessoas entenderem qual era a proposta, mas hoje já não vejo mais esse tipo de dificuldade.
RP: Em que você acredita e como encara a morte?
Arnaldo: Não sou uma pessoa religiosa, tenho religiosidade, o que é diferente. Não tenho uma crença ou defendo uma religião específica, acredito nas forças que regem as nossas vidas aqui. Quanto à morte, acho que cada hora, a vejo de um jeito. Tento conviver com a ideia da morte com cada vez mais serenidade. Acho que falo melhor sobre isso na música 'O Buraco', do que se eu falar qualquer coisa agora ('A terra sabe receber/ a caveira ri/ o céu ensina a tudo saber/ o corpo cabe/ a terra sabe receber/ o cadáver'). "

sábado, 27 de janeiro de 2018

Walter Franco; "Não tem nenhum segredo, mas tem muito mistério" (1975)

Em 1975 Walter Franco lançava o excelente disco Revolver. A revista Rock, a História e a Glória  em sua edição nº 13 trazia uma matéria com Walter, falando sobre o lançamento, que ainda não tinha acontecido, mas estava próximo. O texto é assinado por José Miguel Wisnik:
"Na capa de Revolver, Walter Franco vem só atravessando a rua. As luzes deixaram São Paulo meio esverdeada no escuro. As mãos no bolso do paletó branco, tênis branco, ele vem atravessando a rua, parecendo John. Mas ele vem de frente, e a fila indiana de Abbey Road pode estar vindo, pode ser todo mundo, quem quiser. ('Pode/ pode ser/ pode ser não/ pode ser não é'). Revolvendo tudo o que aprendeu, os Beatles, João Gilberto, o partido-alto ('Partir do alto' é o nome de uma das músicas), fazendo triângulos com música. A foto da capa ficou numa posição oblíqua, formando pirâmides de todos os lados. Tem também alguns sinais em braile: 'O que está escrito no centro é pra fazer sorrir um cego, ou fazer sorrir qualquer pessoa que enxerga na ponta do dedo, no toque frágil'. Pra ouvir com o olho, com o tato. 
Mostrando as provas da capa do seu segundo LP, Revolver, Walter Franco vai sugerindo uma série de intenções, ou de relações que ele mesmo descobre de repente. 'Não tem nenhum segredo, mas tem muito mistério'. Quem viu a cara do seu primeiro disco (em que ele não mostrou a cara) certamente ficou perplexo por um momento com aquele álbum completamente branco, uma mosca no centro da capa, um 'ou não' escrito no centro da contracapa. Agora, em Revolver, Walter chegou a adiar o lançamento do disco para que todos os detalhes saíssem perfeitos: a foto, o encarte, os textos, uma janela que depende de uma das facas especiais para cortar e imprimir. Desde as ideias da capa, Walter retoma e transforma o seu disco anterior. Não falta o que descobrir, por dentro e por fora.
Me deixe mudo, feito gente, muito tudo. Ele prefere falar por música, com o violão, comentando as faixas de seu disco, as faixas do som, as frequências, as cores das fotos. Por isso pode parecer que é um cara que fala pouco, mas na verdade é porque tem um cuidado quase ritual com  as palavras e as pessoas, e porque gosta das duas, como diz no disco.
Quando começamos a pensar numa entrevista, há três meses atrás, Walter ainda estava se preparando para começar a gravar, e dizia que queria testar a sua produção com os recursos do estúdio, 'se exercitar, filtrar, essa coisa de João (Gilberto): o filtro do filtro'.
Realmente, sem perder a identidade, as músicas passaram também por uma verdadeira transformação depois das 200 horas de trabalho no estúdio. Rodolfo Grani Jr. (baixo), 'o braço direito' e Diógenes Burani de Grado Filho (bateria), 'o braço esquerdo' fizeram com Walter os arranjos, mais Emilio Carreira (teclado), Dudu Portes de Souza (percussão), Luiz Paulo (sintetizador e sinfonizador, com seus 'platillos voladores'), Toni Osanah (flauta). Peninha Schimidt, assistente de produção e diretor de gravação, funcionou como uma espécie de intérprete de Walter junto aos técnicos de estúdio, transmitindo em linguagem técnica as suas intenções nas complicadas manobras de som.
