Palavras Domesticadas

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terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Jards Macalé: Desafinando Coros em Tempos Sombrios - 1ª Parte

Na Revista USP nº 87 (setembro/novembro - 2010) foi publicado um artigo acadêmico sobre Jards Macalé, escrito por José Roberto Zan e intitulado "Jards Macalé: Desafinando Coros em Tempos Sombrios". Como se trata de um texto extenso, resolvi transcrever apenas uma análise de seu primeiro disco, Jards Macalé, lançado em 1972: 
"Em 1972, Macalé gravou o LP Jards Macalé, lançado pela Philips, contendo composições suas em parceria com Capinam, Torquato Neto, Waly Salomão e Duda. Produzido com orçamento pequeno, o disco teve a participação de Lanny Gordin, no violão e no contrabaixo elétrico, ao lado de Tutti Moreno na bateria. O repertório eclético, contendo blues, rock, jazz, xote, samba-canção e bolero, recebeu um tratamento pop que se expressa principalmente nos arranjos e na instrumentação. Os riffs de bateria, baixo e violão dão uma sonoridade compacta e, ao mesmo tempo, flutuante aos arranjos, com acentos e contratempos abrindo espaços para improvisações. Macalé, que também foi responsável pela base harmônica e rítmica ao violão, entoa as canções oscilando entre o sussurrado e o gutural, ora seccionando palavras para acentuar a marcação rítmica, ora se desmanchando em cantos derramados e melancólicos em momentos de profunda tristeza.
A primeira faixa, o híbrido samba-pop-rock-blues 'Farinha do Desprezo', composto em parceria com Capinam, aborda o tema do desenlace amoroso. Nos versos 'Só vou comer agora da farinha do desprezo/ Alimentar minha fome pra que nunca mais me esqueça/ Ah como é forte o gosto da farinha do desprezo/ Só vou comer agora da farinha do desejo', entoados numa performance articulada à instrumentação roqueira, o narrador expressa o seu sofrimento com  a separação e, ao mesmo tempo, sua disposição de assumir o rompimento e se recompor. Porém, é uma canção cheia de metáforas que abriga múltiplos significados. Esses mesmos versos podem conter alusão à droga, o que cria uma atmosfera marginal e existencial compartilhadas por segmentos de jovens e artistas no contexto pós AI-5.
A faixa seguinte é a balada 'Vapor Barato' que, cantarolada à capella, sob a forma de uma breve vinheta, cria um ambiente soturno que antecede à vigorosa composição 'Revendo Amigos', um xote-rock cujos primeiros versos dizem: 'Se me der na veneta eu vou/ Se me der na veneta eu mato/ Se me der na veneta eu morro/ E volto pra curtir'. Macalé estabelece um diálogo entre essas duas músicas: enquanto a primeira trata de um personagem em fuga, na segunda o narrador assume sua condição de sujeito que decide ir, voltar, matar ou morrer. Esse gesto rebelde  e de resistência fez com que o compositor enfrentasse dificuldades perante a censura, que o obrigou a modificar a letra diversas vezes.  Em seguida, a balada blues 'Mal Secreto' contém versos belíssimos de Waly Salomão como 'Mascaro meu medo/ Mascaro minha dor/ Já sei sofrer/ (...) Não fico parado/ Não fico calado/ Não fico quieto/ Eu choro, converso/ E tudo mais jogo num verso/ Intitulado Mal Secreto'. É uma canção que nos remete ao clima de incerteza e insegurança daqueles anos sombrios. O canto suave e contido de Macalé cria, em interação com os riffs de baixo elétrico que prevalecem na instrumentação, efeitos peculiares de passionalização.
Em  '78 Rotações', Macalé e Salomão tematizam a condição do cancionista que grava em disco sua criação. 'Com as mãos frias/ Mas com o coração queimando/ Estou amando/ Estou passando/ Estou gravando/ (...) Em 78 Rotações por segundo rotações'. Fazem menção indireta ao caráter de produto do disco nos versos 'Vou seguindo.../Vou servindo.../ Vou sorrindo por segundo/ Devagar/ Grave um disco devagar/ (...) Um long-Play.../ Um Long-Day.../ Um Long-Love devagar quase parando'. Musicalmente, é a composição mais elaborada do LP. Modulações harmônicas incomuns e os riffs de samba-jazz conduzem a melodia por caminhos distantes das redundâncias da canção de massa.