'No estúdio é importante manter o registro da coisa no ato, o tempo individual da gravação. Coisas definidas antes e coisas acontecendo no momento. A palavra exata é sim: cantando essa frase num show, eu cheguei uma vez a um grito primal, cantando com o corpo inteiro, dos pés à cabeça, irmão. A gente nunca sabe até onde a coisa pode acontecer, e nem se pode repetir. Precisar no registro essa coisa que acontece quando se está no momento de criação, sem molduras. É claro que com o arranjo, o polimento posterior, a coisa pode ganhar, ficar mais bonita, mais elástica, mas perde na pulsação, na presença, nessa coisa de momento, que eu chamo de rock'.
Feito gente!: Com essas palavras, faladas, começa o disco e depois delas a música: 'feito gente/ feito fase/ eu te amei/ como pode/ fui inteiro/ fui metade/ eu te amei/ como pude'. O andamento, a contagem do ritmo é sempre igual, mas a pulsação muda, o tempo parece se distender, se acelerar, se contrair, se relaxar, feito fase.
O tempo: 'Uma faixa que deu trabalho na gravação foi Apesar de tudo é muito leve, que dura 5 segundos. É só esta frase (que faz parte de Muito tudo) cantada uma vez, a voz-sorriso, a respiração. No meio tem uma pequena inspiração, uma implosão. Eu fui na Praça de Sé assistir a implosão daquele prédio, o Mendes Caldeira. Na hora foi tão rápido que eu me lembrei dessa música. Ela podia ser a música-tema da implosão, aqueles cinco segundos (e não nove como disseram porque a queda mesmo foi mais rápida), a implosão, a força condensada, o apesar de tudo é muito leve...'
'Pra mim a música tem que ser polarizada para uma definição em termos de vida do que com  a música em si. Um exercício de harmonia , de prazer, de passar um prazer para o outro, e manter o equilíbrio. Pingue-pongue. Se você sorrir para mim como o seu olho eu posso sorrir pra você com o meu olho. Eu me preocupo em usar o som como uma transação de cura, onde todos precisam ser curados'. ('Me lembro do Gil: 'quem tem cara/ tem cura' e do 'Toque frágil' do disco de Walter Franco: 'o sorriso/ do cachorro/tá/ no rabo', com o coro, as duas baterias, as vozes sorrindo, rindo à solta, tudo mixado e curado pela infância, pelo amor/humor).
Pergunto a Walter onde ele aprendeu a usar os recursos de estúdio, os canais, a mixagem, porque logo no primeiro disco ele já saiu dominando tudo isso. Ele diz que como trabalhou em rádio (em 67 tinha um programa na rádio Marconi chamado "Marcando Bossa'), o pai era homem de rádio também, ele já tinha tido um certo contato com mesa de som. 'Os planos de profundidade do som são infinitos, todo músico sabe que no estúdio a coisa se torna meio mágica, as possibilidades são infinitas em termos de rendimento. O trabalho de mixagem faz um disco novo. A mixagem é um trabalho de criação mesmo, e de polimento em relação à gravação bruta. Mas depende do exercício contínuo'. Exercício contínuo de técnica e da música interior, que põe 'uma pessoa só, ou várias pessoas numa só, em harmonia com o todo'.
O exercício de mixagem é um exercício interior, da mixagem das próprias vozes das pessoas, se juntam em várias músicas. Uma voz tipo barítono, a normal e aguda cantam superpostas em 'Arte e manha': o 'Bumbo do mundo', 'um desfile particular de escola de samba', dois acontecimentos musicais cruzam o espaço do som e se encontram no meio; a cada repetição Walter canta com uma entonação diferente as frases 'foi meu mestre quem te ensinou, foi teu mestre quem me ensinou', de 'Partir do alto/animal sentimental'; e as variações de 'Éter/na/mente' ficam em polifonia com pulsações silábicas, soando na cabeça. Só ouvindo.
Pergunto: Mas a violência das pessoas, Walter, da cidade, do mundo, diante de toda essa sutileza? e o festival Abertura, onde chegou a não poder cantar até o final? Como é que fica?
'Quando a gente se aproxima de um bebê, por exemplo, a gente precisa se anular, pra não passar pra ele uma barra muito forte, pra que ele não receba aquela carga. Na relação das pessoas, na relação com o público, isso também acontece. No Festival da Canção, com Cabeça ('que é que tem nessa cabeça saiba que ela pode explodir, irmão) eu soltei a coisa com uma violência paralisante. Era uma coisa de chicote. A minha participação seguinte foi me anular como a gente se anula perto de uma criança recém-nascida, e a violência foi maior. Pra mim foi uma experiência pra provar que essa não-violência é uma coisa fortíssima. Em Muito tudo, do Abertura, a preocupação minha é essa coisa do limite que há entre a respiração, o silêncio, o sussurro, e a partir da volização conseguir a ciranda, o fado, a ponta da língua'.
Você não acha que Caetano e Gil, ou Macalé, que são pessoas que tem  um senso carnavalesco, podem lidar mais efetivamente com o público a seu favor, surpreendê-lo na hora, superá-lo, impor frente a um público adverso o seu próprio jogo?
'Sim, mas está ligado também ao fato do público já conhecer o que eles fazem. No meu caso, se eles estivessem relacionando o meu trabalho com as várias músicas que fiz, as mais expansivas, todo mundo pararia para saber porque estou cantando baixo, e ouvir. Acho que isso pode ser conseguido dentro dessa condição, a de impor, sendo conhecido, a elasticidade do trabalho'.
'A sustentação dessa coisa toda tem a ver com a esquiva. Quem não tem balangandã não vai ao Bonfim. Tem a ver com saber como se encostar no muro. Coisa de  malandro. Arte  e manha. Conseguir trânsito livre apesar do sinal fechado'.
E você acha que dá pra alcançar um maior número de pessoas, chegar com Revolver mais longe do que o seu primeiro disco, que teve uma venda quase inviável nas lojas?
'Sim, esse disco de agora chama as pessoas, está mais próximo, mais envolvente. A própria capa (um trabalho feito com Paula Tanaka) atrai mais, influi. Acho que ele pode ampliar as pessoas que escutam. Está um disco muito corporal, desde as cores, o som, e acho que nisso está a ligação dele com o rock. Aos poucos vão digerindo a minha música. E apesar da gravadora lançar por um problema de prestígio e não de vendas, pode acabar encontrando válvulas de escape, ele tem coisa pra tocar no rádio.
'Tem gente fazendo coisa bonita, mesmo sem ser conhecida. O importante é a certeza de estar transando numa faixa positiva dessa coisa não-resistente, pra que algo não te tire do ar. E fazer música para as crianças, que vão pegar tudo isso intuitivamente, sem precisar do exercício que a gente precisa'. "

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Os 70 Anos do LSD (2013)

O LSD, droga sintética que teve seu auge nos anos 60, época em que o psicodelismo acontecia a todo vapor, foi criado em 1943, em plena II Guerra Mundial. Seu uso se intensificou no ambiente "flower power", e é intimamente ligado ao acid-rock, e ao período de mudanças estéticas e comportamentais que acontecia na época do movimento hippie. Ao completar 70 anos, em 2013, a poderosa droga alucinógena foi lembrada por alguns órgãos de imprensa, como essa matéria de O Globo, intitulada Além de um Céu de Diamantes, publicada em 5 de maio, e assinada por Carlos Albuquerque:
"Não existia Lucy, e muito menos diamantes no céu. Em 1943, o mundo vivia a bad trip da Segunda Guerra Mundial quando o químico Albert Hoffman levou os dedos à boca e, sem querer, ingeriu uma substância que vinha estudando em seu laboratório na Basileia, há cerca de cinco anos. Mais tarde, em seu diário, ele descreveu o que aconteceu: 'Tive que interromper o meu trabalho no meio da tarde e ir para casa por me ver acometido por uma lerdeza, seguida por uma leve desorientação. Ao me deitar, fechei os olhos e entrei numa espécie de sonho acordado, com minha imaginação parecendo estar extremamente estimulada. Comecei a ver uma série de imagens extraordinárias, de diversas formas, num caleidoscópio de cores. Depois de algumas horas, o efeito passou'.