As faixas 'Movimento dos Barcos' e 'Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata', ambas com letras de Capinam, dão ao álbum um clima profundamente melancólico. A primeira acentua a atmosfera de fossa que perpassa todo o LP. Macalé, explorando as tensões dos intervalos de sétima e nona do acorde menor ao violão, entoa de forma contida e passional os versos que fazem alusão ao desamor e  ao tédio de um cotidiano monótono e opressivo. 'Estou cansado/ E você também/ Vou sair sem abrir a porta/ E não voltar nunca mais/ (...) É impossível levar um barco sem temporais/ E suportar a vida/ Como um momento além do cais'. Segundo o próprio letrista, essa música representava o seu rompimento com o movimento tropicalista cuja radicalidade lhe rendera ameaças, insegurança e isolamento. Maria Bethânia já havia popularizado essa música no seu show Rosa dos Ventos, de 1971, que resultou no LP homônimo lançado pela Philips no mesmo ano. Mas o clima sombrio do disco atinge seu ápice com a composição 'Meu Amor Me Agarra & Geme...'. O poeta Capinam parafraseando uma expressão de Mao Tsé Tung ('o imperialismo norte-americano é um tigre de papel'), compõe uma letra que trata de conflitos, contradições e ambiguidades de uma intensa relação amorosa. A canção contém imagens surrealistas sobre a aparência de força, poder e agressividade do sujeito, o que acaba por ocultar a sua condição de fragilidade e a submissão.
 'Meu amor é um Tigre de Papel/ Range, ruge, morde/ Mas não passa de um Tigre de Papel/ Numa sala ausente/ Meu amor presente/ Me esconde entre os dentes/ Depois me abandona e vai definitivamente/ Definitivamente volta, ilude, desilude/ Range, ruge, rosna/ Velho tigre de virtudes/ Nas selvas de seu quarto entre flores, cartas/ Frases desesperadas, lençóis / Onde me ama/ Furiosas garras/ Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata/ Um tigre de papel perdido nos lençóis da casa'.
Macalé entoa esses versos de modo extremamente dramático e passional incorporando a voz rouca, soluços e respiração ofegante a uma performance que ressalta ambivalência da relação entre amor e dor, prazer e sofrimento.
'Let's Play That', última letra musicada de Torquato Neto tem características de manifesto. Numa paráfrase ao 'Poema de Sete Faces', de Carlos Drummond de Andrade, Torquato recria a figura do anjo torto, mas que agora é também solto, louco, muito doido.
'Quando eu nasci/ Um anjo torto/ Um anjo solto/ Um anjo louco/ Veio ler a minha mão/ Não era um anjo barroco/ Era um anjo muito solto/ Louco, muito doido/ Com asas de avião/ E eis que o anjo me disse/ Apertando a minha mão/ Entre sorriso de dentes/ Vai, bicho/ Desafinar o coro dos contentes'.
Nota-se que não é um anjo que vive na sombra como o de Drummond, nem é barroco; é um anjo metálico, cibernético, moderno. Além disso, é vidente e fala gíria. A canção radicaliza a melancolia presente no poema de Drummond e constrói uma atmosfera irônica que se expressa principalmente na sina indicada ('desafinar o coro dos contentes') e no procedimento do anjo ('apertando a minha mão entre sorriso de dentes'). O lema central da composição, 'desafinar o coro', pode ter sido inspirado em conversas de Torquato com Augusto de Campos sobre Sousândrade. Para o escritor e poeta maranhense, 'coro dos contentes' era uma alusão às pessoas que cantavam em exaltação aos poderosos esperando obter facilidades e benefícios. Isso dá à composição um caráter de manifesto compatível, de certo modo, com a postura contracultural e marginal que buscava, através da subversão da linguagem e do comportamento, empreender a crítica e a resistência à ordem estabelecida. "

(continua)


2 comentários:

  1. Começa com Macalé e termina com Torquato,dois 'maledeto''.

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  2. Dois artistas que não se prenderam a segmentos ou tendências. Dois malditos benditos

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