Aquela substância - a dietilamida do ácido lisérgico, um potente psicotrópico - passou a ser conhecida como LSD. E, 70 anos depois de sua descoberta, após uma longa e turbulenta trajetória, dos porões da CIA às mentes da contracultura sessentista, do desbunde à proibição, ela começa a ser revista, com  as portas para o seu estudo, finalmente, reabertas - seu uso terapêutico no tratamento da depressão é considerado promissor - ao mesmo tempo em que seu impacto no mundo cultural, no Brasil e no exterior, é lembrado de forma 'limpa'.
- Hoffman nunca imaginou que iria descobrir algo tão importante e ao mesmo tempo que se tornaria ilegal e proibido - afirma o também suíço Martin Witz, diretor do documentário 'The Substance', de 2012, exibido recentemente pelo canal a cabo GNT, com o título 'A Descoberta do LSD', e a última pessoa a entrevistar o recluso Hoffman, que morreu em 2008, aos 102 anos.
 - Ele estava feliz por perceber que, enfim, sua descoberta estava sendo recompensada. Por isso mesmo, prometi a ele fazer um filme equilibrado, sem condenações ou celebrações.
No documentário - que acaba de ganhar uma nova versão, em DVD, no exterior - são mostradas as primeiras experiências com a droga, nos anos 1950, logo descobertas pela CIA, que em plena Guerra Fria, pensou em usá-la de forma controvertida, como uma espécie de 'soro da verdade' em possíveis prisioneiros. Na década seguinte, porém, o LSD 'fugiu' dos laboratórios e foi parar nas ruas, inflamadas pelo clima libertário daquela época.
- É complicado imaginar como seria a contracultura sem o LSD porque ele estava lá, estava presente, não há como dissociar uma coisa da outra - afirma o escritor, filósofo e jornalista Luiz Carlos Maciel, um dos fundadores do jornal 'O Pasquim', em 1969, e editor da primeira versão brasileira da revista 'Rolling Stone'. - Seria leviano dizer que a droga criou aquele panorama, mas não há como negar que ela estava lá, inserida naquele momento libertário, de contestação, de confrontação com os valores estabelecidos.
Com seus poderes alucinógenos promovidos por gente como Timothy Leary, um ex-professor de Harvard que via na droga a possibilidade de 'curar' o materialismo da sociedade americana e pelo escritor Ken Kesey (de 'Um Estranho no Ninho'), com seus famosos 'testes do ácido', feitos num ônibus que percorria os EUA, o LSD passou a alimentar os sonhos de uma geração. De forma irresponsável, segundo Hoffman, que criticava o seu uso descontrolado e fora dos laboratórios.
- Hoffmam ficou chocado com a apologia feita por Leary - lembra Witz.
- Ele sabia que o LSD podia ter efeitos colaterais perigosos se tomado em doses grandes e contínuas. Hoffman defendia seu uso sob o controle de especialistas, e Leary fazia o oposto, divulgando o seu uso de forma universal.
No Brasil, como lembram o poeta Chacal e o escritor Jorge Salomão, o contexto era outro, já que o LSD chegou por aqui em meio aos anos de  chumbo, em plena ditadura militar.
- A gente saía do cinema, depois de assistir a 'Yellow Submarine', dos Beatles, e dava de cara com um camburão na porta. Era o colorido da mente contra o cinzento da realidade, um contraste muito grande - diz Chacal.
- Havia um escapismo inevitável de uma realidade sufocante, que camuflava sonhos reais - ressalta Salomão.
Não demorou muito, e a substância - celebrada por artistas como os Beatles, The Doors, Jefferson Airplane, The Byrds e Jimi Hendrix e escritores como Aldous Huxley e Allen Ginsberg - foi colocada na ilegalidade pelo governo de Richard Nixon, em 1969, com a proibição não apenas do consumo, mas também das pesquisas.
- Essa proibição foi um desastre, já que retardou durante muito tempo os estudos sobr a droga - afirma o psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) Dartiu Xavier da Silveira, que participou, há duas semanas, do Psychedelic Science, congresso sobre psicotrópicos realizado na Califórnia. - Hoje, entre outras coisas, é possível entender melhor seu impacto no meio cultural já que, mesmo não tornando ninguém criativo, ela ajudava o homem na sua eterna busca pela transcendência.
Psicodelia Musical
1) 'Lucy in the sky with diamonds', dois Beatles: um marco da psicodelia da banda, embora John Lennon sempre negasse a referência ao LSD
2)'Purple Haze', de Jimi Hendrix: na letra, ele fala de uma névoa púrpura em seu cérebro e do desejo de beijar o céu.
3) 'Break on trough, dos Doors: o grupo de Jim Morrison chegou a ser censurado pela própria gravadora por causa da letra, sobre ficar 'doido'
4) 'Eight miles high', dos Byrds: a banda usa uma viagem de avião como alegoria de um momento de psicodelia
5) 'White rabbit', do Jefferson Airplane: a letra da vocalista Grace Slick fala de pílulas mágicas e cita o clássico 'Alice no País das Maravilhas' "
 

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Caetano Veloso Fala de Seu Disco de 1969

Em 2012, quando completou 70 anos, Caetano Veloso foi homenageado com uma coleção de fascículos que eram vendidos em bancas de jornais, chamada Coleção Caetano Veloso 70 Anos. Os volumes traziam um CD de um disco do artista, onde o pesquisador Marcelo Fróes escrevia um texto, e o próprio Caetano comentava o disco destacado. Foram 20 de volumes, que após colecionados, eram acondicionados em uma caixa especial que era vendida separadamente. Trata-se de um ótimo documento sobre a vida e carreira de Caetano, oferecendo um excelente material de pesquisa. Em seu volume 7 a coleção destaca e traz encartado o disco de 1969, aquele de capa totalmente branca, com apenas a assinatura do artista ilustrando o trabalho gráfico. Trata-se de um disco gravado em um período complicado na vida de Caetano, entre sua prisão (e de Gilberto Gil) e o exílio londrino. Segue abaixo a transcrição do texto do fascículo:
“O ano tropicalista de 1968 foi o primeiro grande momento na carreira de Caetano Veloso, badalado no festival de MPB do finalzinho de 1967 com ‘Alegria Alegria’ – canção executada e gravada com acompanhamento da banda de iê iê iê Beat Boys. Seu primeiro LP solo, intitulado ‘Caetano Veloso’, saíra no final de 67 e na virada do ano Caetano já mergulhava de cabeça no conceito tropicalista – ao lado de Gilberto Gil e dos demais mentores do movimento musical e cultural: Mutantes, Rogério Duprat, Tom Zé, Gal Costa, Torquato Neto e até a bossanovista Nara Leão. Toda repercussão de tudo de bom que aconteceu em 1967, ano em que fora contratado pela Philips, inicialmente para dividir um LP intitulado ‘Domingo’ com a amiga Gal, foi repercutir em 1968.
Caetano no último show no Brasil, antes de embarcar para o exílio
 No final de 1968, após o lançamento do álbum coletivo ‘Tropicália ou Panis et Circensis’, Caetano compôs ‘Divino Maravilhoso’ com Gilberto Gil, para que Gal concorresse ao 4º  Festival da Música Popular Brasileira. A música ficou em 3º lugar e virou tema de um programa televisivo dos tropicalistas na TV Tupi, exibido durante apenas dois meses. Na época, Caetano – que causara frisson mas fracassara com sua ‘É Proibido Proibir’, gravada com os Mutantes para o FIC – acabou indo parar na lista negra dos militares, sem ter muita noção do que estava acontecendo.
O programa da TV Tupi foi curiosamente suspenso pela emissora pouco antes da decretação do AI-5 e às vésperas da prisão de Gil e Caetano em São Paulo no dia 27 de dezembro de 1968. ‘Gil tinha uma visão mais problematizada do Tropicalismo. Ele achava que aquilo tinha o risco de causar problemas pra nós, e eu não via assim. Não imaginava. Ele tinha sofrido muito antes, eu não sofria e na prisão eu sofri muito mais que ele’, lembra Caetano 42 anos depois. Presos no quartel do Exército de Marechal Deodoro, na Zona Norte carioca, até a quarta-feira de cinzas de 1969, Caetano e Gil foram soltos para que seguissem para uma prisão domiciliar em Salvador.
‘A prisão domiciliar pode dar a impressão de que a gente não podia sair de cassa, mas na verdade a gente só não podia sair da cidade de Salvador’, informa Caetano, que continua: ‘Os militares tinham o termo técnico pra isso: confinamento. Prisão foi o que nós tivemos antes, quando passamos dois meses na cadeia. Os quatro meses em Salvador foram chamados de confinamento, e eu não podia ir nem a Santo Amaro’, historia.
 A Philips sugeriu que os rapazes aproveitassem o tal confinamento para produzir repertório para os novos discos. ‘Eu acho que o próprio Rogério Duprat estimulava a gente a fazer, Gil tinha composto ‘Aquele Abraço’ e eu tinha feito ‘Irene’. Gil tinha violão na prisão, e eu não tinha. Eu fiz sem tocar, e quem harmonizou ‘Irene’ pra tocar no rádio foi o Gil. Ele ficava estimulando a gente e eu continuei compondo, e eles ficaram falando pra gente fazer o disco. Eu acabei fazendo, mas não tenho uma lembrança muito clara como um projeto meu. Fiz as canções que eu tinha na época, e também com as quais eu queria gravar – como ‘Carolina’, por exemplo – que eu vira na TV em Salvador, uma menina cantando num programa de auditório. Era o cúmulo da tristeza, por isso gravei com o sotaque baiano... embora Gil tenha dado uma suingada no violão. Se eu tivesse gravado com meu violão, teria ficado realmente triste.’, lembra.
‘A gente não podia vir gravar no Rio, e lá em Salvador existia um estúdio de 2 canais. Eu ainda não podia tocar violão nos meus discos, porque eu toco mal, e era preciso tocar de uma maneira que fosse como um violonista mais profissional. Então Gil, que sempre tocou muito bem, acabou fazendo o violão. Eu fiz as bases de voz e violão com ele, em 2 canais em Salvador, e mandamos pro Rogério Duprat finalizar.’, historia Caetano.
Mas nada disso era muita novidade, naquele tempo. ‘O produtor Manoel Berenbein, um sujeito maravilhoso, era muito carinhoso com a gente – embora viesse a trabalhar pela gravadora naquela época. O esquema era bem diferente, eu me lembro que a gente não via a mixagem, ao artista não era permitido assistir a mixagem e muito menos a masterização. Ia tudo ‘pro laboratório’ e a masterização era chamada de ‘corte’, e isso ninguém via... nem o produtor!’, lembra Caetano, rindo. ‘Mas foi bacana...’  


segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

É Proibido Fumar - Roberto Carlos (Discoteca Básica - Revista Bizz 1990)

O rock brasileiro estava começando a ganhar uma cara, uma personalidade própria no início dos anos 60, quando a nascente Jovem Guarda, que viraria um fenômeno de renovação e popularidade na juventude brasileira, começava a nascer e se firmar. Em 1964 e era dos grandes festivais, que viria a revolucionar e chacoalhar a MPB, ainda não havia acontecido, e a música jovem, com guitarras elétricas e um novo jeito de contar histórias e falar de amor nas letras, representava a grande novidade musical do período. E Roberto Carlos era o maior porta-voz daquele movimento. Seu disco É Proibido Fumar, representou um estopim para a afirmação do rock brasileiro, e pode ser considerado um verdadeiro clássico atemporal.
Em sua edição de agosto de 1990, a revista Bizz em sua sessão Discoteca Básica fazia uma análise desse disco, num texto escrito por Celso Masson:
"Na história da música brasileira não há nada tão pitoresco. Aos seis anos de idade, um garoto pobre de Cachoeiro do Itapemirim é colhido por um trem e perde a perna direita. Quem o socorre é um madeireiro , que o leva para o hospital local após ter improvisado um garrote com seu próprio terno. É o madeireiro quem arca com as despesas do hospital - mais tarde ele seria homenageado pelo garoto com um convite para ser seu padrinho de batismo. Mais uma peculiaridade: até os vinte anos, Roberto Carlos ainda não tinha sido batizado.
No final dos anos 50, Roberto inicia sua carreira, tocando violão e cantando músicas de bossa nova na boate Plaza, no Rio de Janeiro. Em 61, grava seu primeiro LP, Louco por Você. Sem sucesso imediato, algumas de suas canções começam a ser executadas em programas como Peça Bis Pelo Telefone e Hoje É Dia de Rock.  Surgem os primeiros convites para apresentações, mas até aí nada de excepcional.
Os primeiros sucessos vêm com seu segundo LP, lançado em 63, que traz 'Parei Na Contramão' e 'Splish Splash'. Com estas músicas, Roberto Carlos começa a ser conhecido em todo o Brasil, via programas de TV. O grande estouro e a 'coroação' já se esboçam, mas só chegam de fato após o álbum Roberto Carlos Canta Para A Juventude (65). Motivada pela explosão mundial da beatlemania, a TV Record cria um programa de auditório voltado exclusivamente para o público jovem, convocando Roberto Carlos para comandá-lo - ao lado de Erasmo Carlos e Wanderléa. A Jovem Guarda rapidamente vira uma febre. Bate todos os recordes de audiência. Gírias como 'é uma brasa, mora?', 'bicho' e 'carango' são incorporadas ao linguajar dos aficionados pelo programa que também usam roupas e adereços à maneira do ídolo. A coisa rola como uma bola de neve. O cineasta Roberto Faria transforma o LP Em Ritmo de Aventura (67) num filme que vira paixão nacional. Em 68, na Itália, o 'rei' vence o festival de San Remo. A coroa está definitivamente conquistada.
A história mais recente, dos anos 70 pra cá, dispensa comentários. Mas nada disso teria acontecido se, em 64, a frase fixada em ônibus, trens e elevadores não tivesse parado na capa de um LP: É Proibido Fumar, obra-prima que deu à música brasileira moderna seu maior mito.
O disco estava em sintonia com a música jovem do mundo todo e contou com vários colaboradores. Rossini Pinto, o tradutor dos grandes sucessos internacionais (inclusive 'Hey Jude'), gravada por Kiko Zambianki) contribuiu com uma canção de seu próprio punho, 'Um Leão Está Solto Nas Ruas'. Roberto verteu sucessos: 'Unchain My Heart' (originalmente gravada por Ray Charles) que virou 'Desamarre o Meu Coração', e 'Amapola', de Lacalle, continuou com o título original. Erasmo, mais dois: 'Born To Cry', de Dion DiMucci ('Nasci Pra Chorar'), e aquela que marcaria para sempre a carreira de Roberto, 'O Calhambeque' ('Road Hog'), de Gwen e John Loudermilk. A dupla Roberto e Erasmo compôs, além da faixa-título e 'Louco Não Estou Mais', a primeira surf music destas praias: 'O Broto do Jacaré'. A vertente romântica também aparece em É Proibido Fumar nas músicas 'Rosinha' (Oswaldo Audi e Athayde Julio), 'Jura-me' (Jovenil Santos), 'Meu Grande Bem' (Helena dos Santos) e 'Minha História de Amor' (José Messias). É curioso que a maior parte do repertório não seja de Roberto (ou Erasmo). Como intérprete ele também não é nenhum 'rei da voz'. Mas é o 'rei'. Para entender as razões que lhe garantiram o trono, ouça É Proibido Fumar.